70 - O cupido trapalhão

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Irene sentia-se prestes a desmaiar. Fraca, com o estômago vazio, cuja tremedeira nas mãos denunciava que realmente ela estava muito debilitada.
_ Como tô com vontade de comer aquele bolo de côco que a Elisa fazia! E eu quase nunca comia, porque eu tinha medo de engordar!
Irene, delirando de fome, olhou ao redor. A única coisa que seus olhos vislumbraram foram uns arbustos próximos ao viaduto.
_ Preciso chegar lá!
Diante da débil ideia de que a planta era comestível, ela arrancou um punhado das folhas e passou a mastigá-las lentamente. Era incrível... As folhas tinham o mesmo sabor do bolo de Elisa. Parecia até que seus olhos estavam diante da velha cozinheira da mansão de Valderez.
_ Mmmm... Delicioso, dona Elisa! Que bolo de derreter na boca!! Preciso de mais um pedacinho, pra dar pro Ângelo.
Diante da soberba saciedade de ter saboreado novamente aquela deliciosa iguaria que normalmente ela recusava-se a comer, Irene despertou, mastigando um pedaço do papelão no qual dormia. Olhou para o colchão que encontrara no lixão. O menino profundamente adormecido, agarrado ao pedaço de cobertor, virara-se de frente...
_ Miguel!!!
Irene olhou novamente, para certificar-se de que era mesmo seu filho a estar ali, com ela, dividindo aquela espaço tão sombrio.
_ Miguel... Isso quer dizer que tu sempre tava comigo!
Irene apertou o olhar...
_ Ué... Juro ter visto o Miguel!
Num piscar de olhos, a fisionomia da criança voltou a ser a do pequeno Ângelo... Ele mostrava-lhe que não era Miguel, e aquele lugar não era a mansão de Valderez e Lili.
_ Deus... Acho que eu tô ficando maluca! Tô vendo coisas... Tô sonhando com coisas... Aquela mansão... Miguel...
Seu pensamento ficou um longo tempo ali, na época que morava na mansão... Porém, A luz pública de rua refletia sombras nas pilastras do viaduto, mostrando-lhe que tudo mudou. Agora a missão dela era cuidar daquele pequeno ser indefeso.
_ Como vou conseguir cuidar do Ângelo no futuro, quando ele ficar maior? As feridas nas costas doem tanto...
Irene ficou pensativa, com o olhar parado. De repente, um rosto familiar pareceu-lhe surgir entre as sombras das pilastras. Não resistiu, gritando:
_ Mary!!! Filha!!! Eu tô aqui!! A tua mãe tá bem aqui! Aquiiiii!
O grito de Irene perdeu-se entre os roncos dos carros sobre o viaduto. Mary não estava ali. Apenas o som do trânsito respondia aos gritos desesperados de Irene. Parecia que o mundo tinha esquecido da existência dela. Ela, seus devaneios e o pequeno Ângelo.
_ Não consigo acreditar... Logo eu, que sempre tava nas altas rodas das mulheres mais chiques da cidade! Agora, aqui...
Seus dedos trêmulos tentaram arrumar um pouco os cabelos desalinhados, porém, seus gestos denunciavam o nervosismo da abstinência do cigarro.
_ Bahhh! Que vontade de fumar! Antes eu fumava três carteiras de cigarro por dia, e agora não tenho dinheiro pra comprar cigarro... Mal dá pra pagar a comida! E ainda tenho o Ângelo...
O olhar de Irene pousou sobre Ângelo, e duas lágrimas brotaram de seus olhos.
_Esse menino... É a minha última chance...
Enquanto o sono demorava a chegar novamente, seu pensamento foi além de Caxias...
_ Arnaldo... Miguel... Como será que eles estão? Como eu era feliz naquela época... Naquela casa...
Em Igrejinha, na casa simples de Arnaldo, Miguel despertou de repente. Sentou-se na cama, pegou as muletas e dirigiu-se até o quarto do pai, que despertou assim que sentiu a presença do filho.
_ O que aconteceu, filho? Tá com dor?
_ Não, pai... Tive um pesadelo...
_ Talvez esteja com um pouco de febre... Venha! Vamos ver...
Arnaldo pousou a mão sobre a testa do filho, em seguida, pousou também os lábios.
_ Não tem febre... Se tivesse febre, em sentiria, tanto no toque da mão como no toque dos lábios!
_ Sonhei que vi o rosto da Mary, nas pilastras de um viaduto... Estranho, que no sonho eu tava dormindo perto das pilastras, em cima de um colchão todo sujo e manchado, e não na minha cama...
_ Foi só um sonho, Miguel... Volta pra cama!
_ Espera, pai! Ainda não terminei... Pertinho do colchão tava a mamãe, toda descabelada... Parecia tão real...
Arnaldo tocou o ombro do filho, com carinho.
_ Ela se foi porque quis, filho! Ela sempre tinha planos que não tinham nada a ver com família!
Miguel olhou para o pai, franzindo o cenho.
_ Eu sei, pai... E nesses planos da mãe não tinham um filho doente nem um marido pobre, né? Que raiva que dá!
_ Não a julgue, filho... O único que poderá julgar se ela errou é Deus!
_Eu não consigo, pai... Dói pensar em tudo que a mana deve ter passado longe da gente...
_ Olha, filho... Eu sei que tu tá chegando numa idade que tu já sabe diferenciar o que é certo do que é errado. E sabe que tua mãe fez o que não deveria ter feito... Use isso pra tua vida futura. Assim, quando tu tiver uma família, ela nunca passará pelo que nós estamos vivendo agora.
Miguel olhou para o pai com os olhos chorosos.
_ Pai... Será que eu vou achar alguém que vai me amar de verdade? Assim como eu sou?
Arnaldo pousou a mão suavemente sobre o peito de Miguel.
_ Meu pequeno aprendiz de homem... Deus te colocou aqui dentro um coração sincero, carinhoso e fiel... Os planos de Deus devem ser muito bons no teu futuro! Basta ouvir a voz de Deus e firmar caráter!
Com a voz entrecortada por soluços, Miguel voltou ao assunto da irmã:
_ Eu sei... Mas eu tô com raiva ainda, pai! A mãe levou a mana pra aquele lugar. E a mana... Pequenininha... Ela sofreu horrores nas mãos de um tal de Léo... Um monstro! O Chico me contou... Eu nunca vou perdoar nossa mãe...
Duas grossas lágrimas desceram pelo rosto de Miguel. Arnaldo, ao ouvir Miguel falar da mãe daquela maneira, tentou manter a serenidade para não chorar também.
_ Vamos tentar confiar em Deus, filho... Tenho certeza que Deus vai cuidar da Mary. E quanto à tua mãe, confia em Deus, Miguel... É só o que podemos fazer.
Diante do clima pesado que estava se formando, Arnaldo tentou animar Miguel.
_ Vamo tomar um banho e um café, marujo! Depois a gente vai zarpar pra casa do Chico. Tenho que resolver umas coisas com o Juvenal e já aproveito e te levo junto.
Na perspectiva de ficar na casa do amigo, Miguel enxugou os olhos com as costas das mãos.
_ E eu vou treinar mais um pouquinho as muletas. Tá difícil me acostumar com essas pernas de pau! Assim, logo, logo, eu volto pras danças e pras lutas!
_ Calma, guri! Tudo tem seu tempo! Vamos viver um dia de cada vez... Por enquanto, são as muletas as tuas danças e tuas lutas! Já pro banho, ou vamos chegar lá no Juvenal só de tardezinha!
Miguel bateu continência.
_ Pois não, capitão!
_ Em meia hora zarpamos, marujo... Quinze minutos pro banho e quinze pro café!
_ Aaaa, pai... Só quinze pro banho? Eu tenho que me vestir também, arrumar o cabelo...
_ Onde tá aquele guri que saía pulando do banho, pulava dentro de uma roupa qualquer e saía correndo?
Miguel olhou para o pai, reclamando:
_ Aaaa, pai! Isso é golpe baixo! Me fala que só tenho quinze minutos pro banho e fica me prendendo na conversa! Ahhhh, vai... Isso não vale!
Miguel dirigiu-se ao banheiro e Arnaldo caiu na gargalhada.
_ Só assim, pra tirar tu esse teu popozão da cadeira e se mexer! Tenho umas coisas pra resolver com o Juvenal e quero dar uma mão lá pra Tina. Ela ainda não pode trabalhar, e eu tenho braços sobrando!
Após um certo tempo no chuveiro, enrolado na toalha de banho, Miguel entreabriu a porta do banheiro.
_ Paiê! Eu acabei de ter uma ideia... Aliás... Já tive essa ideia no outro dia lá nas manas, mas...
_ Mmmmm... Vestido desse jeito, a ideia deve ser maluca!
_ Não brinca, pai! É sério!
_ E o que será que é tão sério, que tu não pode te vestir primeiro?
_ Tá bom, pai! Vou me vestir primeiro! Falo enquanto tomamos café.
Miguel sentou-se à mesa do café, e já foi puxando o assunto novamente. Sua fisionomia ficou séria.
_ Pai...
Arnaldo serviu duas xícaras de café, olhando para Miguel com o rabo do olho.
_ Fala, marujo! Qual foi o tubarão que te mordeu dessa vez?
_ Não brinca, pai! É sério!
_ Então desembucha, guri! Quero aproveitar a manhã pra ajudar o Juvenal a arrumar a cerca do potreiro da Tina.
_ Era sobre isso que eu queria falar...
Arnaldo ficou sério de repente.
_ Como assim? Agora deu pra se preocupar com a cerca do potreiro da Tina? Na tua idade, eu tinha outros tipos de preocupação!
_ Não, pai... Não foi com a cerca que eu me preocupei... Aliás, nem pensei na tal cerca...
_ Mas tu disse que era sobre isso que queria falar!
Miguel olhou tristemente para a porta.
_ Olha, pai... Não que eu esteja com saudades da minha mãe, mas eu... Eu sinto falta de uma mãe...
As mãos de Arnaldo tremeram, segurando a xícara cheia de café.
_ Eu não... Não esperava que dissesse isso! Eu já não espero que Irene volte pra cá... Agora a ferida do meu coração cicatrizou...
Arnaldo notou a tristeza de Miguel e tentou remendar.
_ Uma feridinha que coça um pouco de vez em quando, mas já não dói mais!
_ Não, pai... Eu não tô esperando a mamãe voltar... Ela me abandonou quando eu tava doente! Nunca vou perdoar ela!
_ Agora não entendo mais nada! Primeiro diz que sente falta de uma mãe, depois diz que não quer que a mãe volte! Acho que o soro do hospital te deixou com um parafuso solto aí na cachola!
_ Pai... Eu tava pensando numa "outra mãe"!
_ Outra mãe? E quem haveria de querer um velho guerreiro, cansado da guerra que nem eu?
_ Tu não é velho, pai! Eu tava pensando...
_ Pois tu pensa muito... Até demais! Mas tudo bem... Na tua idade meu pensamento também sempre tava a milhão.
Miguel respirou fundo.
_ Pai... Eu gosto muito das manas, pai. E vejo que elas tão tristes sem o pai delas... No outro dia, flagrei a Lenir chorando.
_ Claro... O Claudio era tudo pra elas!
_ Tentei consolar ela, e ela me falou a mesma coisa que tu disse agora...
_ Então? Qual é o problema?
_ Aí, falei que eu ia emprestar meu pai pra ela...
Arnaldo ficou paralisado diante da revelação do filho.
_ Commmmo? Tu sabe o tamanho da bobagem que tu falou pra ela? Seria como se eu fosse te oferecer pra outra família!
_ Mas... Tu e a tia Tina pensam da mesma maneira... Combinam...
_ Filho... Ninguém pode tentar interferir na vida dos outros, a não ser pra ajudar!
_ Mas foi o que eu falei pra Lenir! Falei que tu podia morar lá com elas e ser um novo pai pras manas e ajudar elas todos os dias lá no sítio!
Arnaldo olhou sério para o filho.
_ Tá... E o que a Lenir falou dessa tua ideia maluca de bancar o cupido?
Miguel corou.
_ Ela... Me bateu...
Arnaldo não conseguiu segurar o riso.
_ Aí tá o legítimo "cupido trapalhão"! Vai te servir de lição, que o amor precisa brotar de dentro do coração de duas pessoas, e não de ideias arranjadas de gente que banca o cupido e leva uma surra!
Arnaldo não escondeu o riso. Miguel, desconcertado, acabou caindo na gargalhada também.
_ Bom, pai... Eu tentei...

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora