59 - Luidim

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O grande dia chegou. O sábado da costumeira contação de histórias estava aí. As caixas estavam a postos perto do boneco. As crianças faziam os últimos retoques.
_ Aqui, Mig! Prende a máscara aqui, que fica firme!
_Agora só falta um nome pra ele, Mig!
_ Já sei! Ele não era filho ilegítimo de Luiz XlV?
_ Sim.
_ Pois é...
Miguel colocou a mão na cabeça do boneco da máscara de ferro.
_Então vamo te chamar de Luidim!
Lenice indagou, diante de um nome tão estranho.
_ Luidim?
Miguel explicou:
_ Vamo supor que Luiz XlV tinha a língua presa, e quando o filho bastardo nasceu queria chamar ele de Luizinho... Aí saiu "Luidim"!
Lenir concordou:
_ Legal, Mig! Gostei! Afinal, o boneco é nosso!
Logo após o jantar, o círculo costumeiro foi feito ao redor de "Luidim". Arnaldo, Juvenal e Adriano, pai de Pérola, arrumaram as cadeiras estrategicamente para ficarem bem próximos, a fim de que todos escutassem. Tina, Teresinha e Bruna guardavam as últimas louças. Teresinha comentou:
_Eu tô te achando muito quieta, Tina. Alguma coisa errada com a contação de histórias?
Tina baixou os olhos.
_ Não, Teresinha. É outra coisa. Eu acho que eu tô com um probleminha de saúde, mas não quero falar nada antes de fazer um exame.
_ É problema da gravidez, com o nenê?
_ Sim e não... Eu faço meu autoexame de mamas todos os meses, e ando notando que tem alguma coisa errada. Mas como agora eu descobri a gravidez, não posso nem fazer a mamografia pra saber...
Bruna interveio na conversa:
_Olha... Eu sei de um Centro de Diagnósticos e Tratamento que faz mamografias sem riscos pro nenê.
_ Ah, Bruna! Quero sim. Anota aqui, nesse caderno de endereços, por favor. Depois vamos lá pro pátio, que hoje o tempo tá agradável lá fora.
No pátio, a pequena fogueira armada pelos pais das crianças, já iluminava o boneco Luidim e as crianças. Pérola, toda elegante em seu traje improvisado de Luiz XlV, e os quatro mosqueteiros, representados por Miguel, Francisco, Lenice e Lenir. Tina abriu todas as caixas de perguntas e derramou o conteúdo no interior de um caldeirão próximo ao boneco, misturando todas as perguntas.
_ Pronto... Já que me chamaram de bruxa, vamos usar o nosso velho caldeirão pra fazer algumas coisas úteis. Mexendo bem o conteúdo desse caldeirão, os assuntos em questão vão cair nos ombros do boneco.
Miguel corrigiu:
_ Luidim!
Tina ergueu a voz para começar a história:
_ Está certo! Então, teoricamente, todas as perguntas foram escritas pelo Luidim! Vamos lá... Vossa majestade, fiéis mosqueteiros e demais presentes! Luidim os espera! Temos hoje, em nosso ilustre jardim do palácio, um convidado inusitado pra tirar algumas dúvidas de um pobre prisioneiro da humilde aldeia que circunda o palácio.
Tina retira um pedacinho de papel do caldeirão.
_ Primeira pergunta do Luidim: "Por que semana passada apareceu uma espinha no meu nariz?"
Tina ergueu-se da cadeira, ficando face a face com o boneco, com uma fotografia antiga na mão.
_ Pois a carga de hormônios ataca quase todos os adolescentes dessa idade. Aqui tô eu, nessa foto, a 32 anos atrás, com a cara cheia de espinhas! Podem ver. É normal a presença de espinhas nessa idade, meu jovem Luidim!
Tina entrega a fotografia para uma das crianças, que, admirada, repassa a fotografia aos presentes.
_ Isso quer dizer que o papai e a mamãe de vocês já foram igualzinhos a você... Ou quase...
Tina tira o segundo papel do caldeirão, sentindo um peso no coração ao ler o conteúdo da pergunta.
_ "Toda vez que me olho no espelho, vejo os olhos da minha mãe, que me abandonou. Quando eu ficar grande, será que vou ser igual a ela?"
Tina engoliu em seco após ler a pergunta. Evitou dirigir os olhos para as crianças, pois tanto Miguel como Pérola haviam sído abandonados pela mãe. O silêncio imperou entre os presentes por alguns momentos.
_ Meu amigo Luidim! Temos traços parecidos nos olhos, no rosto ou no corpo, parecidos com nosso pai ou nossa mãe, mas isso não quer dizer que sejamos iguais a eles. Deus fez cada ser humano, traçando suas características pessoais e seu destino. Ninguém é igual a ninguém!
Francisco interrompeu:
_ Não, tia Tina... A Lenice é igual a Lenir!
Lenir reclamou:
_ Eu tenho a pinta no queixo, que a mana não tem!
Tina completou, olhando fixamente para o boneco:
_ O que importa é que o nosso "eu interior" é só nosso e do nosso Deus. Não importa com quem parecemos fisicamente, nem nossa raça, ou nossa cor.
Tina parou para retirar outro papel do caldeirão.
_ " Eu gostaria de saber se minhas orelhas e meu nariz vão parar de crescer mais que minhas bochechas."
Os rostos dos presentes demonstravam nitidamente a vontade de cair na gargalhada. Porém, dessa vez, Arnaldo, que até então não tinha falado nada, ergueu-se da cadeira e olhou para Luidim e ostentou uma fotografia de seus 12 anos de idade.
_ Pois eu, nos meus 12 anos, nem parecia gente. Parecia um sabugo de milho com a palha seca grudada ainda! Olhem que espantalho que eu era!
Miguel pegou a fotografia do pai e cobriu a boca para não rir. Entregou-a para as outras crianças.
_ Paí... "Isso aí " não pode ser o senhor, não... Tá muito... Diferente.
_ Era euzinho mesmo, filho! E pode dizer que eu tava "feio", porque eu tava mesmo!
Miguel olhou para o pai e deixou escapar:
_ Ainda bem que o senhor cresceu e ficou forte e bonito, né pai?
_ Bom... Tô menos feio que o Luidim. Eu não preciso de máscaras pra me esconder!
As risadas encheram o ambiente. Tina aproveitou:
_"Por que eu não consigo esquecer quando alguém briga comigo?"
Juvenal, que até então ficara calado, olhou para Luidim e retrucou:
_Eu até hoje não esqueço quem me ofendeu, Luidim! Isso é normal!
Tina sorriu.
_Então, todos somos normais, inclusive o Luidim!
_Bruna, a "mãe emprestada"de Pérola, completou:
_ E aquele que maltratou meus filhos, eu também não esqueço! Não julgo o que fez a mãe biológica da Pérola abandonar ela, mas eu não faria o que ela fez. A Pérola é uma criança tão doce, apesar de ser um pouco"barulhenta"...
Pérola manifestou-se:
_Ô, mãe...
_ Deixa eu completar, filha! Barulhenta, mas que eu simplesmente amo!
As perguntas saltam do caldeirão:
_" Por que antes eu pedia ou perguntava pra fazer as coisas que eu gosto, e de um tempo pra cá dá vontade de fazer sem pedir?"
E foi a vez de Adriano olhar para Luidim, e comentar:
_Pois até eu tenho dificuldade em perguntar se eu deveria fazer algumas coisas ou não, e acabo dando com os burros n'água com algumas decisões erradas... Acho que tu é normal, Luidim!
Juvenal completou:
_ Sabe que eu, no dia do acidente que me fez perder a perna e o olho, deveria ter ido levar uma carga de vinho pra São Paulo? Troquei com um colega meu, sem nosso patrão saber... E olha no que deu!
Tina olhou surpresa para a pergunta seguinte:
_ " O que é melhor? Ser inteligente, ou ser feliz?
_ Ilustre Luidim... Ser inteligente é importante, pra não deixar que pessoas de má fé se aproveitem de ti, mas a felicidade e a paz não têm preço!
Teresinha sorriu:
_Eu penso que uma completa a outra, Tina. A gente, lá em Caxias, era "considerado inferior" por não termos um diploma, mas não quer dizer que não saibamos o que é o certo.
Lenice também opinou:
_ Verdade, tia Teresinha... Eu vi no jornal no outro dia, um advogado que vendia drogas... Ele era considerado inteligente, mas era mais burro que uma porta, porque deveria saber que não se deve vender coisas proibidas! Acabou na cadeia! Bem feito!
Do caldeirão saltou mais uma pergunta interessante.
_ "Por que antes eu tinha poucas manias, e agora, tudo que vejo, me dá vontade de copiar?"
_ Que pergunta interessante, seu Luidim! Às vezes, somos escravos da opinião alheia e das propagandas. Os meios de comunicação nos oferecem o que eles querem, e nós somos fracos e acabamos pensando que tais atos e fatos são necessários pra nossa vida e família.
Pérola manifestou sua opinião:
_ Eu comecei a gostar de imitar aquelas tias da televisão. Só que já notei que não consigo! Ficou feio eu fazer o que elas fazem!
Bruna replicou à questão da filha:
_ Claro, amada. A televisão é um truque de som e imagem. A gente não consegue fazer truques de som e imagem!
_Parece que todos somos reféns de alguma cópia ou imitação.
Tina olhou para Luidim, com mais uma pergunta:
_ "Por que antes eu ficava de boca fechada pra tudo, e agora, dá vontade de ter umas cinco bocas, pra falar tudo que tenho vontade?"
Tina olhou para Luidim e falou com carinho:
_Pois tu tá descobrindo a adolescência, que é a necessidade de fazer as palavras explicarem o que tu sente e o que sabe, sem travas na linguagem. Luidim... Descobriu que precisa se expressar com rapidez pra tentar fazer a comunicação o mais rápido possível, com o objetivo de tentar passar um maior número de informações possíveis, em pouco tempo.
Lenir resmungou:
_ Iiiihhhh, mãe! De novo essa linguagem de ex professora! Não entendi nada...
Tina explicou:
_ Perdão pelo atropelo das palavras, mas é exatamente o que quero demonstrar!
_ Como assim, mãe?
Àquelas alturas, as crianças estavam tão absortas no assunto, que nem piscavam.
_ Meus pequenos aprendizes da vida... Só quero dizer que, se a gente usaria cinco bocas pra falar, as frases saíram mais complicadas que essas! Quero dizer que jamais devemos dizer algo "apenas por falar"... É perda de tempo. Devemos ser objetivos e claros, quando falamos. De nada adianta a gente falar um dicionário inteiro de palavras bonitas, se elas não fazem sentido!
Pérola manifestou sua opinião, olhando para Bruna:
_ Ou seja, mãe... Como a senhora diz:" Não fale pelos cotovelos, Pérola! Fale só o necessário!"
Tina concordou:
_ Exatamente isso, amada!
Juvenal olhou para o relógio e interrompeu:
_ Caramba! Já tá na hora de ir dormir, ou me atraso pro programa da rádio de amanhã de manhã!
Adriano concordou:
_Eu também trabalho aos domingos! Temos que "levantar acampamento" também!
_ Posso dormir aqui no Francisco, pai?
Miguel olhou para Arnaldo, interrogativamente.
_ Claro que pode. Mas eu não quero saber de travessuras!
Teresinha sorriu:
_ Deixa comigo, seu Arnaldo. Fica tranquilo, que dou conta desses dois. Vai fazer bem pra eles "trocar umas ideias", depois dessa contação de histórias.
Tina concordou:
_ Concordo plenamente, Teresinha. Crianças... Me ajudam a guardar as cadeiras?
_ É pra já, mãezinha! Vem, Mig! Vem, Chico! Trabalho de equipe, lembra o que a professora ensinou?
Bruna sorriu:
_ Tô vendo que essa "equipe"já tá bem organizada!
_ E bota organizada nisso! Nessa fase são realmente que nem os mosqueteiros: "Um por todos, e todos por um!"

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