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_ Se eu tivesse feito tudo diferente... Se eu não tivesse quebrado minhas promessas...
Juvenal, tristemente, abraçou a esposa:
_ Lembra do que o Francisco falou quando eu lhe falei do falecimento do nenê? Ele era um anjo, que Deus nos emprestou pra nos mantermos unidos e com fé...
_ Mas eu... Desobedeci a Deus... Nunca antes eu tinha quebrado uma promessa a Deus...
Teresinha estava desconsolada.
_ Teresinha... Tu fez o que qualquer ser humano faria... Não somos perfeitos... Perfeito, só Deus!
_ Se eu pudesse voltar atrás...
Teresinha sentiu mais uma vez o choro brotar dos olhos.
_ Precisamos mandar um telegrama pro Claudio. Ele e Arnaldo são meus amigos, e na certa vão vir pra nos dar um apoio.
Teresinha, com a voz embargada pelo choro:
_ Precisamos arrumar emprestado uma cadeira de rodas ou um par de muletas pra ti. Ou não vai nem conseguir sair pra ir no enterro do nenê.
_ Onde vamos achar uma cadeira de rodas emprestada?
_ Perto da escola onde eu trabalho tem um lugar que alugam cadeiras e muletas. Vou ver se consigo!
Teresinha olhou com carinho para o marido:
_ E me dá o endereço do Claudio, que já aproveito e passo no correio e mando o telegrama pra ele.
Juvenal olhou surpreso para a esposa. Ele sabia que, se não tivesse cadeira de rodas ou um par de muletas realmente não teria um modo de se locomover.
_ Se eu já tivesse minha prótese, tudo seria mais fácil!
_ Com prótese ou não, tu vai ficar bem. Se eu não conseguir emprestar cadeira de rodas ou muletas, eu te ajudo a ficar em pé... Chegou minha vez de cumprir o que prometi a Deus quando casamos!
A essas alturas, Juvenal sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Dessa vez, pelas palavras que Teresinha falara.
_ É por isso que te amo!
Teresinha e Juvenal deixaram Francisco com a avó para encaminhar os trâmites para o funeral de Alessandro. Teresinha, resignada e triste, não conseguia deixar de pensar em tudo que acontecera.
_ Não consigo deixar de pensar... Tudo poderia ter sido diferente...
_ Não pode se culpar tanto, Teresinha... Foi a vontade de Deus.
*_ Vincenzo! Vincenzo! Vi que o coveiro tá fazendo um túmulo de criança... Vou cuidar mais desse túmulo que dos outros, porque deve ser de um anjinho que quebrou as asas e caiu do céu!
Mary, na sua inocência, não fazia ideia de quanto estava certa. Porém, a experiência como zelador, fazia Vincenzo manter a serenidade e o profissionalismo.
_ Bambino, bambino... Nessas andanças de zelador de cemitério já não me surpreendo mais com o falecimento de crianças. Fico triste, sim... Pois sempre penso na Gioconda e Fiorella. Quem tem filhos não gosta de ver a partida de crianças.
Mediante o trabalho do túmulo concluído, o coveiro informou seu Vincenzo:
_ O sepultamento da criança se dará hoje à tardinha. Se não tô enganado, vai ser às quatro da tarde.
_ Eu e o Pedrinho vamo tá por aqui. Fica tranquilo! Eu saio às seis da tarde.
Mary ergueu os olhos e sentiu como se alguém a estivesse observando... Porém, apenas conseguia ver algumas nuvens branquinhas pairando no céu azul.
_ Eu vou deixar todos os túmulos bem arrumadinhos. A família desse anjinho que vai ser enterrado aqui vai saber que ele vai ser bem cuidado!
Vincenzo, no seu ofício de zelador, olhou para Mary com carinho e gratidão, pois a idade já não lhe permitia ficar arrumando diariamente os vasos de flores caídos com o vento.
_ Ahh, tu vai me fazer falta quando for cuidar de tu madre na Itália, bambino!
Mary olhou o velho zelador com carinho.
_ Pois então, eu não vou... Não quero ir, se vou fazer falta aqui!
_ Não, bambino... Tua missão é cuidar de dona Francesca... Eu sei que ela precisa de ti... Depois... Depois que tu crescer, e quiser voltar, sabe que aqui sempre vai ter um velho que te considera um filho!
Diante das palavras de Vincenzo, Mary sentiu os olhos marejados pela emoção, pois já não se imaginava longe daquela figura paterna, de Gioconda e de Fiorella, que a acolheram como se fosse da família.
_ Mas... Quando eu tenho que ir?
_ Não sei, bambino! Só sei que vai ser logo... Dona Francesca já avisou que tá deixando tudo pronto pra te buscar.
Vincenzo e Mary, naquele dia, anteciparam um pouco o intervalo de almoço, pelo fato de, no decorrer da tarde, o cemitério receber o sepultamento da criança falecida. Mary aperta o lado esquerdo do peito:
_ Vincenzo... Eu não consigo parar de pensar na criança que vai ser enterrada aqui... Parece que dói aqui...
_ E dói mesmo... Pra todos... Nenhum pai ou mãe deveria enterrar seu filho, somente os filhos enterrar seus pais...
Após o almoço, Mary ficou ajeitando os vasos e limpando os túmulos. De repente, ao ajeitar um velho vaso de porcelana, já quebrado, sentiu uma leve ardência no polegar. O sangue brotou rapidamente.
_Cortei o dedo!
Rapidamente, pressionou o dedo indicador ao polegar, para que o sangue se estancasse.
_ Vai parar já... É só ficar segurando...
Aos poucos, foi chegando o cortejo fúnebre. Mary ficou no cantinho do cemitério, tentando não pensar que ali, em pouco tempo, seria sepultada uma criança. Olhou para o céu.
_ Deus... Sei que o Senhor não quer que ninguém fique triste, mas dessa vez, eu não consigo evitar...
Longe do movimento do cortejo fúnebre no cemitério, Mary, timidamente, sentou-se sob o velho plátano. Apertou mais a mão, para que o dedo parasse de sangrar, fechou os olhos por alguns momentos.
_ Deus... Cuida desse anjinho...
Sentiu uma paz enorme tomar conta de todo seu ser. Em uma fração de segundo, sentiu como se alguém a tocasse no ombro:
_ Mary... Mary...
Em seu pensamento passou um turbilhão de lembranças sobre morte... O pai, ferido na tentativa de suicídio... Miguel, caído ao lado do corpo do pai, ao tentar salvá-lo... Os abusos de Léo, quando sentia-se morrer por dentro...
_ Mary... Mary...
Mais uma vez, a sensação de que alguém lhe tocava o ombro e uma voz conhecida a chamava pelo nome... Como? Se Vincenzo a chamava de Pedrinho? Quem poderia saber seu nome verdadeiro? Abriu os olhos...
_ Francisco???!!!
_ Mary!!! O que aconteceu? Por que tu tá aqui? Tu também é um anjo, que nem meu mano? E esse sangue?
O menino havia reparado a mancha de sangue na mão de Mary.
_ Francisco... Não. Eu não sou anjo não... E esse sangue... Eu machuquei o dedo naquele vaso quebrado ali.
A menina apontou para o vaso quebrado.
_ O que tá fazendo aqui, Mary? Nunca mais te vi na escola...
_Eu fugi de casa... O Léo...
Mary interrompeu a frase, pois o dedo voltara a sangrar.
_ Ele te machucou, né?
A menina baixou os olhos diante da pergunta de Francisco.
_Sim... Aí eu fugi... Caminhei a noite inteira, até que achei esse lugar, que me dá paz...
O menino arregalou os olhos negros diante da revelação de Mary.
_ Tu mora aqui no cemitério?
A menina deu uma risadinha:
_ Não, Francisco. Eu moro na casa do seu Vincenzo e das suas filhas...
Mary relatou ao amigo toda a trajetória de seus dias, entre o cemitério e a casa de Vincenzo. Falou das aulas de leitura de Gioconda e Fiorella...
_ Vincenzo acha que sou menino, porque sou parecida com aquele menino ali.
Mary apontou para o túmulo de Pedrinho, onde a foto do menino morto estava estampada. O menino surpeendeu-se ao notar a semelhança.
_ Tu é igualzinha a ele, Mary!
_ A mãe do Pedrinho também tava no avião que caiu e matou Pedrinho, o pai dele, e deixou Francesca na cadeira de rodas.. Ela ficou muito triste quando eles faleceram... Aí voltou pra Itália... E vai mandar me buscar, pra cuidar dela na Itália.
Francisco mostrou-se preocupado:
_ Mas... Tu vai voltar, né?
_ Não sei... Só sei que não quero mais ser machucada pelo Léo.
As palavras de Mary caíram feito pedras nos ouvidos de Francisco.
_ Eu gostaria que tu voltasse... Se algum dia tu voltar, promete que vai falar comigo de novo?
_ Prometo!
Francisco ergueu-se e pegou o vaso quebrado que machucara Mary.
_ Eu nunca vou te esquecer, Mary!
Mary viu sem compreender o motivo de Francisco pegar o vaso quebrado e passar o próprio polegar na parte lascada.
_ Cuida, Francisco! Assim tu te corta também!
_ É isso que eu quero fazer...
Francisco estava decidido.
_ Não faz isso!
De nada adiantou o pedido de Mary... Francisco ergueu-se e puxou Mary pela mão machucada . Pressionou o próprio polegar ao polegar machucado de Mary e olhou no fundo dos olhos da menina:
_ Agora, eu tô igualzinho a tu... E quando tu voltar da Itália, eu vô tá te esperando... Isso é um pacto! Uma promessa!
Mary sentiu pela primeira vez a força de uma promessa.
_ Eu vou voltar! Prometo!
Mary e Francisco ficaram ali, por alguns momentos. Mary olhou preocupada para o cortejo fúnebre:
_ Eles não tão te procurando? Eu não costumo ficar perto dos cortejos, quando tem enterro... É muito triste...
_ E porque tu acha que eu tô aqui? Eu quero lembrar do mano dentro do cestinho de vime e não dentro de um caixão... Anjos não deveriam ficar dentro de um caixão!
Um ímpeto fez Mary olhar as pessoas ali presentes. Seu olhar pousou demoradamente em Arnaldo. Sentiu como se o coração quisesse sair trotando até ele...
_ Pai!!!
A vontade de Mary era de sair correndo e se jogar nos braços daquele homem que tanto amava, e dizer que sua filhinha estava ali... Mas se conteve e limitou-se a observar a figura paterna que tanto lhe fizera falta.
_ Pai... Ainda bem que ele tá vivo...
Francisco não compreendeu o motivo daquela frase. Limitou-se a erguer-se.
_ Eu vou lá... Mary... Não esquece de mim, tá?
Um ímpeto fez Mary abraçar Francisco.
_ Fizemos um pacto, lembra?
_ Nunca vou esquecer!
_ E não fala que me viu aqui, Francisco... Ou o Léo vai me machucar de novo...
_ Prometo não falar pra ninguém que tu tá aqui!
_ Logo, vou embora pra Itália, e o Léo nunca mais vai poder me machucar.
_ Eu lembro... Ele queimou tuas mãos...
_ Não foi só isso...
_ Onde mais ele te machucou?
_ Um dia, quando eu voltar, te falo...
Mary ficou ali, no cantinho do cemitério, enquanto o menino voltou para perto dos parentes, que já estavam se dispersando. Abraçou Claudio e Arnaldo, que ficou curioso:
_ Vi teu amiguinho ali... Tava longe, mas ele tem alguma coisa familiar... Não sei o que é...
Francisco baixou os olhos preferiu calar. Prometera não falar de Mary para ninguém.
_ Já vi esse teu amigo na escola onde tu estuda... Quem sabe, um dia, posso conversar com ele também...
_ Ele... Ele não vai mais na minha escola...
Arnaldo segurou firme a mão de Francisco, que hesitou, olhando na direção de Mary.
_Vem, meu guri... Fica tranquilo, que teu amigo deve ser filho do zelador do cemitério.
Enquanto Claudio auxiliava Teresinha a manusear a cadeira de rodas onde Juvenal estava, Arnaldo não conseguia deixar de observar a criança que estivera com Francisco.
_ Esse menino tem alguma coisa familiar... Muito familiar!
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...