74 - Futebol e lavoura

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_ Acho que hoje de manhã vamos fazer a última consulta com o "arrumador de ossos" . Da outra vez que te levei lá, ele falou que tu já pode parar de usar as muletas e tentar fazendo alguma atividade física pra treinar a caminhada.
Miguel respirou aliviado.
_ Até que enfim! Posso abandonar essas pernas de pau! E voltar aos esportes! O futebol me espera!
_ Futebol? Devagar, guri! Lembra o resultado do Kung Fu?
_ Aaaa, pai... No futebol não vai dar acidente! Eu já combinei com a galera que por enquanto vou jogar no gol.
Arnaldo olhou para o filho com ar de preocupação.
_ Galera? E quem faz parte dessa "galera"?
Miguel abriu um sorriso largo.
_ Calma, pai! São os meus amigos de sempre: as manas, o Chico, a Pérola, o Ad...
Arnaldo respirou aliviado.
_ Ainda bem! Essa tal aborrescência pode te trazer alguns "amigos da onça"!
Miguel arregalou os olhos, parecendo não compreender.
_ "Amigos da onça"??? Que diacho é isso?
Arnaldo sorriu.
_ São aqueles que se dizem amigos pra se aproximar pra oferecer drogas e depois metem a galera toda numa baita enrascada.
_ Ahhhh bom! A Brigada Militar fez um trabalho na escola com a gente sobre isso!
_Bom... Mas, voltando ao assunto das muletas...
_ Eu só sei que não quero mais usar aquelas pernas de pau, nunca mais! A gente não sai do lugar!
_ Mas elas te ajudaram a ficar bom . Agora, graças a elas, tu não tá numa cadeira de rodas nem numa cama.
_ E graças a elas vou voltar aos meus esportes, pra criar músculos e ficar forte.
Arnaldo pousou a mão no ombro do filho.
_ Por falar em"ficar forte"... Que tal me ajudar hoje à tarde com a plantação de mudas de hortaliças? Essa noite choveu bastante e é bom pras mudas pegar.
_ Se não estiver chovendo, eu ajudo. Mas se chover, eu vou lá nas manas. Posso, né? Porque se eu me molhar, posso ficar gripado, né?
_ Olha... Desde que vocês não se metam em alguma confusão, pode... Mas agora vamos, que não podemos atrasar na última consulta com o massagista.
_ Massagista não, pai! É "arrumador de ossos"! Ele me arrumou todinho!
A paisagem pelo vidro do carro de Arnaldo parecia diferente aquele dia. Após ser liberado das muletas pelo massagista, os olhos de Miguel brilhavam. As palavras dele saíam atropeladas, de tantos planos para executar.
_ Olha, pai... Eu quero logo voltar a praticar esportes! Quero criar músculos pra defender a mana quando aquele monstro que machucou ela vier aqui!
_ Calma, filho! Isso é planejar vingança. Deus não gosta disso. Ninguém deve fazer justiça com as próprias mãos. Deixa quieto... Deus sabe quando ele vai ter que pagar pelos erros dele.
_ Eu posso planejar vingança, sim! A Mary foi machucada por aquele sujeito e ele tem que pagar caro! O Chico vai me ajudar...
Arnaldo sentiu que não adiantaria bater de frente com as idéias do filho, pois já fora adolescente e impetuoso. Porém, tentou acalmar Miguel, mudando de assunto.
_ E aí? Vamos fazer aquele carreteiro de charque hoje? Aí tu vai ficar forte! Depois, de tarde vamo plantar as hortaliças, que a terra tá molhadinha.
Miguel fez um muxoxo.
_ Mas pai... Eu tinha meio que combinado de ir lá nas manas e no Chico. A Dani, a Pérola e o Ad vão lá hoje também.
Arnaldo olhou desconfiado para o filho.
_ O que essa equipe de aborrecentes tá tramando?
_ Nada, pai. Combinamos de fazer um trabalho de escola. Tamo todos juntos na mesma sala e formamos um grupo pra fazer um trabalho de ciências.
_ Ahh bom. Nesse caso tu pode ir. Mas eu vou plantar as verduras. Acredito que sobrem mudas, aí vou levar elas pra plantar lá na horta da Tina. Assim ela vai ter verduras fresquinhas, e ela precisa ter uma alimentação saudável pra ficar forte e vencer o câncer.
Miguel olhou para o pai sorrindo e deixou escapar baixinho:
_ Mmmmm... Acho que vou ter uma mãe nova!
_ Não precisa cochichar, guri... Eu escutei o que falou! Eu tenho outras preocupações além de procurar uma substituta pra tua mãe! Tenho que cuidar de ti até criar juízo nessa cachola... E eu prometi pro Claudio que eu não deixaria a Tina e as meninas desamparadas.
Miguel sorriu, desviou o olhar, e ficou assobiando baixinho, enquanto Arnaldo preparou a refeição do almoço.
_ Até posso entender que tu tá feliz em abandonar as muletas, mas não pensei que ficasse tão faceiro assim. Vai lavar as mãos e arrumar a mesa. A bóia tá quase pronta! Só falta fazer a salada. Depois do almoço vou logo plantar as verduras, porque o tempo tá pra chuva de novo.
_ E eu vou lá nas manas, fazer o trabalho da escola.
_ Não quer me ajudar mesmo a plantar primeiro? Assim não precisa caminhar até a casa delas, porque depois que eu terminar de plantar aqui vou lá na Tina também. Ela vai voltar da radioterapia e vai ficar feliz em saber que alguém se preocupou em plantar umas verduras pra ela..
Miguel, colocando os pratos e talheres sobre a mesa, ergueu os olhos,
_ Mas tu disse que vai chover... Daí eu posso molhar, e ficar doente...
_ Tá bom! Já vi que vou ter que plantar sozinho mesmo! Tá tudo certo... Ao almoço, guri! Depois, o paizão aqui vai pra roça!
_ E o filhão aqui vai pra casa das manas, antes que a chuva me pegue!
_ Mas a Tina tá na radioterapia hoje. As meninas e o nenê devem estar na casa da Teresinha. Não sei se é bom vocês ficarem sozinhos lá, sem um adulto.
_ É... Podemos fazer o trabalho na casa do Chico, então. É no mesmo pátio!
_ Mas nada de incomodar a Teresinha, porque ela precisa cuidar dos dois nenês. O Claudino e a Valéria dão trabalho. Combinado?
_ Claro, pai!
Após almoçar, Miguel não viu a distância entre sua casa e a casa das gêmeas. Os colegas da escola não demoraram à chegar.
_ Vamos fazer o trabalho lá na casa do Chico, galera!
_ Boa ideia! Assim vamos fazer rapidinho, aí podemos bater uma bola no campinho depois. O "arrumador de ossos" me liberou pro futebol hoje de manhã!
_ Aêêê!!!
O grupo de crianças estavam finalizando o trabalho de Ciências, quando o céu escureceu e uma densa cerração desceu sobre o campinho onde planejaram o jogo.
_ É chuva! Não... É só cerração...
_ A cerração é chuva de molhar bobo, gente! É ótima pra um bate bola de primeira!
_ Aêêê!!!
_ Vamo guardar o material e pegar a bola...
_ O campinho nos espera, galera! Vamo baixar a grama de tanto jogar!
Teresinha interveio:
_ O campinho do potreiro? Se engrossar a cerração ou chover venham logo pra casa, porque eu prometi cuidar de vocês e não posso sair com o Claudino e a Valéria aqui.
_ Tá bom, tia Teresinha!
As crianças, com a bola embaixo do braço, não levaram muito tempo pra estar todos na grama do potreiro.
_ Falta medir as goleiiras!
Dani sugeriu:
_ Eu vou jogar descalça! Meus chinelos vão servir pra marcar os limites de uma goleira. Pode ser?
Miguel olhou para os próprios pés.
_ Eu também vou tirar os meus, então... Afinal, vou ficar no gol mesmo!
_ E quem vai no outro gol?
As equipes e posições de jogo foram escolhidas e deu-se início do jogo. Cada chute na bola, com o potreiro molhado, tirava pedaços da grama.
_ É pra acertar a bola, não a terra, Chico!
Em um determinado momento, uma chuvinha fina começou a descer.
_ Iebbbba! Jogá bola na chuva é legal! A gente não sente que tá molhado!
_ Então, bola pra frente, galera! O jogo ainda não deu 90 minutos!
Dani emendou:
_ E vamo ter os acréscimos, gente! O Mig tá fazendo cera pra largar a bola do gol pro campo! Eu quero é jogá!
Lenice olhou para os próprios pés e sugeriu:
_ Vamo nós também tirar os chinelos! Com esse barro não dá! Vai arrebentar as tiras, e a gente não sai mais do lugar...
Ademir sugeriu:
_ Nova regra do jogo, Dani! Todo mundo descalço!
Os chinelos pareceram voar até a beira do campinho. Em segundos, estavam todos descalços. Ademir, entre um passe de bola e outro:
_ Assim que é bom jogar! O chinelo atrapalha!
_ Chega de papo, galera! Joga a bola! Aqui, pra Dani, que ela vai tratorar a bola pro gol...
_ Gooooooool!!!
_ Aêêê!!!
Dani e Ademir comemoraram o gol, pulando dentro de uma poça de lama na beira do campinho. Os cabelos loiros contrastavam com a cor da lama no corpo e no rosto. De repente, uma voz altiva:
_ Então é por isso que tu não pôde me ajudar a plantar as verduras? O futebol foi mais importante...
Miguel olhou para o pai, ficou corado e baixou o olhar.
_Pai!!!
Arnaldo estava sério, segurando uma enorme bandeja de mudas de hortaliças.
_ Tu tava com medo de ficar doente se me ajudasse a plantar as verduras, mas pra jogar uma pelada na chuva, tu não vai ficar doente, né?
_ Desculpa, pai! A gente terminou o trabalho da escola e resolveu vir jogar bola. Não tava chovendo quando começamos a jogar!
Arnaldo olhou para o grupo, interrogativamente.
_ E vocês, pequenos aborrecentes... Os pais de vocês estão sabendo dessa proeza?
As crianças entreolharam-se. Pérola arriscou responder:
_ Não...
_ Taaaaa...E querem continuar jogando?
Àquelas alturas, as crianças não compreenderam mais nada. Miguel olhou para o pai, com cara de preocupação.
_ Vai nos dar castigo?
_ Mmmmm ... O que tu acha que eu deveria fazer?
_ Bahhhh! Não sei...
Arnaldo olhou para o grupo, com ar desafiador.
_ Querem mais um jogador pro jogo?
Mais uma vez, as crianças entreolharam-se, receosas do castigo que as esperava.
_ Mmmmm... Talvez...
_ Então vamos fazer um trato! Vocês me ajudam a plantar essas hortaliças pra Tina que eu jogo com vocês! Depois, vamos todos tomar um banho quente e colocar roupa seca, pra não ficar doentes.
_ Aêêê!!!
A comemoração das crianças deixava claro que o trato estava aceito.
_Trabalho de equipe, crianças... Alguns arrancam o picão do canteiro, outros arrumam um pouco o canteiro e os outros plantam. Eu vou medir a distância entre as mudas, fazer as covas e colocar o adubo orgânico.
Em pouco tempo, o trabalho estava concluído.
_ Agora, ao jogo! Deixa eu tirar minhas botas, pra ficar parelho com vocês!
Miguel reparou que Lenir ficou fora do grupo. Quando aproximou-se, notou as lágrimas em seus olhos.
_ O que aconteceu, Lenir? Tu te machucou?
A menina enxugou os olhos com as costas das mãos.
_ Nada, Mig... Quando eu vi teu pai tirando as botas pra jogar com a gente, eu lembrei do meu pai... Ele também jogava com a gente...
_Não chora... Às vezes também me lembro da minha mãe... E sinto muito a falta de uma mãe...
_ Não pensei que teu pai era tão legal, Mig! Ele parece muito com meu pai...
Miguel olhou para os olhos cheios de lágrimas da amiga e brincou:
_ Ahhhh, mana! Eu empresto meu pai pra ti...
Lenir abriu um sorriso tímido.
_ E eu empresto minha mãe pra ti!
_ Tá bom, mana! Por hora, somos uma família, combinado?
A chuva e o barro foram os companheiros de jogo daquele grupo de crianças e de Arnaldo. Ao término do jogo, Dani reclamou:
_ Mas já? E os acréscimos? Quero jogar mais...
Arnaldo pousou a mão no ombro da menina.
_ Acabou sim, Dani... O combinado era esse... Agora, vamos tomar um banho quente e colocar roupa seca. Vou pedir pra Teresinha fazer um café da tarde reforçado pra todos nós. Depois eu levo todo mundo pra casa, pra não molhar de novo.
Arnaldo olhou para Lenice.
_ Podem emprestar uma roupa seca pra cada uma das meninas? Tenho uma muda de roupa pro Miguel no carro porque já imaginei que ele ia precisar... E o Chico pode emprestar roupa pro Ademir, né?
Francisco confirmou:
_ Claro!
_ Então, bora pro chuveiro! As meninas vão primeiro! Depois, os meninos.
Tina, ao retornar da radioterapia, estranhou:
_ Ué... Até parece que os duendes invadiram minha horta... Tá sem inço e com hortaliças plantadinhas!
Arnaldo brincou:
_ Os duendes e o Papai Noel vieram limpar tudo e plantar. Gostou?
_ Adorei!
Arnaldo ergueu a mão, apontando o céu.
_ Ops!
Tina caiu no choro.
_ O Claudio sempre fazia isso... E aí dizia:" adorar é um verbo que se deveria conjugar só com Deus"...
_ Então vamos agradecer a esse Deus maravilhoso, por ter mandado o Papai Noel e os duendes logo pra cá! Assim, logo, logo, tu pode comer verduras fresquinhas para mandar esse câncer pra Conchinchina!
_ E onde fica isso?
Arnaldo sorriu.
_ Dizem que é pertinho do Beleléu, além das Cucuias... Ali, entre o Raio que o Parta do Norte e o Cafundó do Judas... Eu soube que ali todas as vacas estão no brejo...
Ainda com lágrimas nos olhos, Tina soltou uma gargalhada.
_ Um milhão de graças a esse Deus maravilhoso, por me dar um amigo de verdade como tu, Arnaldo! Obrigada mesmo!




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