86- A cirurgia de Mary

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    _ Vou fazer uma faxina aqui, Edelvina! Aqui só vai ficar coisa que é minha e os móveis! Não quero ver um fio de roupa desse véio nessa casa...
    Com um galão de gasolina em punho, Irene foi encharcando as roupas de Arnaldo, jogadas sobre uma enorme pedra próxima ao galinheiro. Em poucos minutos, um fósforo, e as chamas consumiam tudo. As galinhas, soltas no pátio, pareciam olhar horrorizadas as labaredas que subiam junto à fumaça preta, oriunda da queima de calçados, roupas, fotografias e objetos pessoais de Arnaldo.
    _ Não vai sobrar nada pra contar a história desse véio aqui na minha casa! E se ele não tiver mais as coisas dele aqui, o lugar dele vai ser fora daqui!
    _ E se ele quiser voltar?
    Irene estava colerizada.
    _ Então, vou chamar a polícia de novo, e vou botar ele atrás das grades também, assim como fiz com aquele crioulo perneta! O ramal de telefone que ele instalou aqui tá ao meu favor!
    Edelvina, que acompanhava em silêncio a "limpeza"de Irene, assustou-se com a determinação dela em destruir todos os pertences de Arnaldo. Irene sentiu-se incomodada com o silêncio da amiga.
    _ Não diz mais nada, Edelvina? Tu tá me olhando esquisito... Tá a favor do véio também?
    _ Não, Irene... Não é isso... Eu só tava imaginando a cara dele quando ele chegar e ver que todas as coisas dele sumiram!
    _  Falando em "coisas dele"... Agora que eu notei... Estranho que eu não vi o Miguel ainda... Tu sabe dele? Ele abandonou o véio também? Ou será que aquele filho da puta morreu?
    _ Não soube? O Miguel foi pro quartel... Era o grande sonho dele...
    Irene olhou para Edelvina, pensativa.
    _ É mesmo? Mmmm... Não sabia! Bom... Quando eu saí daqui com o Valderez ele tinha quase nove anos! Faz um tempinho, já...
    _ É... Muita coisa mudou depois que tu saiu daqui...
    Irene girou a mão no ar e aumentou o volume da voz:
    _ Pois a "super Irene" voltou, firme e forte! E tá pra nascer aquele que vai me impedir de fazer o que eu quero aqui! Vou dar um jeito de tirar tudinho que é dele daqui e com o dinheiro dos bichos que vou vender, vou comprar tudo do bom e do melhor pra mim!
    E  mais objetos pessoais de Arnaldo foram sendo arremessados ao fogo, até não restar mais nada dele.
    _ Prontinho! Agora só falta eu conseguir vender os bichos dele e o trator. O carro eu fico pra mim. Vou tirar carteira de motorista e vou fazer voar as tranças! E ai daquele que vai tentar me...
    Irene parou a frase, fazendo uma careta de dor.
    _ Essa maldita ferida que não sara nunca!
    Edelvina ficou curiosa:
    _ Ferida? Onde?
    _ Uma ferida desgraçada nas costas que começou com uma daquelas pintas feias. Tentei queimar ela com um calicida a alguns anos, mas não deu certo.  Deu uma ferida que incomoda muito...
    _ Tá... E quanto tempo já tá em ferida?
    _ Desde que eu saí daqui. Quando eu fui embora com o Valderez já tinha uma ferida que incomodava muito.
    _ E já procurou um médico?
    _ Já, quando eu morava em Caxias, com o Valderez... Mas quando eu ia fazer o tratamento, fiquei grávida...
    Edelvina ficou pensativa. Após um breve silêncio, aconselhou:
    _ Olha...  Tenho uma planta que pode curar tua ferida. Dizem que é "tiro e queda"... Dizem que cura até o câncer.
    Irene olhou para a amiga, interessada na planta, esperançosa da provável cura.
    _ E como se chama essa planta? Ela funciona mesmo?
    _ Calma... Uma pergunta de cada vez...
    Irene aumentou o tom de voz:
    _ Se tu não quer falar, nem oferece!
    Edelvina sentiu-se incomodada com a atitude de Irene, porém, resolveu responder:
    _ É aveloz... É uma planta que já curou as feridas de muita gente...
    _ Então... Vou colocar o dobro da quantidade que o pessoal coloca, aí eu fico boa da noite pro dia... Arruma umas mudas dessa planta!
    Edelvina hesitou. Sabia que cada planta tinha seu limite de quantidade a ser utilizada para fins terapêuticos ou medicinais. Ainda tentou alertar a amiga de que o uso excessivo do aveloz poderia causar danos irreversíveis.
    _ Mas...
    Irene olhou desconfiada e girou nos calcanhares, aos berros:
    _ Que tipo de amiga tu é? Primeiro fala de uma planta que pode curar essa minha ferida que já dura dez anos e depois se faz de sonsa e não quer me trazer! Tá se vendo que tu também tá querendo ficar do lado do véio!
    Edelvina, apesar dos anos de amizade que tinha com Irene, sentiu-se incomodada com as palavras e o jeito que esta proferiu elas.
    _ Vou te trazer a planta, mas não quero ser a responsável, se tu não quiser usar ela da maneira certa!
    Irene apenas esperou a amiga retirar-se, e já foi arremedando-a:
    _"Não quero ser a responsável"... Pena que eu preciso da Edelvina pra me ensinar a usar a planta, senão ia mandar ela "pras Cucuias"!
    De repente, Irene reparou um retrato na parede que Arnaldo mandara pintar. Por um momento, pensativa, passou a mão no quadro.
    _ Miguel... Mary...
    Uma fração de segundos, um estalo! Parecia despertar...
    _ Aquela "coisinha" deve tá rodando bolsinha nas ruas de Caxias pra ganhar a vida!
    Irene não fazia ideia de como ela estava enganada...

                    *
    Na Itália...
    _ Albertina... Eu vou fazer a cirurgia amanhã, e vou voltar a caminhar... E depois, quando eu estiver recuperada, vamos encaminhar a cirurgia da dona Francesca! Ela também vai voltar a caminhar!
    _ Não acha arriscado, Mary?
    _ Riscos eu vou correr se eu não tentar voltar a caminhar e ficar acomodada numa cadeira de rodas pro resto da vida... Eu sei que vou ser uma cobaia, de certo modo...
    Albertina sabia que Mary não mudaria de ideia.
    _ Que o Senhor te proteja, minha menina. Teu coração é tão grande, que Deus vai te ajudar. A Dona Francesca  melhorou muito desde que você veio pra cá, parece até que superou a perda do Pedrinho.
   Mary passou as mãos nos longos cabelos.
    _ Pedrinho... Meu cabelo cresceu até mais forte e bonito depois que vim pra cá... Daquele tempo de cabelo curto, só tenho saudades do Vincenzo, da Fiorella e da Gioconda... O resto eu quero esquecer.
    Mary girou a cadeira de rodas...
    _ Ahhhh... Sinto falta de arrumar os vasos dos túmulos também... Era muito bom... Eu sentia uma paz naquele lugar...
    _ Mas aqui também tem paz, menina.
    _  Quer saber, Albertina? A única coisa que eu vou sentir falta quando eu voltar a caminhar, são as rodas, porque com elas eu fico parelha com a Dona Francesca...
    _  Me diga, meu bem. O que você vai fazer depois que voltar a caminhar?
    _ Quando eu voltar a caminhar? Aaaaa... Deixa eu pensar...  Primeiro, vou levar a Dona Francesca pra um especialista, pra ver se consigo encaminhar um tratamento mais eficaz pra ela se recuperar... Depois, vou tirar carta de motorista, e...
    Mary segurou o queixo, pensativa. Albertina sabia que Mary era capaz de qualquer coisa pela Dona Francesca.
    _ E??? O que mais essa cabecinha tá planejando?
    _ E entrar pra escola de vôo. Já vi que tem várias aqui na Itália!
     Ao ouvir a última frase de Mary, Francesca soltou um sonoro "NÃO"... Surpresas, tanto Mary como Albertina sabiam que aquela palavra saíra do fundo do coração de Francesca.
    _ Ela conseguiu falar!!!
    Mary  posicionou sua cadeira de rodas em frente à cadeira de Francesca, e segurou-lhe as mãos, olhando firme nos olhos da mulher.
    _ A senhora é como se fosse minha mãe, Dona Francesca. Essa reação da senhora prova duas coisas: uma, que a senhora tem chances de voltar ao normal, basta achar o caminho certo.
    Albertina mostrou-se curiosa:
   _ E qual seria a segunda coisa que isso prova?
    Mary abriu um sorriso.
    _Que a partir desse "não", eu posso dizer que agora eu tenho a melhor coisa do mundo!
    Albertina estranhou.
    _ Ué... A essas alturas. o que seria a "melhor coisa do mundo", mocinha maluquinha?
    _ Tenho uma verdadeira mãe, que se preocupa comigo, que me ama, que quer que eu fique bem...
    Mary apertou mais uma vez as mãos de Francesca, olhando no fundo de seus olhos, falando em alto e claro tom:
    _ Mamãe Francesca! A melhor mamãe do mundo! A senhora me aceita como sua "filha emprestada"?
    Ao ouvir a última frase de Mary, Francesca foi lentamente mudando de expressão. Um sorriso foi-se desenhando em seu rosto, e a palavra arrastada saiu de um modo sonoro:
    _ Sim.
    Mary estava eufórica diante das reações e da resposta de Francesca.
    _ Viu como Deus é maravilhoso? Ele me fez nascer no dia em que o Pedrinho virou anjinho! Depois, me fez com a cara igualzinha à do Pedrinho...
    Mary parou a frase por um momento, pensativa, apertando novamente as mãos de Francesca.
    _E quando eu pensei que tudo estivesse perdido na minha vida, esse Deus maravilhoso me levou até o lugar onde descansa o corpo do Pedrinho... Só pra me trazer pra pertinho dessa mãe maravilhosa...
    No dia seguinte, em frente ao Policlínico Sant'Orsola Bolonha, melhor hospital da Itália...
    _  Vou entrar... Vai comigo, Miloca?
    _ Sim, Mary. São ordens da patroa! Só vou sair daqui quando a senhorita ganhar alta.
     Enquanto entravam no hospital, a jovem Mary não perdeu a oportunidade de fazer uma brincadeira:
    _ Então, a senhora vai ter que esperar algumas horas. Acho que vão me desmontar e remontar inteirinha!
    _ Não vai ser bem assim, mas eu fico preocupada...
    _ Enquanto eu estiver sendo operada, não se esqueça de ir até a capelinha e agradecer ao bondoso Deus por eu ter a oportunidade de tentar ficar boa , dona Miloca!
    _ Mas, agradecer antes de saber o resultado?
    _ Claro... Pra Deus nada é impossível! E eu tenho certeza que vou ficar boa!
    Albertina sorriu.
    _Quem dera todos tivessem a fé que você tem, minha menina. Está sempre feliz!
    _ E por que eu não estaria? Tenho alguns probleminhas e um montão de soluções! A cirurgia tem seus pontos positivos... A Dona Francesca vai ter coragem de tentar ficar boa também e eu saio daqui "reformada"!
    Albertina concordou:
    _ É... É tudo um ponto de vista... E você tá vendo um copo pela metade de água como "meio cheio"...
    _ Viu só, Albertina? Ainda tenho a metade do copo...
    A voz impessoal da enfermeira chamou:
    _Mary Engelmann?
    _ Io...
   
     

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora