7 - A decepção de Arnaldo

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_ Tô com fome!
Miguel olhou para a mãe, que abria a segunda carteira de cigarros do dia. Notou que ela estava pensativa e nem ouviu Mary se queixar de fome. Foi até a irmã, cochichando em seu ouvido:
_Vou até em casa, ver o que tem lá. Aí trago pra ti.
Miguel saiu furtivamente, temendo que Irene notasse. Aprendeu que "bater de frente" com a mãe não daria resultado algum. Só sentia que algo, ou alguém, o fazia proteger a irmã.
_Vamos morar no apartamento do Carlito, em Santa Catarina. Aí me livro de vez do véio.
A pequena Mary não compreendia o que Irene quis dizer. Não sabia o que era um apartamento, tampouco onde era Santa Catarina. Em seu conceito de uma criança de 5 anos, apartamento poderia ser qualquer coisa, até o girau do galpão, onde o pai esticava palhas de arroz e milho secas para alimentar as vacas no inverno...
_ Onde está Miguel? Preciso que ele coloque o remedinho nas minhas pintas das costas! Tenho que ficar bonita pro Carlito! Ele é um doutor, e não pode ter uma mulher cheia de pintas nas costas e nem gordinha. Se eu não ficar bonita e elegante, talvez ele não me queira mais...
Diante da ausência do menino, arregalou os olhos e bufou:
_Com certeza foi lá no véio. Ele vai se ver comigo quando voltar!
Miguel segurava embaixo do braço um pacote de bolachas que encontrara na despensa, já com poucas provisões.
_ Onde tu tava, guri?
As pernas de Miguel pareciam ficar sem chão, tamanho foi o susto dele. Sabia que não adiantava mentir para Irene, pois ela notara o pacote de bolachas sob seu braço.
_ Aqui, guri!!! Vou te mostrar o que é obedecer a mãe!!!
O olhar marejado de Miguel dirigiu-se ao chão. Irene empunhou uma faca que trouxera e cortou uma haste de aroeira mansa. Segurou o braço do garoto e bateu nele, enlouquecidamente... Mary saiu correndo, temendo levar uma surra também.
_ Agora vai aprender a obedecer?
Miguel, com o rosto molhado pelas lágrimas, esfregava as nádegas com as mãos, acenou afirmativamente. Não sabia se ficava ali ou corria até o pai. Resolveu ficar, pois sabia que Mary corria perigo se a deixasse sozinha ali.
_ Aqui, Miguel!!! Tem que colocar o remédio nas pintas!!!
Irene falava aos berros, pois naquela altura da situação, notou que poderia perder o controle de autoridade sobre as crianças. Acendeu um cigarro e ergueu a blusa para Miguel colocar o calicida nas pintas. A fumaça exalada por Irene envolvia o rosto do garoto, que tentava não tossir. Miguel sentiu uma sensação de falta de ar ao aspirar a fumaça, porém disfarçou, com medo que Irene tivesse outro acesso de fúria e ele levasse outra surra.
_Já que tu trouxe bolachas, vamos comer, que tem aula de tarde.
Pelo menos isso!!! A professora Sirlei havia permitido de Mary acompanhar Miguel a frequentar as aulas. Assim ela não ficaria sozinha com Irene. Miguel temia pela irmã. Sabia que a mãe era capaz de qualquer coisa.
Miguel e Mary repetiram três vezes a porção de merenda escolar destinada a cada criança. Julieta, a merendeira, sentiu que algo estava errado com as duas crianças.
_ Professora... Preciso conversar com a senhora.
Julieta relatou o ocorrido. Combinaram de permitir que Miguel levaria dois pacotes de bolacha.
_ Deve ter algo muito errado com essas crianças para elas estarem tão famintas... Precisamos descobrir o motivo, mas não podemos interferir. Só ajudar.
Duas grossas lágrimas escorrem no rosto de Arnaldo. Vislumbra a casa, procurando os filhos com o olhar. Porém, sabe que eles não estão mais ali. As preocupações vão se empilhando em sua mente... Onde estariam, Irene e as crianças? Olhou para as roupas das crianças, empilhadas no quarto, colocou a mão na cabeça...
_Bahhh! Tenho que resolver isso de uma vez... Vou vender as vacas e algumas máquinas para pagar o banco. Não posso esperar a próxima colheita...
Tomou um banho e foi até a propriedade do Sr Guido, um amigo que comprava, vendia ou trocava gado.
_ Porque quer vender as vacas e os bezerros, Arnaldo?
_ Preciso de dinheiro para quitar a dívida do banco, da construção da casa. Não quero deixar dívidas.
_ Mas pretende se mudar? Como estão Irene e as crianças?
Arnaldo engoliu em seco... Os olhos salpicavam para não chorar. Não queria contar ao amigo que já não via Irene e as crianças a dias.
_ Nada não, Guido... Só quero pagar minhas dívidas.
Arnaldo olhou o horizonte, como se procurasse algo no céu... Efetuou a venda das 5 vacas leiteira e dos 3 bezerros que criava. _ Sabe quem compraria uma trilhadeira*? Pretendo vende-la. Preciso do dinheiro para quitar as dívidas da construção da casa.
_Bom,posso comprar ela também, Sr Arnaldo. Assim poderá quitar o banco!
Arnaldo saiu satisfeito da residência do Sr Guido, que combinou de retirar as vacas e a trilhadeira na semana seguinte, pois aí teria o dinheiro certinho para pagar Arnaldo.
Irene, no entanto, no seu deslumbre pela vaidade, não notou que uma das pintas que tentava queimar com o calicida, tinha triplicado de tamanho e espessura. Um cigarro seguia o outro...
_ Tenho que ficar bonita... Daqui a dois dias temos encontro com o Carlito. Vamos morar com ele, no apartamento, em Santa Catarina. Ele virá nos buscar aqui.
Miguel e Mary se entreolharam, pois não sabiam o que era um encontro. Em sua inocência infantil, julgavam que"encontro" eram duas pessoas brincando de esconde-esconde, e que se "encontram", na brincadeira.
_Mano, tô com frio... E com fome...
Os olhos da garotinha se dirigiram ao amontoado de lençóis, que era a barraca improvisada, sob uma árvore.
_ Que saudade do meu paizinho!
Mary olhou para as próprias mãozinhas, agora magrinhas... Sempre eram rechonchudinhas... Miguel segurou a mão de Mary e puxou-a na direção de uma trilha.
_ Vem aqui, mana... Achei uma árvore ali, que dá umas frutinhas que vão resolver nossa fome... Só subir e colher.
Miguel arrastou Mary trilha adentro, subindo com destreza no pé de araçá-ipiranga. Mary comeu o que podia e encheu os bolsos do vestidinho de casimira.
_ Olha, maninha! Tô voando! Sou um passarinho!
Miguel abriu ambos os braços, em cima do araçazeiro. Segurava o corpo com as pernas, para não cair.
_ Isso me lembra nosso balanço, lá no pé de cinamomo. Será que a mãe vai xingar se a gente for lá? Talvez o pai esteja por lá... O balanço fica pertinho da casa...
Mary olhou Miguel, com os olhinhos cheios de lágrimas...
_ Tô com saudade do meu paizinho.
_Vamos! Se tu não contar, eu não conto. A mãe foi no armazém comprar cigarros. Vai demorar.
As crianças correram trilha afora, na direção do velho cinamomo, onde uma corda servia de balanço. A euforia das crianças chamou a atenções de Arnaldo, que aproximou-se temeroso, pois não sabia até qual ponto a alienação de Irene havia feito efeito na cabecinha dos filhos.
_ Paiêêê!!!
A corrida de Mary ao abraço do pai foi de atropelar até o irmão.
_ Como vocês estão, meus filhos? Papai gostaria tanto de ter vocês aqui pertinho, mas a mamãe não deixa.
Miguel relatou tudo que passaram ao pai, que colocou as duas mãos na cabeça, incrédulo...
_Quer dizer que a mamãe vai ter um bebê? Isso é verdade?
_ Claro, ela até disse que o papai do bebê vai ser o Dr Carlito.
Foi a gota d'água!!! Arnaldo explodiu em prantos... Ainda tinha esperanças que tudo voltaria ao normal...
_ Miguel! Sai do balanço!
Miguel obedeceu, sem entender. Apenas olhou o pai, que segurou a corda com ambas as mãos, atando um laço de pescador a uma certa altura da corda. Não sabia o que estava por vir... Apenas sentiu que algo ruim estava por vir...
_ Paizinho... O que...
Miguel não conseguiu terminar a pergunta. Um nó parecia apertar sua garganta... Apenas ouviu o pai dizer que Deus o perdoasse...
_ Paiêêê!!!
As crianças, aos prantos, presenciavam o pai, que atava o laço ao seu próprio pescoço...
_ Nãããão!!!
Arnaldo não escutou os gritos de Miguel e Mary... Soltava o corpo à corda que prendia seu pescoço...
_ Meu canivete, mana! Meu canivete!!!
Com a destreza de um esquilo, Miguel correu até o cinamomo, subiu feito raio e sentou-se sobre o galho que segurava a corda... Tirou o canivete do bolso e cortou a corda do balanço... Mary correu ao ver o pai voltando ao chão...
_ Paiê!!! Fala comigo!!!
Miguel, no desespero de cortar a corda, esqueceu da altura e que deveria segurarás pelas pernas, como fizera no araçazeiro. Perdeu o equilíbrio e tombou os quatro metros que o separavam do chão. Caiu de bruços, batendo a barriga em uma pedra.
_ Mannnnnno!!!
Mary correu até Miguel, que estava desacordado. Olhou chorando na direção do pai, que estava atordoado, perdido...
_ Acorda, mano! Acorda!!!




INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora