3- Mary é hospitalizada

47 3 0
                                    

Arnaldo e Irene planejaram como seria a casa nova a ser construída.
_ Precisa ter um quarto para Mary e um para o Miguel. Depois, quando Mary ficar mocinha, poderá organizar seu cantinho para "se preservar"...
_ Isso é ótimo, Irene. Mas precisamos também um quarto pras visitas. Quando os parentes chegam para visitar a gente, não podemos colocar eles pra dormir com as vacas, não?
Irene soltou uma gargalhada. Certamente imaginou a cena... Tio Darry se ajeitando no cocho de uma das vacas...
_ Aaaaaaa, não vai caber não... E no Girau do depósito de palhas também não dá... Tem ratos do tamanho de um gato lá...
_Então está feito... Quatro quartos, uma cozinha e uma sala. Aaaa, e uma despensa. Casa de gente da roça tem que ter despensa. O banheiro a gente faz mais tarde, na lateral da casa. Por enquanto vamos continuar a usar a latrina*, até a casa estar sendo construída...
_Vai pra cidade amanhã?
_ Sim, ao banco. Vou fazer o empréstimo para a construção. E temos que "apertar o cinto"*... Porque perguntou?
_Precisaria que passasse na farmácia. Tenho uma pinta me incomodando nas costas, bem onde pega o sol quando trabalho na roça. Eles têm um remedinho que queima verrugas. Deve ser bom para queimar as pintas também. E vou me livrar dessa pinta chata. Ela é horrível.
_ Não faz isso não, Irene. Já ouvi falar que esses remedinhos precisam ser usados com cuidado, por médicos e enfermeiros. E as moças da farmácia não são médicas.
_Quem é tu pra me proibir de ficar bonita? Não quero mais essas pintas no meu corpo.
_Mas você é bonita por demais, Irene. Eu amo você como é. Com pintas e tudo. Elas são o teu charme.
_Não concordo!!! Me traz o remedinho, ou eu mesma vou lá e compro!Ahhhh, e me traz cigarro também. Os meus estão acabando. Se eu parar de fumar,vou ficar gorda e feia.
_Não vai ser o cigarro que vai te deixar mais bonita e esbelta, Irene. Você sabe que eu amo essas"dobrinhas"...
O olhar amoroso de Arnaldo em direção à região abdominal de Irene confirmou o que acabara de falar. Tocou a esposa com carinho, porém, ela esquivou-se de Arnaldo.
_ Se fizer o que pedi, poderá"me tocar"... Caso contrário, nada feito!
Irene demonstrou uma estranha hostilidade no tom de voz. Arnaldo acabou concordando com Irene, até porque a conversa estava ficando"quente"... Para evitar uma discussão maior, não tocou mais no assunto.
No dia seguinte, após efetivar o empréstimo bancário para a construção da casa nova, Arnaldo passou na farmácia e comprou o tal"calicida", os cigarros... Passou também, em uma fruteira da cidade, levando algumas frutas que não tinham no seu pomar, pois sabia que Mary amava maçãs e Miguel devorava bananas como ninguém.
_Já passei na madeireira. Amanhã vão trazer a primeira parte do material de construção pra nova casa. Logo vamos começar as obras.
Irene abriu a embalagem do calicida.
_ Depois do banho, tu passa nas pintas das costas pra mim? Quero dar um fim nessas pintas feias.
_ Olha, Irene. Comprar eu comprei! Mas não vou"ajudar você a se destruir"... Sei que esses remedinhos podem fazer um efeito contrário. E não serei eu o culpado por um problema de saúde maior na tua vida...
O olhar fulminante de Irene na direção de Arnaldo demonstrou o quanto estava furiosa.
_ Tu só não quer que eu fique bonita! Essas pintas são horríveis!
_ Isso não é verdade! E você é bonita, com essas pintas. Foram elas que me chamaram a atenção quando conheci voce!
_ Então, "chamaram a atenção"? Claro, pareço uma bruxa, cheia de pintas!
Cada vez mais alterada, Irene já estava aos berros com Arnaldo. Miguel olhou Mary, que já estava fazendo beicinho para chorar, pois a discussão estava muito alterada. Pegou na ombro de Mary ...
_ Vamos, mana... Vamos pro galpão...
Miguel tinha apenas 6 anos, mas já sabia quando era hora de"bater em retirada" com a irmã. O sótão do galpão tinha palha de milho e arroz, secas, guardadas ali para alimentar as vacas no inverno. Em um cantinho do sótão, organizadas latinhas, caixinhas de remédios, potinhos de condimentos vazios, e no cantinho do compartimento, uma latinha com bolinhas de gude.
_Primeiro vamos brincar de casinha, depois vamos jogar pinica!
Miguel conhecia bem Mary, e sabia que, brincando ela esqueceria as broncas que os pais tinham tido entre si. Ele não gostava de brincar de casinha, pois dizia ser"coisa de guria", porém, não tinha graça brincar de bolinha de gude( pinica) sozinho. Assim, eram parceiros nas brincadeira.
_ Migueeeeeeel!!!
A voz cortante de Irene cortou o ar. Miguel veio num salto...
_ Que foi que eu fiz?
_ Tu vai colocar esse remedinho nas pintas das minhas costas. E isso é uma ordem. E não pergunte nada... Apenas coloca!!!
A voz em tom imperativo de Irene fez as pernas de Miguel tremerem. Ele cumpriu o que a mãe lhe ordenara. Só não compreendeu o motivo da mãe estar tão brava.
_ Em todas?
__ Siiiim!!!
Irene mais uma vez alterou a voz. Agora, em uma simples resposta de afirmativa ao filho. Acendeu um cigarro e soltou longas baforadas, quase que ininterruptas. Seu nervosismo era eminente, e sua raiva também.
_ Tá brava comigo, mãe? O que foi que eu fiz?
_ Perguntas! Sempre perguntas! Crianças não têm que fazer perguntas... Crianças têm que ouvir e obedecer!!!
A fisionomia colerizada de Irene tornava evidente que Irene não estava bem, psicologicamente. Arnaldo acompanhava tudo em silêncio, à distância. Sua vontade era de argumentar sobre o motivo do nervosismo de Irene, mas se conteve. Apenas acompanhou a cena decidiu dar de ombros, para evitar ser atingido pelo estresse de Irene. Decidiu pegar a carroça e tirar pasto para as vacas.
O ritual do calicida nas pintas era repetidamente feito todos os dias.
_ Vou me livrar dessas pintas horríveis que me deixam feia. E o cigarro vai me ajudar a ficar magrinha e elegante.
Arnaldo já perdera a conta das vezes que argumentou que amava Irene como ela era, porém, o hábito da esposa fumar o preocupava, e muito. Pois ela acendia um cigarro após outro, deixando o ambiente impregnado de fumaça do horrível vício.
_ Não deveria fumar dentro de casa... Isso faz mal para as crianças. Mary já está tossindo muito ultimamente.
_Mary é uma guria fraca! Se uma doença passa lá na curva onde fica a igreja, ela já pega!
_ Claro... Imunidade baixa... Lembra quando ela era nenê e eu pedia para você amamentar ela, para que ela ganhasse imunidade forte? Você não me ouviu e falou que daria leite de vaca, pois se desse de mamar teus peitos ficariam caídos. Tudo pela vaidade...
Àquelas alturas Arnaldo estava visivelmente contrariado, pois se tratava de Mary, sua "pequena Nega", pois em qualquer ocasião de perigo pela qual Mary passava, bastava ele dizer" minha pequena Nega" , que ela se atirava nos braços do pai, como se ali fosse o paraíso" o melhor lugar do mundo" , como Mary dizia...
_Minha"pequena Nega" não merece o que está fazendo, nem Miguel.
_ Tu tá é mimando eles! Eles vão crescer que nem inço bravo! Tem que manter tudo "na chincha"!!!
Vão ser umas pragas!
O olhar desolado de Arnaldo transpareceu seu descontentamento. Respirou fundo e ficou em silêncio. Como poderia alguém dizer isso de duas crianças, de quatro e seis anos, respectivamente?
Aquela noite recebeu Mary com uma tosse mais carregada que a costumeira. Ela ardia em febre. Arnaldo, preocupado, já não sabia o que fazer para baixar a temperatura de Mary.
_Minha Nega, vem com o papai. Vou te fazer compressas e você dorme no meu colo, enrolada na coberta de lã de ovelha que a vovó te deu. Assim, a febre sai"no suor"...
_Meu paizinho...
Mary mal conseguia se mexer, de tanto que a tosse sacudia seu magro corpinho. O colo do pai era tudo para ela.
_ O melhor lugar do mundo...
Mary dormiu nos braços do pai. A febre cedeu lentamente... Na manhã seguinte , Arnaldo tomou uma decisão:
_ Vou levar Mary para consultar. Tossiu a noite inteira.
_Isso é só fingimento, pra ver se pode ficar mais tempo no teu colo!
Uma baforada de fumaça acompanhou a frase que Irene acabara de falar. Mais uma vez,aquele olhar de reprovação de Arnaldo para a esposa fez Irene esbravejar:
_Tu não disse que temos que"apertar o cinto"? Agora, qualquer pum atravessado nessas crianças já são motivos para gastar dinheiro!
_ Pum atravessado ou não, eles são nossos filhos, e não animais. Somos responsáveis por eles.
Arnaldo oegou a mão de Mary e condizia porta afora.
_ Vou levar ela ao médico sim! E vou descobrir o motivo dessa tosse e da febre! Vem, minha Nega...
Pegou Mary em seus braços e saiu em direção à cidade. No hospital, após vários exames, é solicitada sua internação.
_ O que ela tem, Dr?
_ Olha,pelos exames, sua filha tem uma grave lesão no pulmão direito. Se fizermos o tratamento certinho, podemos salvar ela. Tem alguém que fuma, que convive com ela?
_Sim. A mãe dela.
_ Então, terá que ficar internada para efetivar o tratamento. Ou podemos perder ela. O tratamento fará uma cicatrização lenta, pois se trata de um órgão vital, mas como ela é criança, tem grandes chances de regeneração das células pulmonares. Ela só terá uma pequena calcificação na região afetada, mas como é no lóbulo direito, não afetará sua vida futura. Será uma questão de tempo e cuidado.

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora