90 - A força do amor

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Naquele dia, a fila do orelhão parecia interminável. Chegou à Base Militar a notícia de que manifestações "cara-pintada" estariam acontecendo pelas ruas de Santa Maria e de muitas cidades brasileiras. A insatisfação de parte da população se dera por discordância de algumas decisões do Governo Federal. Fato que gerava um certo desgosto dos manifestantes pelos militares.
_ Hoje vou pedir pra chamar o ramal da rádio. Talvez o Juvenal saiba o motivo pelo qual não foi o meu pai que atendeu da outra vez e sim um tal de "Macega"...
Enfim, chegou o momento que Miguel tanto esperava. O chamado na central do senhor Arlindo...
_ Ramal 123, por favor... Rádio Esmeralda...
_ Pois não! Aguarde um momento, por favor.
Ao completar a ligação para a rádio, após identificar a voz no outro lado da linha, os azuis olhos de Miguel se iluminaram de repente.
_ Mig!!! Que saudade! Iebbbba!
Miguel conseguiu sentir, mesmo de longe, a alegria de Lenir, ao reconhecer a voz do amigo.
_ Seu Juvenal! Não posso acreditar! É o Miguel no telefone! Que felicidade!
Um sorriso iluminou o rosto do rapaz. Os olhos dos recrutas que aguardavam a sua vez de usar o orelhão pareciam esboçar uma certa curiosidade.
_ Eu liguei outro dia pra casa do pai, mas quem atendeu foi um tal de "Macega"...
Lenir sabia que Miguel não tinha muito tempo para usar o telefone, por isso resumiu toda a situação pela qual Arnaldo passara.
_ Então, não preciso mais ligar pra casa... Meu pai não tá mais lá...
_ Ele tá morando com o seu Juvenal, Mig. Se recuperou bem da cirurgia e tá até ajudando na padaria.
_ Cirurgia? O pai tá trabalhando na padaria?
Após explicar minuciosamente a situação da cirurgia e da volta de Irene, Lenir pediu:
_ Não te preocupa, Mig! Faz o teu melhor aí no serviço militar, que a gente cuida bem do teu pai aqui! E toda vez que tu precisar de um ombro, pode me chamar! Afinal, de certa forma, tu sempre foi nosso mano mais velho... E te desejo tudo de bom!
Os olhos de Miguel brilharam ainda mais ao ouvir as palavras de Lenir. Sentiu como se aquele telefonema fosse um divisor de águas em sua vida. Respirou fundo e despediu-se:
_ Obrigado mesmo, mana! Eu tô muito feliz por tudo isso que vocês tão fazendo pelo meu pai. Tô juntando dinheiro pra eu voltar pra visitar vocês, aí vou te dar um baita "quebra-costelas" e um beijão especial.
_ E a gente vai tá te esperando de braços abertos, Mig! Tamo morrendo de saudades de ti!
Miguel sentiu o coração bater mais forte.
_ Escreve aí que eu vou matar essa saudade logo, logo! Me espera, maninha. Porque minha vida é com vocês! Eu amo vocês!
Nem ao menos Miguel compreendeu o motivo por ter falado com tanta espontaneidade. Do outro lado da linha, após as simples palavras de Miguel, o coração de Lenir parecia querer sair após identificar a voz no outro lado da linha. boca. Colocou a mão no peito e sentiu o trote da própria pulsação, desenfreada.
_ Poxa, Mig... O que tá acontecendo comigo? Nunca me senti assim... Meu coração parece cavalo trotando sem freios!
_ Então, somos dois... Tal como o Canela e o Geleia! Meu coração também tá a milhão! Quando eu voltar, vamos cavalgar juntos pra matar as saudades! Vou resolver o problema do papai e vamos puxar uma corrida nos cavalos. O Geleia e o Canela que se preparem!
Com um brilho novo no olhar, Miguel passou o telefone para o seguinte da fila do orelhão. Os olhares dos recrutas deixavam nítida a curiosidade. Eduardo, o recruta parceiro de treinamento de Miguel, não aguentou:
_Ô, meu amigo... Tô vendo que tu tá faceiro feito pinto no lixo! É o teu pai que te deixou assim? Ou é uma guria?
A princípio, Miguel franziu o cenho, depois sorriu:
_As duas coisas... Tenho que arrumar um jeito pra ir até Igrejinha o mais rápido possível! Assim que terminar a fase de treinamento, vou tirar um fim de semana e ir até lá... Tenho que tirar umas dúvidas... Parece que a Dona Irene andou mexendo os pauzinhos e maltratando meu pai! Ela deve ter feito as coisas mudarem lá em casa...
Naquela noite Miguel demorou para adormecer. Seu olhar parecia encontrar o passado... A primeira infância, onde ele e Mary brincavam com os aviões de ossos de porco... Em seguida, enfileiravam-se os amigos da segunda infância: Francisco, Lenice, Lenir, Pérola, Sueli...
_ Sueli... Minha primeira paixão... Bem que o pai disse que um dia eu sentiria um amor diferente, mais maduro... Chegou a minha hora...
Duas horas da madrugada... Rojões, apitos, tiros, gritaria interminável à todo volume, despertando a base inteira...
_ Acionamento!!!
O temido acionamento era um toque de surpresa feito em horário aleatório, fazendo a base inteira sair em questão de minutos, em correria frenética pela cidade.
_ Em forma, molengas! Um, dois!
_ Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!
Os berros do Sargento Brackemeyer faziam ecoar os tímpanos da tropa inteira:
_ São só dez quilômetros, pra percorrer em menos de uma hora! Um dois, correndo... Um, dois...
Berradas a plenos pulmões pelos recrutas, canções de TFM cortavam a madrugada nas ruas de Santa Maria. O objetivo era percorrer o trajeto de dez quilômetros em menor tempo possível... Cinquenta minutos e estavam no destino estabelecido por Brackemeyer.
_ Atenção tropa! Descansar!
Brackemeyer passeou os olhos de modo altivo pela tropa enfileirada. Ao pousar o olhar sobre o recruta de número 50, o Sargento notou uma leve distração de sonolência. A ironia não tardou nas palavras ásperas do oficial:
_ Precisando de uma muleta, 50?
O recruta 50 ruborizou diante da ironia do Sargento.
_ Não, Senhor Sargento Brackemeyer!
Brackemeyer não perdeu a oportunidade de fazer chacota. Foi andando entre as fileiras de recrutas, fazendo questão que todos o escutassem.
_ O 50 é o recruta universal! Tá em todas as "merdas"que dá!
E voltando â frente do recruta 50...
_ Paga dez, 50!
_ Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!
_ Fica em sentido pra falar comigo, animal! Paga trinta! Um, dois... Um, dois...
O recruta 50 nem havia se dado conta de mais uma distração. Passou a pagar a punição, apesar de estar sem fôlego pela corrida intensa. A voz de Brackemeyer soou novamente feito trovão:
_ E quem mexeu paga mais que ele!
A geada fria ainda não se dissipara na volta. As canções de TFM, a plenos pulmões, pareciam espantar qualquer frio que ameaçasse a corrida dos recrutas. De volta à base, o desjejum seria o primeiro destino, porém...
_ Atenção, tropa! Descansar!
Quarenta e cinco minutos em posição, sem mexer um músculo, em plena madrugada, sem o desjejum, após uma corrida exaustiva de treinamento... Miguel sentiu mais uma vez a glicose faltar-lhe nas veias. Os olhos estáticos denunciavam que algo não estava bem. Porém, uma força desconhecida parecia recarregar lenta e silenciosamente o viço da resistência, mudando sua fisionomia. Reuniu toda sua energia para manter a postura exigida pelo Sargento, ao menos até serem dispensados para o desjejum... Por um momento, parecia sentir uma estranha mão segurando seu ombro para que se mantivesse firme e desperto. Arregalou os olhos de repente... Um estranho vulto no subconsciente pareceu trazê-lo de volta à realidade... O pensamento parecia gritar diante daquela imagem:
_ Maryyyyyy!!!
O sentido de Miguel despertou imediatamente, deixando despercebido aos olhos de Brackemeyer seu breve mal estar... Suas pupilas procuraram o céu, e, silenciosamente, seu pensamento agradeceu:
_ Obrigado, meu Deus... Obrigado, meu Pai... E... Obrigado, mana.
_ Atenção, molengas! Um dois! Um dois! Sentido!
_ Sim Senhor Sargento Brackemeyer!
Mais de um mês de treinamento intensivo seguiu-se. Entre encarar a fria geada ou a fisionomia dura de Brackemeyer, muitos recrutas ainda preferiam o frio. Entre acionamentos, treinamentos de incêndio, estáticos, tiro, sobrevivência, resistência física, os xingamentos do Sargento pareciam atropelar a tropa inteira, completando a exaustão. Junho... Geada intensa... O dia seguinte encontrou a tropa em mais um desafio proposto pelo Sargento Brackemeyer:
_ Atenção, tropa! Vocês estão escalados em grupos de 8 recrutas para uma série de treinamentos intensivos! O primeiro deles será atravessar a nado o açude, usando apenas um braço para nadar... Com o outro braço deverá segurar o morteiro em seco fora d'água. Esse morteiro vai representar o fuzil, que numa situação semelhante, não deverá ser atingido por uma gota d'água sequer! Alguma dúvida?
_ Não, Senhor Sargento Brackemeyer!
_ Atenção, recrutas... Os grupos serão formados por escalação de altura! O grupo 1 será dos 8 recrutas mais altos, e assim, sucessivamente! Eu e o cabo Rudhinski vamos estar na ilha no centro do açude, e cada recruta deverá retirar na ilha, com o cabo Rudhinski, uma bandeira, em seguida, nadar até o final do trajeto sem molhar a bandeira nem o fuzil! Entendido?
_ Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!
_ Mais um lembrete, recrutas! Em qualquer circunstância dos treinamentos, se estiverem em risco de vida, a ordem é reagir!
_ Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!
Terminada a instrução, uma risadinha irônica do cabo Rudhinski não passou despercebida por Miguel.
_ Olha, eu acho que aí vem treinamento da pesada pra nós de novo! Rudhinski tá tramando contra nós...
A intuição de Miguel não falhou. Os grupos formaram-se à beira do açude. Os recrutas iam nadando um a um até a ilha, a fim de retirar a bandeira com Rudhinski e completar o trajeto até o final, conforme as instruções recebidas... Porém, cada vez que o recruta aproximava-se de Rudhinski para retirar a bandeira, o cabo afundava propositalmente o morteiro com o pé, evitando assim que nenhum recruta conseguisse cumprir a missão com o morteiro seco. Rudhinski comemorou:
_ Até agora ninguém conseguiu completar o percurso, seus molengas! Tô pagando pra ver alguém cumprir a tarefa e ficar com o morteiro sequinho!
A voz altiva do Sargento Brackemeyer interrompeu a gargalhada do cabo Rudhinski.
_ Equipe quatro! Ao açude!
Miguel olhou desolado os quatro primeiros recrutas do seu grupo serem "afundados" propositalmente pelo pé impiedoso de Rudhinski. Ao dar as primeiras braçadas com o braço direito, Miguel segurava firmemente o morteiro para o alto, enquanto seu instinto de sobrevivência lhe permitia procurar uma estratégia para conseguir pegar a bandeira na ilha central e atravessar o açude com o morteiro seco. Ao aproximar-se de Rudhinski, reparou que este já erguia a perna para afundar-lhe o morteiro, como fazia com os recrutas anteriores. Miguel jogou o morteiro para a grama da ilha, puxou a perna de Rudhinski, jogando-o na água... De um salto, empunhou a bandeira, o morteiro e completou o trajeto estabelecido. Enquanto isso, o cabo enfurecido e frustrado batia na água do açude. O Sargento Brackemeyer berrou:
_ Primeiro recruta a completar a tarefa! Parabéns ao 29!
Após a estratégia de Miguel para completar o trajeto com o morteiro seco, todos os recrutas repetiram o procedimento do recruta 29, completando o trajeto estabelecido por Brackemeyer. A cada novo banho no açude, Rudhinski praguejava frustrado. Ao final da tarefa, Brackemeyer declarou com voz altiva:
_ Ficou claro que em caso de defesa pessoal, em situações de perigo, o recruta poderia usar de defesa. Parabéns ao 29, pela estratégia!
Com a tarefa número um cumprida, surpresos, os grupos de recrutas foram encaminhados imediatamente para a segunda fase do treinamento.
_ A tarefa seguinte consiste em estratégia de sobrevivência em situações de guerra, quando a falta de alimento é o problema... Cada equipe será encaminhada ao campo de treinamento por tempo indeterminado. E cada grupo será responsável por construir seu abrigo e usando a natureza pra sobreviver! Em outras palavras, farão um abrigo apenas com galhos, folhas e cipós, Para comer, apenas serão permitidas a coleta de frutas ou caça.
Os recrutas entreolharam-se, preocupados. Porém, Miguel imaginou que a tarefa já não seria tão difícil quanto a de atravessar o açude sem molhar o morteiro. As equipes foram agrupando-se e dando início à tarefa da construção do abrigo, a fim de que estejam concluídos antes que fosse anoitecer. Enquanto os outros grupos planejavam como fazer o abrigo, Miguel empunhou a sua faca tática e saiu cortando varas, forquilhas e folhas.
_ Vocês dois vão fazendo os quatro buracos de base do abrigo, um vai levando as varas, um as forquilhas e outro as folhas... Depois, trabalho de equipe pra montar o abrigo, antes que a noite se aprochegue!
_ Nossa, 29... Isso que é espírito de liderança! Parece até que tu cresceu dentro do mato!
Miguel sorriu.
_ Quase isso... Tive uma mãe que me levou pra dormir umas três semanas no mato quando eu era criança. Isso aqui é "fichinha" diante do que passei com a minha mãe!
Apesar da superioridade no escalão militar, Brackemeyer passou a observar Miguel com uma certa reserva.
_ Parece que nada derruba esse recruta! Esse 29 vai longe!
Os dias que se seguiram apertaram a fome dos recrutas do acampamento, pois as atividades físicas impostas faziam as equipes chegarem ao extremo do cansaço. No final do terceiro dia, Brackemeyer anunciou em tom altivo:
_ Atenção, tropa! Mais uma tarefa para cada grupo.
Os olhos dos recrutas fixaram-se no oficial.
_ Cada grupo receberá uma ave, que deverá ser sangrada pelos dentes de cada componente, provando o sangue quente da ave. A tarefa inícialmente será cumprida pelo grupo 1, depois o grupo 2, e assim sucessivamente...
Após o anúncio da tarefa, alguns recrutas entreolharam-se, enojados. Como poderiam eles beber o sangue quente de uma ave recém abatida? Brackemeyer passeou entre os grupos, entregando a ave viva.
_ Grupo 4! Quem é que vai sangrar ela primeiro?
Os oito recrutas do grupo 4 entreolharam-se. A expressão de alguns demonstrava claramente a repulsa por cumprir a tarefa. Miguel deu um passo à frente.
_ Recruta 29 se apresentando, Senhor Sargento Brackemeyer! Vou sangrar a ave!
Miguel pegou a ave, segurou-lhe a cabeça, fechou os olhos e sangrou-a com os dentes, bebendo algumas gotas de sangue. Passou a ave para o segundo recruta que se recusou a cumprir a tarefa. Brackemeyer observava altivamente os outros componentes do grupo.
_ Recruta 31 não cumpriu a tarefa! Fique na reserva e aguarde!
O recruta 31 olhou para o grupo com ar vitorioso e cochichou para os colegas:
_ Viram só? Vocês foram burros! Eu só precisei fazer cara de nojo e não precisei cumprir a tarefa!
Mal o recruta 31 acabara de falar, Brackemeyer berrou:
_ Atenção, tropa! Agora, uma demonstração de mais coragem ainda... Rudhinski... Traga o coelho!
Para surpresa de todos os recrutas, Rudhinski sacrificou o coelho, coletando seu sangue em uma cuia.
_ Só o recruta 31 fica. Os outros estão liberados para o preparo da caça que sangraram.
Diante do olhar pasmo dos recrutas, Brackemeyer retirava o sangue coagulado da cuia, cortando-o em fatias, enquanto Rudhinski observava.
_ Recruta 31! Abra a boca!
Diante da situação, o recruta mais uma vez reagiu com uma expressão de repulsa, recusando-se novamente. Brackemeyer repetiu a ordem:
_ Recruta 31! Abra a boca! Isso é uma ordem!
Diante de mais uma recusa do recruta, Brackemeyer berrou, apontando:
_ Cabo Rudhinski! Faça as honras!
Rudhinski aproximou-se do recruta, ergueu o pé e desceu violentamente sobre o cuturno do recruta.
_ Aaaaaaaai!
Ao berro de dor do recruta, Brackemeyer jogou o coágulo de sangue em sua boca...
_ Feche a boca, 31! Isso é uma ordem!
A repulsa pelo coágulo de sangue que se espalhava garganta abaixo era eminente, pois as lágrimas escorriam pelo rosto do recruta 31. Brackemeyer completou:
_ Isso é apenas um aviso, para o próximo que quiser fazer "bico doce"pra cumprir uma ordem! Agora, 31... Paga uma completa, imediatamente!
_ Sim, Senhor Sargento Brackemeyer!

*


Irene fez as coisas mudarem drasticamente.
_ Dá um pito aí, Maceguinha... Me deu vontade de fumar mais um! A Vina não aparece a um mês pra fazer meu curativo de látex de aveloz e sinto que a ferida tá aumentando... Parece até que não quer me ver curada...
_ Mas tu desaforou a mulher quando ela veio a última vez aqui... Qualquer um não voltaria depois do que tu falou pra ela...
Irene olhou de revesgueio para Raimboldo.
_ Eu não falei nada além da verdade. Aquela filha dela é uma ladra, porque ela levou meu carro pra Goiânia e ainda não trouxe de volta.
_ Tu foi boba, Irene. Era só dizer que não emprestava...
_ Eu tive que emprestar... Ela ameaçou de contar pra todos que...
Irene ficou vermelha ao se dar conta que falara demais. Raimboldo ficou curioso.
_ Mas o que a Vina sabe e não pode falar? É tão grave assim?
A resposta de Irene foi tão evasiva quanto ela:
_ Nada... A Vina não sabe de nada...
_ Então, vou até a casa dela e peço pra ela vir fazer teu curativo só mais uma vez... Aí eu olho como ela faz e vou fazer eu mesmo, de amanhã em diante. Assim, logo tu vai ficar novinha em folha, pra gente "se divertir" sem se preocupar.
Raimboldo foi até a casa de Edelvina e foi direto ao assunto:
_ Eu tô aqui pra pedir pra ti me mostrar como se faz o curativo de látex de aveloz na Irene, só isso.
_ Eu conheço a tua fama, Macega! E sei exatamente o motivo pelo qual tu tá morando lá com a Irene! Não é pra ajudar ela não!
Raimboldo esboçou uma risadinha irônica.
_ Claro, Vina... Ela precisa de um homem pra satisfazer ela, e eu sou tudo de bom! E como ela tem casa pra eu me abrigar, eu entro no negócio com meu corpinho e ela entra com o resto! Assim, a gente une o útil ao agradável.
_ Agradável pra ti, né? Sei muito bem como tu vai ser útil pra ela ela... Mas tudo bem, ela merece!
Edelvina e Eliane acompanharam Raimboldo até Irene, que, ao ver Eliane, cobrou:
_ Ué... Tu aqui? A última vez que te vi, tu tava levando meu carro... Agora, tu me aparece sem ele? Cadê?
_ Aquela jafurca só tava dando pau e acabei ganhando uma grana preta com ela num desmanche em Goiânia! Assim, eu consegui pagar umas dívidas que eu tinha lá.
_ E precisa pagar tuas dívidas com o meu carro? O combinado não era esse!
_ Mas eu tava até o pescoço de dívidas, e aquela lata velha encrencou lá em Goiânia. Eu não tinha dinheiro pra mandar consertar, aí eu vendi ele pro primeiro desmanche que eu achei...
_ Mas isso é crime, moça... Não tem medo que eu vou te denunciar por ter vendido meu carro sem sequer ter minha autorização? Eu posso te colocar atrás das grades por isso!
Eliane cuspiu o chiclete e soltou uma sonora gargalhada.
_ Eu, na cadeia? Tu tá brincando! Meu pai é advogado criminalista! Eu nunca vou pra cadeia! Eu tenho "berço"!
_ Mas teu pai não tá aqui! E eu quero meu carro de volta, ou me dá o dinheiro que ganhou quando vendeu ele. Esse dinheiro é meu!
Aquelas alturas, Edelvina meteu-se na conversa:
_ E tu tem moral pra cobrar qualquer coisa da Eliane? Tu tem telhado de vidro e tá jogando pedra na casa dos outros!
A conversa estava começando a esquentar, quando Raimboldo resolveu interromper:
_ Olha, Vina... Não foi pra isso que tu veio aqui... Só quero que me mostre como se faz o curativo de látex de aveloz na Irene. Amanhã eu mesmo faço pra ela!
Edelvina ficou visivelmente incomodada com o rumo da conversa. Pensativa, foi até o jardim, coletou o látex da planta e fez o curativo nas costas de Irene. Raimboldo acompanhava tudo com atenção.
_ Pronto! É assim mesmo que se faz... De amanhã em diante, se tu fizer igualzinho a esse aqui E logo, logo, a Irene vai ficar como tu gosta!
Ao voltar para casa, Eliane ficou curiosa com a última frase da mãe na casa de Irene.
_ Por que falou que ela vai ficar do jeito que ele gosta? Não entendi...
_ Pois então... Tu me conhece muito bem! Pisou no meu calo, o coice vem a galope...
_ Isso tá me cheirando a vingança!
Edelvina sorriu ironizando:
_ E é... Eu fiz o curativo com o dobro da quantidade recomendada de látex de aveloz... Essa planta é perigosíssima...
_ Isso quer dizer que...
_ O Macega é um urubu, sempre atrás de carniça... A dose extra de aveloz que ele vai colocar nas costas dela não vai curar a ferida, mas sim, aumentar ela... A carniça vai feder de longe!
_ É por isso que tu falou que não ia mais fazer os curativos nela?
_ Claro... Eu tô livre de qualquer suspeita! Quem vai acabar com a Irene é o "Maceguinha"! E eu vou assistir de camarote!


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