108 - Carta de Mary

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_Chico! Cadê o Mig!? Chega aqui, rapidinho, ver o que as crianças tão fazendo com as coisas da mamãe! Não sei se eu boto de castigo, ou deixo eles brincando!
_ O Mig foi até a cidade , ver se consegue os equipamentos de treino pra voar de asa delta.... No morro Alto da Pedra, da Voluntária Alta, abriram um parque de vôo livre, e ele quer treinar, assim que tiver o equipamento.
_Psiu... Olha!
_ De novo? Aqueles dois não páram nunca de aprontar! Que travessura aprontaram dessa vez?
Lenir pousou o indicador sobre os lábios, piscando o olho, puxou-o em direção à sala de estar de Tina.
_ Psiu... Venha ver... Realmente, não sei o que fazer...
Roupas empilhadas na poltrona, sapatos e botas cuidadosamente enfileirados rente à parede da sala de estar, chapéus de diversos modelos rigorosamente organizados sobre a mesa da sala, e a velha colher de pau servindo de microfone, na voz do pequeno Claudino:
_ E agora, a Valéria vai mostrá a última moda, direto do Japão. Ela usa um bonito quimono branco, completando com um grande chapéu de praia... Aaaaa, e o chinelo da minha mamãe!
O menino pára de falar diante da figura radiante da menina, que entrava lentamente no recinto, usando o roupão de Tina (arrastando-o ao chão, pelo tamanho do roupão ser de adulto), e nos pés, um par de meias brancas, arrastando um par de chinelos de tiras.
Os dois jovens entreolharam-se, segurando-se para não rir alto. Lenir pousou suavemente a mão no ombro de Francisco, que corou.
_ Não é tão grave assim. Eu e a mana fazíamos isso quando a gente era pequena. Tu nunca brincou de desfilar com roupa de adulto, quando era criança?
Francisco baixou os olhos, corado.
_ Nunca.
A garota estava a ponto de retrucar com outra pergunta, porém, lembrou-se do autismo.
_ Aaaaaa, desculpa, Chico. Vem. Vamo deixar eles brincar mais um pouco. É uma brincadeira sadia, pra idade deles.
Francisco pôs a mão no ombro da amiga.
_Tenho que te mostrar uma coisa, que o Mig pegou ontem no armazém do Sr Arlindo. Uma carta da Europa.
Lenir olhou curiosa.
_ O quê? Carta da Europa? Tu tá brincando, né?
Um sorriso despontou nos lábios de Francisco.
_ Tô não! É a mais pura verdade!
_ Bahhhh... Agora fiquei curiosa... É ... Alguma notícia ruim?
Francisco indicou uma cadeira próxima à mesa da cozinha, sorrindo.
_ Senta e aprende a esperar, senhorita curiosidade! E tira essa cara de quem tá pra rolar ladeira abaixo! Não te preocupa, guria! O fim do mundo não vem pelo correio!
Para Lenir, os minutos que se seguiram pareciam estar passando arrastando pedras, com correntes enormes, tamanha sua lentidão. A jovem chegou a sentir um sobressalto, quando Francisco retornou. Ele não perdeu a oportunidade de brincar, mais uma vez.
_ Epa, epa, epa! A carta que eu trouxe não é de outro planeta! É só de outro continente! E não traz uma bomba atômica, e sim uma folha escrita e uma foto.
Lenir puxou-o pelo braço.
_ Senta aqui pertinho de mim, guri! Eu quero ler, e não tenho visão raio X! Primeiro, me deixa curiosa, depois, faz cera! Me mostra logo essa carta!
Francisco sorriu.
_ Tá bom, chefia! Tu que manda! Vamo lê juntos!
Francisco acomodou-se na cadeira próxima à amiga. Lenir arregalou os olhos, ao ver a foto que acompanhava a carta.
_ Essa guria... Eu já vi um desenho dela na tua casa... Quem é ela? Como a foto dela veio numa carta pro Mig! Não entendo mais nada agora!
_ Calma... Uma pergunta de cada vez, guria! Aquele desenho da minha casa foi um desenho que eu fiz, da guria com quem eu sonho quase todas as noites. Eu conheci ela antes de vir morar em Igrejinha, a muitos anos atrás, em Caxias.
_ Caxias? Isso foi a muitos anos... Como tu sonha com uma guria que tu nem sabe se a conhece?
_ É Deus que me mostra ela em sonhos... Mary me disse que iria pra Itália, com uma senhora que a reconheceu como "um filho".
_ "Um filho"??? Agora, enrroscou meus neurônios, Chico! Tu não disse que era "uma guria"? Como assim???
Francisco bateu de leve na cabeça da amiga, sorrindo.
_ Calma, "senhores neurônios"... Vou explicar tudo!
Francisco relatou o abuso que Mary sofrera, quando Léo cortara as tranças dela, a fuga da menina até o cemitério, se fazendo passar por menino para se esconder. Em seguida, o resgate dela pela família de Vincenzo, e o encontro com Dona Francesca, que reconhecia nas feições de Mary o mesmo rosto do filho Pedrinho, morto por um acidente de avião no exato dia do nascimento de Mary. Lenir ouvia tudo, embasbacada.
_ Meeeeeeeeee... Que história, Chico! Deixa eu adivinhar... A carta é da Itália...
Francisco acenou negativamente.
_ Nooooooon! Da Alemanha!
_ Mas bahhhh! Eu tô errando tudo hoje... Tô com os neurônios "enrolados"! Tudo bem...
_ Então, "senhorita enrolada "... Vem aqui, pertinho. A carta vai explicar tudo!
Lenir olhou surpresa para o envelope, cujo endereço do remetente dizia:
" Kaufbeuren, Bayern, Germany"

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora