Capítulo 75: A alma dele é boa demais.

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A morte nunca é bela. As vezes ela é menos dolorida. Trás paz. Mas algumas vezes ela é fria, dolorosa e cruel. As pessoas tinham o costume de ver suas melhores lembranças passando pela sua cabeça quando morriam. Mas aqueles mais desesperados para viver, ignoravam essas lembranças e focavam na dor, desesperados demais para continuarem vivos.

Fox Harper estava desesperado para continuar vivendo, mas ele tinha aceitado sua morte antes mesmo de ela vir busca-lo. Quando ela chegou, ele mergulhou naquelas lembranças. O calor do sol na sua pele. Os lábios macios de Fedra. O abraço caloroso de Sebastian. Ele mergulhou em cada uma delas e então se perdeu na escuridão.

Na cabine do demônio Daren, a morte estava feliz. Havia acabado de ganhar mais uma alma para sua coleção. Estava sorrindo ao ver o sofrimento da sereia, que se ajoelhava no chão ao lado do corpo de Harper e o puxava para si, se recusando a acreditar que ele estava morto. Sua boca repetia milhares de vezes para que ele não a deixasse, enquanto Sebastian atravessava o espaço entre ele e os dois e se ajoelhava ali.

Os dois choraram sobre o corpo de Harper, o abraçando apertado sem qualquer intenção de deixa-lo. Daren, mesmo sendo um ser da escuridão, rezou para que Harper encontrasse a paz agora, depois de todo sofrimento que havia enfrentado no inferno.

—Hmm, o sofrimento de vocês é delicioso. —A morte sibilou, soltando uma risadinha, enquanto Fedra se inclinava para beijar os lábios frios de Harper. Ele estava imóvel, com aquela faca cravada no peito. Os olhos ainda abertos e vazios.

—A alma dele é boa demais para você. —Fedra sussurrou, lançando a morte um olhar de puro rancor. —E você jamais vai a merecer.

—Você tem razão, querida. A alma dele vale mais do que um milhão de almas. —A morte se aproximou, olhando pra sereia e para o yatori, que abraçavam o corpo de Harper com a intenção de protege-lo dela. —Mas merecendo ou não, agora ela me pertence. Ele desejou tanto a vida, que agora sua alma está condenada a eternidade no inferno. Um jeito delicioso de morrer.

—Você fez um acordo com ele. Cumpra sua palavra, mãe. —Daren exclamou, ficando entre os três e a mãe, como se quisesse protege-los dela. Daren poderia ser muitas coisas. Um demônio para alguns. O filho da morte. Um mostro que atormenta pesadelos. Mas havia uma única coisa que ele era para Harper, um amigo. —Liberte-os do inferno.

—Você, Daren, está se mostrando uma grande decepção perto dos seus outros irmãos. —A morte estalou a língua, mostrando certa irritação com o filho. Ele sempre tinha sido rebelde, se recusando a ser cruel como os outros. Demonstrando simpatia a alguns. Isso a irritava. Ele deveria devorar almas, não salvá-las. —Não se intrometa nos meus assuntos novamente, ou vou...

—Me matar? —Daren acabou rindo, lançando a mãe um sorriso debochado. Ele sempre tinha sido corajoso a ponto de afronta-la. —Eu já estou morto, mãe. E não pode fazer nada pra me punir. Sou parte de quem você é.

—Mas eu ainda posso aprisiona-lo por séculos, até você aprender a respeitar quem te deu tudo. Ingrato. —Afirmou, e Daren sorriu ainda mais, porque na opinião dele, ele já estava aprisionado. E jamais iria respeita-la, quando a considerava hipócrita e rancorosa. —Mas vou cumprir minha palavra. Já consegui o que queria, de qualquer forma.

Fedra tentou se agarrar mais ao corpo de Harper quando corvos invadiram a cabine, tomando conta de tudo. Voando em círculos ao redor dos três. Ela o amava demais para deixa-lo. Tinha se recusado a fazer isso uma vez e estava se recusando agora, mesmo que fosse em vão. Mas mesmo com a força que ela o segurava, os corvos chegaram até ela e a levaram primeiro. Sebastian fechou os olhos quando escutou ela gritar o nome de Harper, antes de se inclinar e beijar a testa dele, conseguindo se despedir antes de também ser levado.

Sem o som das lágrimas dos dois, a cabine foi tomada por um silêncio tenso, no qual a morte e o demônio se encaravam. Mas de um lugar muito distante dali, mais alguém observava a cena, sentindo o peso da morte no próprio coração, ao perceber que havia perdido mais alguém.

A deusa da vida encarou o corpo imóvel do humano, que ela passou a conhecer quando ele a desejou a cima de qualquer outra coisa. Ela já havia sido desejada antes, de muitas formas diferentes. Mas não do jeito que ele a desejava. Fox Harper lutou tanto pela vida, que ninguém foi capaz de matá-lo, além dele mesmo. E isso a deixou estranhamente desolada. Perder uma vida sempre era triste. Mas a dele estava doendo mais do que a deusa estava acostumada a sentir.

Ela observou a morte ir embora, contente demais com a própria vitória para se dar conta de que sua irmã observava de longe, em silêncio. Quando ela sumiu, a deusa da vida se permitiu chegar mais perto, descendo até a cabine. Ela viu o sobrinho caminhar até o corpo do amigo, fechando seus olhos e mais uma vez rezando para que ele encontrasse paz.

Ele pegou o corpo do chão, antes de leva-lo até a cama. Os lençóis estavam manchados de sangue, mas o demônio considerou aquilo melhor do que deixa-lo no chão frio e duro. Depois, saiu da cabine, indo encontrar a sereia e o yatori onde quer que eles tivessem sido deixados, para cumprir a Harper o que havia prometido.

Sozinha, a deusa da vida se aproximou da cama e se sentou, fazendo uma careta quando o sangue deixou a saia do seu vestido branco pegajoso. Mas isso não a impediu de levar a mão até a do humano, sentindo a pele fria e sem vida. A desolação no seu coração se tornou pior, como se ela tivesse perdido um de seus filhos. Então ela fez algo impensado, se inclinando e beijando a bochecha dele, antes de deixar a palma da mão contra o seu coração, onde a faca ainda estava cravada.

—Por ter sido gentil, forte e corajoso.

Uma lágrima escorreu pela bochecha dela, antes de cair sobre a pele de Harper e ser absorvida. Nesse momento Daren retornou a cabine, olhando para Harper com uma expressão cansada, sem perceber que não estava sozinho ali. Mas ele não podia ver a irmã da sua mãe sentada ao lado do humano. E não podia ver quando ela se levantou e se aproximou dele, até se inclinar e sussurrar algo no ouvido do sobrinho.

Ele sentiu a ideia surgir na sua cabeça. Algo que deixaria sua mãe furiosa. E ele amava deixa-la furiosa e estragar seus planos. Então se apreçou em sair da cabine e dar ordens aos seus homens, para que eles voltassem imediatamente para sua morada, onde poderia colocar a ideia em prática. A deusa da vida sorriu com orgulho, sabendo que tinha terminado ali. Pelo menos por enquanto. Então foi embora, sem deixar de observar de longe.

Enquanto Daren voltava para casa com o corpo do amigo, do outro lado da escuridão eterna e da morte, onde todos os vivos existiam, a sereia e o yatori adentravam nos portões de um castelo, sendo guiados até uma rainha humana que costumava ser adorada pela morte. Mas estavam seguros ali, porque outro yatori os esperava.


Continua...

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