100 - Valéria e Claudino em confusão

2 0 0
                                    

" Santa Maria, 12 de setembro de 1991.

Amigo Francisco!
É com muita saudade que escrevo essas poucas linhas.
Não tenho tido muito tempo vago aqui no quartel, pois estou fazendo um curso nas horas vagas. Tudo se sucedeu tão estranhamente, que nem mesmo eu estou acreditando. Estava eu e mais cinco recrutas escalados para preparar as refeições no rancho do quartel. Infelizmente, as cerâmicas da parte do rancho onde eram preparadas as refeições das tropas e dos superiores estavam quase todos caídos, tornando assim quase impossível manter a higiene adequada para o local.. Estava um caos. Não era possível fazer um bom trabalho onde aquela gordura impregnada tomava conta das paredes. Tomei a iniciativa de sugerir a um dos meus superiores que eu e a equipe escalada fizéssemos a reposição das placas de cerâmica caídas.
Lembra quando eu e o papai reformamos a cozinha da nossa casa? Eu aprendi direitinho com o papai como fazer a reposição da cerâmica. Aí, após o consentimento dos nossos superiores, fizemos um trabalho de equipe... Em uma tarde eu e meus cinco colegas recrutas deixamos a cozinha de aspecto impecável, e, de quebra, preparamos aquela ceia "da hora" pra surpreender os nossos superiores. Foi um sucesso. Posso até dizer que me tornei o "peixe" do general Brackemeyer.
Amigo Francisco. Eu tinha planejado tirar umas férias, mas como estou com frequência trabalhando no rancho e aperfeiçoando meu dotes culinários através de um curso que estou fazendo aqui em Santa Maria.
Como estão todos aí? Tentei por diversas vezes telefonar para o papai, mas o Sr Arlindo falou que o ramal do papai está desligado, por falta de pagamento. Sabes me dizer se o papai está em dificuldades financeiras?
Outra coisa, Francisco... Essa semana sonhei com as manas e a tia Tina. Está tudo bem com elas? Foi um sonho muito forte... Tão estranho, que eu me preocupei.
Meu amigo. Caso consiga me responder, eu ficaria imensamente feliz.
Atenciosamente, do seu sempre amigo Miguel."

Francisco sentiu as lágrimas queimando a face, enquanto lia a carta do amigo. Dobrou-a cuidadosamente e recolocou-a no envelope. Abriu um armário, onde costumava organizar seus guardados de papel. Olhou para a pilha de cartas, deixando ali a carta de Miguel.
_ Como posso responder essa carta? Como dizer que a tia Tina e a mamãe estão no hospital, com problemas sérios?
Instintivamente, suas mãos deslizaram para o lado, onde guardava seus esboços e desenhos. Com um dos desenhos à mão, seus olhos fixaram longamente o retrato que desenhara. Uma jovem sorridente, de longas tranças louras. No cantinho da folha, uma dedicatória que dizia "Sonho Meu". Sentiu mais uma vez as lágrimas que teimavam em cair.
_ Mary...
Instintivamente, levantou a cabeça.
_ Deus... Onde ela tá agora? Eu a vejo e encontro em sonhos. Eu sempre vô tá esperando ela... Aquele dia que nos vimos pela última vez, ela prometeu voltar, e eu prometi esperar...
Francisco estava tão absorto em seu pensamento, que não escutou a voz de Lenir, chamando.
_ Chico! Posso entrar? Algum problema? Temos que buscar o Claudino e a Valéria na escola.
Como se voltasse de um transe, Francisco estremeceu.
_ Pode entrar. Já tô quase pronto. Eu tava lendo uma carta que recebi do Mig.
Lenir entrou correndo no aposento, abrindo um sorriso.
_ Tu recebeu uma carta do Mig e não me mostrou? Quero ler!
Francisco desviou o assunto, olhando para o relógio:
_ Não tá na hora de buscar as crianças? Outra hora te mostro...
A jovem saltitou na ponta dos pés, tentando tirar o papel das mãos de Francisco.
_ Quero ler a carta do Mig logo, Chico... Também tô com saudades dele! Mostra, vaaaaai... Leio rapidinho...
Saltitando ao redor do amigo, Lenir pôde observar o desenho da garota loira na mão de Francisco.
_ Que carta estranha... Pode deixar que eu leio rapidinho. Só se tu não quer que eu leia. É assunto sério? Essa moça é... Namorada dele? Que linda... Até... Parece um pouco com o Mig...
Francisco guardou o desenho e sorriu, meio encabulado.
_Ahhh... Isso? Não é a carta do Mig. Isso é um desenho que eu fiz. O Mig não falou nada de namorada nenhuma na carta. Depois que a gente voltar com as crianças, eu te mostro.
Lenir respirou fundo. Parecia aliviada.
_Eu pensei que...
Francisco sorriu.
_ Que ele tem uma namorada? E se tivesse? Qual seria o problema?
Lenir corou e baixou o olhar.
_ Nada não, Chico. Depois conversamos...
O silêncio imperou no caminho de ida para buscar Valéria e Claudino na escola. Ao chegarem lá, a professora Miriel aguardava- os, segurando as duas crianças pelas mãos.
_ São vocês os responsáveis por esses dois pequenos encrenqueiros? Preciso conversar com vocês.
Francisco e Lenir entreolharam-se.
_ O que... Aprontaram dessa vez?
Miriel apontou duas cadeiras.
_ Peço pra sentar um pouco. E segurem esses dois ao colo, por favor. Preciso conversar com vocês.
Após engolir em seco, Lenir criou coragem de perguntar:
_ O que aconteceu com eles? Somos irmãos deles.
_ Pois bem... Vou explicar. Eles têm um coleguinha... O Roberto, que puxou as orelhas do Claudino, só porque ele não sabia quais eram as cores do semáforo... Da sinaleira... Chamou-o de "burro", e puxou as orelhas dele.
Lenir olhou para o irmãozinho, aguardando uma explicação. O menino, baixando os olhos, calou. A professora prosseguiu:
_ Aí, a Valéria aproximou-se do Roberto e começou a espancar o menino, dizendo que Claudino não era "burro", e que ela iria defender ele até debaixo da água... Sinceramente, fiquei surpresa com a atitude dela de defender o coleguinha, mas não aprovo violência.
Francisco corou.
_ Desculpa, professora. Vou conversar com o papai quando ele voltar do hospital, sobre o que devemos fazer.
A surpresa no rosto da professora era evidente.
_ Hospital? Teu pai está doente?
_ Não. Ele tá cuidando da nossa mãe, que teve um infarto.
Os olhos marejados da professora mostravam que Miriel compreendera o motivo da criança estar na defensiva. Olhou interrogativamente para Lenir:
_ Certo... Mas, e os pais do Claudino?
A moça baixou os olhos, sentindo a voz sair por um fio:
_ O papai... Faleceu antes do Claudino nascer... E a nossa mãe tá no hospital também, já faz uma semana. Ela fez uma cirurgia no cérebro. Teve um aneurisma.
Duas grossas lágrimas insistiam em cair pelas faces de Miriel. Com a voz embargada, conseguiu apenas balbuciar:
_ Bem... Isso explica o motivo que os dois têm, pra um defender o outro... Vamos conversar com os responsáveis em outro momento. Quero conversar também com os pais do Roberto.
Assim que saíram da escola, Valéria e Claudino traçaram planos para a noite:
_ Valéria... Lá em casa, no quartinho do fundo, tem uma cama de dois andar. Duas cama empilhadinha, igualzinho àquelas casas lááá da cidade... Elas também são empilhada.
_ Ieeeeebbbaaaa!!! Vamo durmi nela! O Chico pode durmi no andar de cima e nóis três vamo durmi no andar de baixo! Aí vamo ficá quentinho, quentinho...
Conversando com gestos enquanto caminhavam, as crianças pareciam estar contando uma fábula. Alegremente, os planos eram traçados com entusiasmo. Francisco e Lenir entreolharam-se, segurando-se para não rir. A jovem interrompeu os planos dos pequenos:
_ Que planos estranhos e mirabolantes são esses, seus pequenos visionários? E como vocês sabem daquela cama?
Francisco olhou para a amiga arregalando os olhos. Era nítido que ele também não compreendera o sentido das palavras da jovem. Lenir sorriu.
_ Aaaa, desculpa, Chico. A cama de dois andares é a beliche que eu e a Lenice usávamos quando éramos crianças. Agora, a gente não cabe mais nela. Só se dormir enroladinha como um cachorrinho. Nós crescemos, enquanto a cama "esqueceu de crescer"...
Francisco caiu na gargalhada.
_ Imagino a cena... Tu, enrolada pra dormir.
A moça corou por um momento. Porém, no instante seguinte, bateu no ombro do amigo, séria.
_ Não ri de mim, guri! Eu durmo enrolada se eu quiser, e quando eu tiver vontade! Tu não precisa me dar pitaco!
As duas crianças pararam de repente, observando os dois jovens. Francisco compreendeu o motivo e gaguejou:
_ Tu... Tu viu o que tamo ensinando pros nossos irmãos? Não vamo brigar na frente deles...
Lenir corou.
_ Desculpa, Chico. Foi sem querer...
Instintivamente, Francisco puxou a amiga pelo braço, abraçando-a.
_ Tá desculpada, mana!
O sorriso nos lábios de Valéria e Claudino deixaram claro que aprovaram a atitude dos irmãos. Francisco, meio sem graça, estendeu a mão na direção da casa:
_ Vamos entrar, nobre senhorita, e seus pequenos duendes. Eu tô tapado de fome!
Lenir sorriu, olhando para as crianças, brincando:
_ Eles existem!!! E que bonitinhos são os duendes!!! Vamo levá eles pra casa!
Em tom de brincadeira, pegaram as crianças embaixo do braço e adentraram na casa, sem notar, atrás de uma árvore, a presença de Eliane, que observava tudo de cara amarrada.
_ Mmmmm. Mas o que temos aqui? Então, é por causa dessazinha daí que ele disse que eu parecia um fantasma bem feio...

Após ter passado três longas semanas hospitalizada, Irene retornou mais impaciente que antes. Passava os dias andando de um lado para o outro, praguejando:
_ O Arnaldo vai me pagar, Macega. Ele tava morando aqui, à míngua... Eu pensei certo que ele tinha uma grana preta guardada aqui em casa! Eu já revirei a casa inteirinha, mas não consegui achar nada!
_ Pelo que eu saiba, ele nunca foi um homem de luxos, mas, pelo menos, temos a casa pra morar, e as terras pra plantar. Tu era casada com ele, e tem direito...
Irene tentou segurar a xícara de café, tentando levá-la à boca, porém, um forte tremor involuntário nas mãos a fez derrubar o conteúdo na mesa. Sua expressão apática denunciava que algo não estava bem. Macega ficou irritado diante da cena.
_ Mas o que tem contigo, véia? Até parece que não tá gostando do meu café... Não vou passar outro, não! Se tiver sede vai tu mesmo passar, ou fica sem!
A frieza das palavras de Macega , em relação à Irene, deixava claro que não existia nem ao menos empatia no relacionamento deles. A mulher, erguendo-se com dificuldade da cadeira, com uma mão às costas, já curvas, murmurava:
_ Essa dor nas costas que me mata, Macega... E dói mais ainda se eu tentar indireitar as costas. Acho que tenho que ir no médico de novo.
Macega, mastigando o cigarro no cantinho da boca, não segurou as palavras:
_ E vai pagar médico com o quê? Nenhum de nós trabalha, e só temos o que o sovina do teu marido deixou aqui na casa quando ele caiu naquele hospital pra tirar a vesícula!
Diante da situação, Irene não teve outra saída a não ser calar, dirigindo-se ao banheiro, esboçando repetidos tremores nas mãos.
_ Tenho que ir ligeiro pro banheiro, Macega. Não sei porquê, mas ultimamente eu não consigo mais segurar...
Soprando lentamente a fumaça do cigarro, Macega ergueu as sobrancelhas, em sinal de reprovação.
_ Tu tá é véia, doida e caducando. Isso sim! Tuas costas parecem mais as costas de um dromedário. Tu precisa é de um "corpo novo", muié! Um médico não vai resolver teu problema, não!
Ao voltar do banheiro, Irene resmungou:
_ Eu preciso é tomar um café e comer... Tô morrendo de fome...
_ Por falar em fome...A conta do armazém tem que ser paga, ou não liberam mais nada fiado... E nossa despensa tá vazia. O "teu maridinho" não tinha muita coisa estocada lá quando "foi pra faca"! E no tempo que tu tava no hospital, eu também tive que comer.
_ A lista das coisas que temos que comprar tá ali, na cristaleira. Se tu vai lá no armazém do Arlindo hoje, não esquece de trazer cigarro, tá?
Já com a lista em mãos, Macega olhou para as letrinhas miúdas que Irene escrevera.
_ Ué... Quem escreveu isso? Tua letra nunca foi assim, tão pequena... Nem dá pra eu ler... Como vou saber o que falta?
_ Fui eu que escrevi, sim.. Eu não consigo mais escrever com letra grande .
Macega, observando Irene, após um longo silêncio:
_ Hummmmm... Acho que esses sintomas não têm nada a ver com idade , muié... Tu teria que ir no médico. Isso pode ser uma coisa mais séria.
O olhar enfurecido de Irene calou Macega. Ela não se deu por vencida, deslanchando o verbo:
_ Coisa séria é tu que vai ter, se continuar me enchendo o saco com esse negócio de doença e de médico! Quem cuida da minha vida sou eu, sou eu quem decide se fico doente ou não! E sou eu quem decide onde vou procurar ajuda! Vou até a casa da Edelvina. Sei que ela faz umas "simpatias"pra curar qualquer coisa.
_ Aquela daí vai é te levar pro cemitério, muié...O máximo que ela e a filha fazem é macumba!
_ A Edelvina é minha amiga, Macega. Ela faz "uns trabalhos bem amarradinhos"!
_ Isso é macumba, muié! "Trabalho amarradinho" é macumba!
Irene não escondeu a rispidez:
_ Se é macumba ou não, não é da tua conta! Eu vou lá na casa delas e


INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora