30 - O pesadelo de Irene

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O caminho estava encharcado da chuva. Irene sentia os sapatos de salto alto afundarem na lama. Por mais que tentasse, não conseguia dar um passo sequer... Nos ouvidos, o eco da voz de Mary:
_ Mãe! Minha irmãzinha tá chorando... Mãããe! Mãe! Mãe!
Pela primeira vez na vida, a fumaça de cigarro parecia sufocar Irene. Sentiu que procurava ar para seus pulmões, mas parecia que este lhe fugia das narinas. Mas não se deu por vencida:
_ Tu não tem irmãzinha, Mary... Meu nenê não nasceu ainda! E aquela cria do diabo do teu irmão deve tá aleijado, do tamanho do véio!
_ Não, mãe! Um anjo me falou que essa nenezinha tava na sua barriga e teve que partir porque a senhora não deixou ela nascer. Ela tá chorando porque a cinta ainda aperta o pescocinho dela e a fumaça do cigarro continua sufocando seu narizinho.
Irene tentou enxergar onde Mary estava, porém a escuridão não permitia.
_ Onde tu tá, sua peste? Eu dei um jeito naquele nenê antes dele nascer. Tu não sabe de nada!
_ Eu tô onde minha irmãzinha tá... Tô fazendo curativos no pescocinho dela, que tá cheio de feridas... E tô soprando a fumaça de cigarro embora, pra ela conseguir respirar... Deus me pediu isso!
_ Eu ainda vou te achar, coisa esquisita!
Irene tentou correr na direção da voz de Mary, mas sentiu que a lama subia até seus joelhos. De repente, sentiu-se envolta e presa dentro de um casulo repleto de fumaça.
_ Não consigo respirar aqui.... Tô sufocando... Tão apertado... Meu Deus...
Uma voz límpida e clara cortou o ar, ecoando repetidas vezes dentro do casulo e adentrando as veias de Irene:
_ Invocas meu nome...Eu te dei a última chance. Foi a última... A última... A última...
Valderez entrou no quarto pela terceira vez naquela manhã, gritando com Irene:
_ Acorda, dorminhoca! Já é quase meio-dia! Já perdeu o café da manhã e por pouco não perde o almoço! Assim, tu tá dando chance pra uma bela anemia!
Irene entreabriu os olhos e o rosto inteiro se contraiu. Estava colerizada pelo sonho e pelas palavras de Valderez. A palavra "chance" ainda ecoava forte e repetidas vezes nos seus ouvidos.
_ Até tu vem me encher com essa tal de "chance"! Aquela peste veio me infernizar em sonhos, e tu vem me azucrinar acordada!
_ De quem tu tá falando?
Irene, a essas alturas, já estava aos berros.
_ Mary! Ela é a culpada de tudo que eu tô passando! Ela me paga! Vou aumentar o castigo dela!
_ Mas não precisa gritar assim! Isso vai fazer mal pro nenê...
_ Vou gritar quando e como eu quiser! E pouco me importa se faz bem ou mal pra alguém!
Irene levantou de modo desajeitado da cama e saiu do quarto batendo a porta. Dirigiu-se até o quarto de Mary e surpreendeu-se ao notar que a cama não estava desfeita. Passeou o olhar pelo quarto e deu por falta da mochila, que Mary costumava deixar na mesinha da cabeceira. Acendeu um cigarro e soltou várias baforadas no cômodo enquanto tentava pensar em uma forma de encontrar a menina.
_ Onde tu tá, sua peste?
Imediatamente, vieram-lhe à cabeça as imagens do pesadelo: usara essa frase ao procurar Mary em seu sonho. Sentiu-se travada mais uma vez, respirando com dificuldade. A sensação de que a própria fumaça sufocava e paralisava seu corpo era muito forte.
_ Eu vou te achar, coisa esquisita! Ahhhh, eu preciso... ar...
Não chegou a terminar a frase. Segurou-se no vão da janela, arregalando os olhos cada vez mais. Com o olhar arregalado e fixo naquela janela, Irene permanecia estática. Dois filetes de espuma escorrendo pelos cantos da boca eram sinal claro de que aquela crise de cólera era extrema. Com o grito que mais parecia o urro de uma fera enjaulada brotou de sua garganta, ela sentiu suas pernas fraquejarem e o baque ao chão foi inevitável.

*

Mara sentia-se receosa, mas bateu palmas em frente à antiga casinha de madeira:
_ Ô de casa!
A porta entreabriu-se e Lauro saiu lentamente, pedindo silêncio:
_ Psiu! O nenê acabou de pegar no sono... Acabei de fazer ele dormir.
_ Sua mãe não está? Combinei com ela que eu visitaria vocês hoje.
_ Ela tá lá nos fundos, no tanque, lavando a roupa do nenê. Temos pouca roupinha pra ele, aí não podemos deixar suja. Temos que lavar assim que tira do corpo.
As palavras de Lauro deixaram Mara sensibilizada:
_ Como assim? Tem tão pouca roupa pro nenê que precisa lavar assim que ele tira?
Lauro baixou os olhos, envergonhado:
_Professora... Desculpa se não temos dinheiro pra comprar bastante roupa pro nenê. Só o Lucian que trabalha de pedreiro, e a mãe sempre diz que todos temos que ajudar a "apertar o cinto".
Lauro abre a porta:
_ Não repara a bagunça, profe...
Mara entra na pequena residência, surpresa. Reparou que tudo era reaproveitado de alguma forma: Latas de óleo de soja vazias tinham sido transformadas em canecas, com alças e tudo; saquinhos de leite entrelaçados formavam o lastro das cadeiras da família; no chão, ao lado da porta, pantufas confeccionadas com palha de milho e lã crua de ovelha; e por último, o nenê, adormecido em um berço improvisado em uma caixa frigorífica, de transporte de leite em saquinho, forrada com pele de ovelha.
_ Sente-se, professora! Vou chamar minha mãe...
_ Não precisa, Lauro... Leve-me até ela. Eu não vim aqui para atrapalhar a família. Vim pra ajudar. Se ela precisar, até ajudarei a lavar ou estender a roupa.
Lauro surpreendeu-se com a simplicidade da professora.
_ A senhora sabe lavar roupa, profe?
Mara sorriu diante da pergunta inocente de Lauro.
_ E tu pensas que professores são tão ricos que podem contratar empregadas? Eu tenho um filho pequeno também.
_ Mas profe... Eu nunca vi a senhora...
Lauro interrompeu a própria frase, um rubor vermelho subiundo-lhe às faces.
_ Grávida? Pois meu filho é adotivo, Lauro. Henrique foi encontrado no interior de uma oca de índios, em uma pequena aldeia dizimada por posseiros de terras. É um amor de criança.
Lauro, a cada palavra de Mara, mostrava mais surpresa. Levou a professora até o tanque, onde se encontrava a mãe do menino.
_ Essa é minha mãe, professora. Vou cuidar do nenê, porque deixei ele sozinho lá na cozinha, no ninho dele, pra ficar quentinho.
Mara sentiu curiosidade ao escutar as últimas palavras do menino. Disfarçou, dirigindo-se à mãe.
_ Bom dia... Sou a professora Mara. A senhora deve ser a dona Cecília. Reparei que a família tem coisas lindas na cozinha, verdadeiras obras de arte.
_ Bom dia, professora... Obras de arte? Onde?
Mara sorriu.
_ Estou falando das suas canecas feitas de latas de óleo de soja, e outras coisas que vi. Acho o máximo reutilizar utensílios no dia a dia.
_ Pois eu jogo muito pouco no lixo. Como não trabalho fora, enquanto eu cuido do nenê do Lucian adapto tudo o que dá pro nosso dia a dia. Assim, a natureza agradece e não gastamos tanto. Vamos entrar, professora?
Mara sentiu-se sem jeito diante daquela senhora tão simples e batalhadora.
_ Não quero atrapalhar seu trabalho.
_ Não tá atrapalhando, professora. É uma honra receber a senhora. Nunca uma professora do Lauro veio aqui, faço questão que entre. Fiz umas rosquinhas de polvilho deliciosas.
Mara seguiu Cecília até a cozinha. Lá, debaixo da mesa, estava Lauro. O menino estava sentado no chão e, ao lado dele, a caixa frigorífica, onde dormia a criança. Suas perninhas fofas de bebê apontavam para fora da pequena caixa, levando um sorriso ao rosto da mulher.
_ Então é aí que o nenê gosta de ficar?
_ Claro, professora! Aqui na cozinha é quentinho.
_ Vocês não tem um berço?
_ Não. O Lucian é o único que trabalha fora, de pedreiro. Não deu pra comprar um berço ainda. A mãe do nenê sumiu logo depois que nasceu, e nós vamos cuidar desse anjinho!
Com uma sombra no olhar, Cecília relatou a Mara todo drama que a família passou quando a jovem namorada de Lucian simplesmente abandonou o filho e o companheiro, sumindo no mundo.
A professora se apiedou daquela doce senhora.
_ Pois então, dona Cecília... Eu gostaria de ajudar. Eu estou comprando uma cama para o Henrique, porque o berço está ficando muito pequeno. Aceitariam o berço de presente?
Cecília olhou para Mara como se não acreditasse no que acabara de ouvir. A professora, alheia à reação incrédula da mãe de Lauro por estar observando o pequeno bebê se mexendo durante o sono, prosseguiu:
_ Lauro já me falou desse nenê quando cheguei, e tenho bastante roupinha quentinha que vai servir nele também. Aceita?
_ Se aceito? Mas precisa perguntar? A senhora caiu do céu, professora! Deus é muito bom...
Cecília ajoelhou-se e uniu as mãos em gesto de oração. Mara sentiu seus olhos marejarem.
_ Não, dona Cecília! Eu só faço o que Deus quer que a gente faça!
_ Está certo, professora! Mas agora você aceita um café e umas rosquinhas? Lauro e eu fizemos ontem à noite. Ele me falou que viria, e recebi o memorando do diretor.
_ Sim. Vocês são os primeiros que eu visito. Os próximos serão a família Neves, do Francisco, colega do Lauro.

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora