O inferno cheira a mofo e sangue. É um cheiro enjoativo, que você não tem escolha a não ser se acostumar rápido, ou não vai conseguir comer a comida podre servida por aqui. A água tem gosto de lama e as bebidas são dadas apenas aqueles de sangue nobre. A carne servida é tanto de animais, como daqueles que perdem a vida aqui dentro.
Dizem que cada árvore que cresce nesse lugar, é uma alma que teve uma morte lenta e dolorosa. Não existe sol, assim como nuvens, lua, estrelas ou qualquer outra coisa que me lembre que não estou morto. O inferno está repleto de vivos, apesar de ser o mundo das almas. É um lugar frio e asqueroso, onde sonhos bons não existem, assim como quaisquer sentimentos bons.
Meus músculos ardem a cada movimento dos meus braços, acostumado a todo tipo de serviço que eles nos dão por aqui. Minha respiração é rasa e curta, porque qualquer sinal de que estou sequer existindo, serei punido, como já fui tantas vezes antes de aprender o que posso e o que não posso fazer.
Estava de joelhos e de cabeça baixa, com o cheiro de sangue queimando no meu nariz. O pano nas minhas mãos estava encharcado de água e sangue, enquanto eu esfregava o chão sem parar, tentando limpar todo resquício de morte daquele lugar. Ao meu redor, outros três escravos humanos fazem o mesmo, não ousando erguer a cabeça por um segundo que for. Os corvos estão o tempo todo observando.
Chamam esse lugar de fosso. Um buraco circular cercado por paredes de pedras e sacadas que davam aos espectadores uma visão perfeitas das atrocidades que aconteciam aqui. Seres que se arriscavam lutando com monstros e acabavam sendo divididos em pedaços. Era a diversão daqueles que ficavam no topo, enquanto nós escravos precisávamos limpar a sujeira depois.
Enfiei o pano no balde, vendo a água imunda onde o mergulhei, antes de torce-lo e voltar a esfregar o chão, com movimentos automáticos de quem já está acostumado a fazer isso todos os dias. Eles nos roubam da superfície quando ainda somos crianças. Levam todas as memorias, até que não nos resta absolutamente nada.
O suor estava escorrendo da minha testa quando terminei. As manchas de sangue permanecem em alguns pontos do chão, como parte da rocha que forma aquele lugar. Os portões se erguem para que passemos. Nós quatro seguimos os túneis e escadas para a parte mais funda daquele lugar, até as cavernas escuras e úmidas.
Os baldes e panos ensanguentados são deixados pelo caminho, onde outros escravos irão limpados para serem usados mais tarde de novo. Nós quatro seguimos pelos túneis, até chegarmos na ampla sala onde alguns guardas estão. Quatro deles de pé contra uma das paredes, com espadas em mãos. Outro está sentado atrás de uma ampla mesa de madeira, contando moedas de ouro.
Tento ignorar o som das chicotadas que ecoam por aquelas paredes de pedra. Um dos escravos estava sendo punido na outra ponta da sala, preso contra a parede por correntes, enquanto suas costas estão cortadas. O ruído que escapa pelos lábios dele é como sentir a morte rastejando pelos nossos ossos.
Já estive naquela posição. Eles nos dão um número, mas nós chicoteiam até que estejamos fracos e implorando pela morte. Quando não resta uma única parte intacta da nossa pele. Estou cheio de cicatrizes. São como lembretes de que aqui eu não passo de um bicho de estimação de quem está lá em cima.
—Harper. —Falei, limpando a garganta ao observar os movimentos do guarda ao contar as moedas nas suas mãos. —Limpeza do fosso.
—Me diga, Harper. —Ele soltou as moedas sobre a mesa, soltando uma risadinha ao olhar pra mim. —Algum troféu hoje?
Esfreguei minhas mãos úmidas na calça, sentindo uma sensação fria e desagradável quando enfiei a mão no bolso da jaqueta e puxei o pedaço de osso. Era uma pedaço da ponta do polegar de alguém. Da pessoa que havia morrido no fosso horas antes. O que quer que ele tenha enfrentado, deixou apenas alguns pedaços de ossos para trás.
—Dou duas moedas de ouro por isso. —O guarda riu quando hesitei, com o corpo grande e musculoso tremendo.
Encarei as pontas dos chifres na cabeça dele, entrelaçados com o cabelo escuro preso em uma longa trança, que chegava até as asas enormes que cobriam suas costas. A pele pálida do peregrino parecia acinzentada ali embaixo, como a cor de um cadáver. Não gostava de peregrinos e gostava menos ainda de Nilus.
—Da última vez você pagou cinco. —Falei, girando aquele pedaço de osso na minha mão. Ossos tinham grande valor para aqueles de sangue nobre. Eles os usavam para fazer joias e armas. Por algum motivo, eles nos pagavam por cada osso que encontrávamos.
—Dá última vez o pedaço de osso era maior. —Retrucou, olhando pra mim como se me desafiasse a rebater.
Ele estava mentindo. Nilus sabia muito bem que o último que eu havia conseguido era menor do que esse. Mas ele nunca pagava o mesmo preço. Ele nunca pensava em ser justo. Ele se divertia vendo nosso sofrimento aqui embaixo.
Engoli o nó que se formou na minha garganta, limpando o suor da testa antes de estender o osso pra ele e receber as duas moedas de ouro, que pesaram na minha mão. Poderia tentar vende-lo pra outra pessoa. Mas raramente saíamos dali. Por isso cada moeda de ouro era valiosa pra nós escravos. Se conseguíssemos o suficiente, poderia nos render uma passagem pro lado de fora desses túneis.
Só que essas moedas também eram motivo de discórdia entre nós. Se cada um não escondesse suas moedas no melhor lugar que encontrassem, elas poderiam ser roubadas por outro escravo. Eu já havia roubado moedas de alguém, assim como também já havia sido roubado. Algumas vezes isso leva a brigas e consequentemente a morte.
Os guardas não se importam com o que acontece aqui embaixo. Não vão se importar se nos matarmos aqui, contanto que alguém permaneça vivo para limpar a sujeira depois. Novas levas de crianças estão sempre chegando. Novos escravos estão sempre surgindo. Não somos nada além de corpos aguardando a morte.
Continua...
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Bosque dos Sonhos Mortos
FantasíaMergulhe no Mundo das Almas Fox Harper é apenas um dos tantos escravos humanos que vivem nos territórios de Adya, a deusa da morte. Tendo o corpo coberto de cicatrizes, vivendo entre raças poderosas e mortais, ele sabe muito bem que o inferno não é...