98 - O desenho

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_ Tivemos que fazer um procedimento com urgência pra salvar a vida da sua esposa, Sr Juvenal. O quadro dela inspira cuidados extremos. Em outras palavras, Dona Teresinha não terá alta enquanto não estiver fora de perigo.
_ Mas, Dr... O Sr falou que ela fez um procedimento... Ela vai ficar boa, né?
_ Foi feito um cateterismo de urgência e foi implantada na artéria obstruída uma malha metálica, que chamamos de "stend", que vai ajudar para que o vaso sanguíneo não fique mais obstruído.
O jeito que Juvenal olhou para o médico demonstrou claramente não ter compreendido a explicação do médico.
_ Não se preocupe, Sr Juvenal. Esse tipo de procedimento é muito seguro, com baixo índice de complexidade , ou seja, um procedimento médico que dificilmente dá complicação. Agora, só depende do organismo da sua esposa se recuperar.
Juvenal interrompeu, preocupado:
_ Mas... Qual é a previsão de alta? Nós temos uma filha pequena...
O Dr baixou os olhos...
_ Olha... Eu não saberia te dizer com precisão. Vai depender da recuperação do organismo dela, que está muito fragilizado pelo infarto e pelo procedimento. Aconselho que ela permaneça internada, para o caso dela não apresentar a melhora esperada pela equipe médica.
Juvenal empalideceu.
_Mas... Tem esse risco?
_ Todo cardíaco pode, tanto apresentar uma melhora esperada, como reincidir em outro infarto, pois o coração fica fragilizado. Tem alguém da família que possa acompanhar sua esposa aqui no hospital? Fará bem a ela ter o contato com algum familiar na sua recuperação.
Juvenal ergueu as sobrancelhas prontamente.
_ Eu vou ficar. Prometi diante de Deus que estaria com ela na saúde e na doença... O nosso filho Francisco ainda não tem dezoito anos. Ele vai ficar cuidando da irmã dele, em casa.
_ Pois muito bem, seu Juvenal. O Sr pode se acomodar junto à sua esposa. A enfermeira irá acompanhar o Sr, e providenciará uma cadeira confortável para o Sr se acomodar.
_ Obrigado, Dr.

*

_ Chico!!! Olha, Claudino... O Chico voltou! Qué brincá com nóis? Nós tamo fazendo desenho!
Francisco ergueu as sobrancelhas seriamente, focando os olhos na caixa de lápis de cor nas mãos da irmã.
_ Essa é a minha caixa de lápis de cor de 48 cores? Andaram futricando no meu quarto de novo? Seus pequenos trombadinhas!
Valéria e Claudino baixaram os olhos, envergonhados.
_ Diculpa, Chico... Tem tanta cor bonita aqui...
Francisco olhou ao redor, à procura de papel para desenho.
_ Mas... Vocês estão desenhando sem papel?
As crianças baixaram os olhos mais uma vez. Dessa vez, foi Claudino que quebrou o silêncio:
_ Não achamo papel. A mana tá na cozinha, fazendo papá!
Francisco passeou o olhar ao redor... De repente, estacou diante de um enorme desenho de um ônibus, com motorista e passageiros.
_ O que... O que é issssssso?
Valéria começou, em voz baixa, torcendo as mãozinhas e olhando para o chão:
_ É que... Como a gente pometeu não pegá teus caminhão, a gente desenhô um ônibus. O Dino fez o ônibus e eu, as pessoa!
Ainda tremendo diante da travessura do enorme desenho na parede, todo pintado com lápis de cor, Francisco não segurou a gargalhada. Porém, sentiu logo que precisaria manter a postura enérgica diante das crianças.
_ Pois bem, seus pequenos delinquentes... Vou ver lá na cozinha, com a Lenir, se ela tem alguma coisa que dê pra limpar essa parede aí! A tia Tina vai ficar uma arara se voltar do hospital e olhar isso daí!
Francisco girou nos calcanhares, na direção da cozinha. Lenir, diante do talharim, abria a massa do macarrão que seria servido no almoço.
_ Francisco! Que bom que tu tá aqui! Preciso de ajuda para abrir essa massa. As crianças devem tá tortas de fome, já... Fiz o molho, mas o macarrão leva um pouco mais de tempo pra fazer...
Francisco, ainda segurando a caixa de lápis de cor, aproximou-se, piscando o olho e falando baixinho:
_ Depois te ajudo, mana. Primeiro tenho que fazer dois delinquentes infantis limpar uma sujeira que fizeram na parede da sala.
Lenir ergueu os olhos, notou a caixa de lápis de cor nas mãos de Francisco, assustada.
_ Parede? Lápis de cor?
_ É... Tem algum produto ou coisa que dê pra limpar a parede?
_ Temos detergente, sabão e esponja, mas acho que não vai tirar lápis de cor... Mas pode levar.
Francisco pegou duas esponjas, uma barra de sabão e meio frasco de detergente.
_ Eles vão limpar! Se conseguiram desenhar, vão conseguir limpar! Ou não me chamo Francisco!
_ Assim vai dar tempo pra mim fazer o macarrão! Depois, leva eles pra lavar as mãozinhas, que deixo a mesa prontinha!
Enquanto Lenir abria a massa e cortava o macarrão, Francisco, de braços cruzados e cenho franzido, acompanhava com os olhos as duas crianças que, chorando, esfregavam a parte desenhada da parede.
_ Ajuda nóis, Chico... Não tá saindo nada...
Infelizmente, quanto mais as pequenas mãozinhas esfregavam a parede, mais o desenho se destacava.
_ Não sai, Chico...
Infelizmente, Francisco notou que a tinta da parede estava desbotando, porém, o desenho do ônibus permanecia ali, mais nítido e colorido ainda. A voz de Lenir, da cozinha, quebrou o silêncio:
_ Mesa arrumada! Almoço pronto! Lavem as mãos e venham, ou vai esfriar!
Desolado, Francisco levou as crianças para o banheiro, a fim de lavarem as mãos. Ao retornarem, deram de cara com Lenir, de braços cruzados, observando o desenho. Com uma pitada de ironia, arriscou uma pergunta:
_ E aí, "mano"? Se tu não te chama mais Francisco, como devo te chamar agora?
As crianças entreolharam-se, e após um pequeno silêncio, responderam juntamente:
_ CHICO!!!
Francisco baixou os olhos.
_ Infelizmente, não dá pra limpar o desenho...a tinta da parede saiu, mas o desenho não.
Lenir, diante do embaraço do amigo, tratou de amenizar o momento, brincando, batendo de leve no peito de Francisco:
_ Então, meu amigo Chico! Será que temos que fazer? Fazer uma certidão de nascimento nova pra ti, ou o "velho Francisco"vai continuar adormecido aí dentro?
Francisco não segurou a risada.
_ Mas bahhhh! Não consigo nem ficar brabo contigo, mana! Gostei do apelido!
_ Então, bora pra mesa, que o rango tá esfriando!
Após o almoço, Francisco e Lenir arrumaram as duas crianças e as levaram até a escola. No caminho de volta, a preocupação se fazia notar nos trejeitos do jovem. Com o cenho franzido, chutava as pedrinhas da estrada. Lenir, observando o amigo, arriscou:
_ O que tá te preocupando, Chico? Ou ainda devo te chamar de...
Os olhos da jovem encararam instintivamente o fundo dos olhos de Francisco, que desviou o olhar.
_ Faz como preferir... Tô desanimado... O que tua mãe vai dizer? Que eu e tu não damos conta de cuidar de duas crianças!
Lenir parou de repente, apertou o braço do amigo.
_ Tenho uma ideia! Tu desenha bem, né?
Francisco baixou os olhos, timidamente.
_ Sim... Mas o que isso tem a ver?
Lenir começou a rodopiar ao redor do amigo.
_ Então, Senhor desenhista Chico... Eu o declaro o "artista oficial" que vai completar o desenho da parede da nossa sala!
Os olhos de Francisco brilharam de repente.
_ Eu? Desenhar na parede da sala da tia Tina? Tu tá maluca, guria?
Ensaiando passos de dança ao redor do amigo, Lenir não parava de falar:
_ Claro, Chico! Se as crianças nos deram dois limões, vamos fazer uma limonada!!!
Francisco parou de repente.
_ Tá, guria! Agora tu endoidou de vez!!! Primeiro tu pede pra mim fazer um desenho na parede da tua sala, depois diz que vai dar limonada... Te decide, guria!!!
Lenir parou de repente, lembrando do autismo de Francisco.
_ Claro, Chico... Pra ti tenho que explicar tudo, nos mínimos detalhes, e não falar por metáforas...
_ Metá... O quê???
_ Esquece Chico... Vamos pra casa, terminar o desenho. Quando a gente voltar pra pegar as crianças ma escola, quero que o desenho esteja pronto!
Francisco olhou para Lenir, receoso.
_ Mas... E se tua mãe não gostar?
_ Confia em Deus, Chico... Confia em Deus... Nada acontece por acaso...
_ Acontece? Como assim?
Novamente, Lenir lembrou que o amigo não compreendia metáforas. Apenas desconversou.
_ Vamo logo, Chico! Ao desenho!!!
Às mãos habilidosas de Francisco, ao lado do ônibus surgiu uma porção de árvores, animais e crianças. Enquanto Lenir pintava em detalhes os desenhos, Francisco deslizava suavemente cada traço, formando a cachoeira, o riacho, peixes saltando... De repente, afastou-se para observar.
_ Falta o asfalto, mana!
Habilmente, as mãos de Francisco foram deslizando parede afora.
_ Perfeito, Chico! Tá bom assim...
Francisco afastou-se novamente, avaliando a obra.
_ Tá nada, guria! Tu não viu que tá faltando duas coisas?
Lenir olhou para o desenho.
_ Olha, Chico... Temos o asfalto, os bichinhos, a cachoeira, o ônibus... O que falta?
_ Todo asfalto tem placas de trânsito, guria...
Lenir olhou para o amigo, desconcertada.
_ Tá... E o que mais falta?
Francisco sorriu.
_ De que adianta ter tudo, e não ter sol? Falta a majestade... O Senhor Sol!
_ Ok, Sr Pablo Picasso! Tu faz as placas e eu faço o Sol!
_ Pablo o quê???
Lenir sorriu, lembrando do autismo do amigo.
_ Esquece, Chico... Vamo terminar, que tá quase na hora de buscar as crianças na escola.
No caminho de retorno da escola, timidamente, Valéria arriscou uma pergunta:
_ Chico... Eu e o Dino temo que lavá a parede di novo?
Francisco piscou para Lenir, depois baixou os olhos para a irmãzinha.
_ Não sei não... Acho que é muito desenho pra apagar... Quando a gente chegar em casa, vamos ver o que dá pra fazer.
Valéria puxou o irmão para perto dela, falando em voz baixa:
_ Eu e o Dino pometemo qui nunca mais vamo pintá a parede...
Francisco olhou para a irmãzinha, fingindo seriedade.
_ Mentir é pecado, guria... E Papai do Céu não gosta de mentira!
Valéria correu até Claudino, segurou ambas as mãos do amiguinho, erguendo-as juntamente, olhando o céu.
_ Aqui, Papai do Céu! Eu e o Dino pometemo qui nunca mais vamo pintá a parede da tia Tina! Amém!
As lágrimas brotaram nos olhos de Lenir e Francisco, diante da sinceridade da oração das crianças. Lenir murmurou disfarçadamente para o amigo:
_ É... Acho que temos que rezar também...
Valéria interrompeu inocentemente, segurando as mãos de Francisco.
_ Intão reza, Chico! Eu e o Dino vamo te ensiná!
_ Vamos até em casa primeiro, mana. Aqui não é lugar pra rezar...
Valéria não se conteve. Colocou as mãozinhas na cintura e revidou:
_ Chico, Chico... Pelo que a mamãe sempre fala, o lugar de "conversá com Deus"é qualquer lugar... Por que tu disse que aqui não é lugar de rezar?
Francisco explicou:
_ Eu não queria dizer "não é lugar", mas não é hora de rezar. Temos que ir pra casa.
A menina não se deu por vencida:
_ A mamãe sempre diz que qualquer hora é hora de "conversá com Deus"...
_ Tá, maninha... Eu e a Lenir também precisamos rezar, mas primeiro queremos que vocês saibam o motivo...
O silêncio imperou no restante do trajeto de volta da escola. Ao chegar, Lenir convidou:
_ Vamos até a sala, crianças. Temos que "conversar com Deus"... Nós quatro...



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