- Faz tantos dias que não chove que estava começando a me perguntar se por acaso tínhamos nos mudado de Manchester - digo, sentando ao lado dele com a pipoca.
- É, a primeira chuva de Outono... Mesmo que ele tenha começado há três dias.
- Eu amo essa época do ano. Tudo tem um tom meio amarelado, o chão sujo de folhas secas...
- Você diz isso porque não é você quem limpa - ele fala, pegando um pouco de pipoca e deitando no chão, a cabeça encostada no sofá.
- Ah, cala a boca - digo e vou para o sofá atrás de Charlie.
O filme começa e ficamos em silêncio, tremendo e rindo nos momentos de susto.
- Eu adoro essa parte - ele diz, quando o maluco do Jack começa a dar machadadas na porta do banheiro, à procura da esposa.
- Here's Johnny! - eu e Charlie dizemos ao mesmo tempo que o personagem endiabrado enfia a cara entre os destroços da porta.
Enquanto a mulher dentro do banheiro grita de dar pena, eu e Charlie temos um sorriso meio ansioso nos lábios, esperando de repente que o final do filme tenha mudado e ele consiga matar a esposa. O final, é claro, não muda.
O filme acaba minutos depois, a chuva lá fora se tornando mais forte a cada segundo, enquanto trovões e raios ribombam e cortam o céu.
Eu acabo de tirar a fita do vídeo cassete quando minha mãe desce as escadas e chama a nossa atenção. Ela usa um longo vestido vermelho vivo, e seus cabelos ruivos estão presos num coque exageradamente bonito.
- Cadê o papai? - pergunto.
- Ele vai vir direto do trabalho. Vou espera-lo lá fora... - ela estende a mão. - seus remédios, querida.
- Eu já ia subir para tomar - digo e Charlie, que está mais próximo, pega eles da mão dá minha mãe. - bom jantar para vocês.
- Obrigada, querida, devemos estar aqui antes das onze.
- Não se preocupe. Eu vou ficar bem.
Nos despedimos, ela pega seu guarda-chuva ao lado da porta e sai. Segundos depois ouvimos ruídos de carro, sinalizando que meu pai acaba de chegar.
- É muito legal isso - Charlie diz de repente.
- Isso o que?
- Essa coisa de ficar vinte anos com uma única pessoa... Eu não me vejo num relacionamento que dure três meses, imagina num que dure vinte anos.
- É, eu também não, mas por motivos diferentes.
- Então quer dizer que... se você pudesse, gostaria de passar a sua vida toda com uma pessoa? - ele pergunta, me encarando. Pego os remédio em sua mão e vou para a cozinha. Ele me segue.
- Acho que sim. Eu sou meio brega para essas coisas.
- Como assim brega? - encho um copo com água e tomo o primeiro remédio.
- Eu gostaria de poder me casar; de cuidar da casa e do meu marido... talvez também de um ou dois filhos - sinto um ardor nos olhos e os fecho. Não quero que as lágrimas caíam. Não quero que ele pense que sou fraca e estou com medo de morrer. Eu já perdi esse medo faz tanto tempo... O que me mata é só o fato de que não poderei fazer as coisas que gostaria, enquanto pessoas que têm tudo na mão, jogam suas realizações fora por conta de motivos sem importância.
Quando abro os olhos, Charlie me encara.
- Está tudo bem? - ele pergunta.
Forço um sorriso e tomo outro remédio.
- Tudo ótimo - respondo. A cozinha é invadida por um clarão e poucos segundos depois ouvimos um forte estrondo. - Que coisa maravilhosa - digo.
- É, realmente maravilhosa - ele murmura, mas não está olhando para a janela.
Dou uma tossida e passo por ele.
- Vamos lá fora.
- Hã? Lá fora? Como assim? Você ficou maluca?
- O que é que tem? O máximo que pode acontecer é eu morrer antes da hora - ele arregala os olhos e eu dou risada. - relaxa. Vão ser só um segundinhos.
- Hum...
Mas eu não espero pela resposta dele. Dessa vez, sou eu que o puxa pelo braço; abro a porta e uma rajada de vento quase me faz desistir. Deve estar uns quinze graus lá fora.
Saímos mesmo assim.
- Você é completamente maluca.
Descemos os degraus da varanda e vamos para o meio da rua vazia. O único som à nossa volta é o da chuva tocando o asfalto... Já estamos encharcados até os ossos e eu olho para Charlie, que sorri pra mim. Sinto um arrepio na espinha e olho para o céu. Como se fossem nervos, relâmpagos rasgam o céu escuro. Fecho os olhos e ouço outro trovão.
Sinto uma mão fria, como a chuva que toca meu rosto, segurar minhas mãos. Charlie está parado na minha frente e começa a cantar. Ele não tem uma voz afinada, mas isso não muda o fato de que quero ouvir cada palavra que ele irá cantar.
- Shyness is nice, and shyness can stop you from doing all the things in life you'd like to - 'A timidez é legal, mas a timidez pode te impedir de fazer todas as coisas que você gostaria de fazer na vida.' e, movido pela música inaudível que só ele conhece, começa a balançar os nossos braços de um lado para o outro, numa espécie de dança super lenta. - So, if there's something you'd like to try, If there's something you'd like to try - ele repete, cantando com a voz calma e lenta - ask me, I won't say "no". How could I ? - 'Então, se existe alguma coisa que você gostaria de experimentar, peça para mim, eu não diria "não", como poderia?'
Estamos dançando num ritmo um pouco mais rápido. Nossas mãos dadas e os olhos fixos nos olhos um do outro. Eu gostaria que esse momento durasse para sempre. Faz séculos que não me sinto tão bem assim, apesar de estar quase literalmente congelando. É engraçado como as coisas mais simples se tornam tremendamente incríveis quando se está morrendo. Se eu não tivesse essa doença, com certeza estaria deitada no sofá, enrolada num cobertor assistindo Doctor Who. Mas eu preciso aproveitar todas as mínimas, até porque, essa pode em minha última chuva.
- Deixa eu adivinhar... - quebro o silêncio "pós-canção". - The Smiths?
Ele balança a cabeça, confirmando.
- Estava ouvindo essa música no dia em que te conheci, e não poderia imaginar que eu a usaria para dizer algo à alguém - Não sei o que dizer, por isso, permaneço em silêncio. - é agora que a gente se beija? - ele pergunta, sorridente. Sei que está brincando, por isso solto suas mãos.
- Vamos entrar logo, vai - passo por ele e vou em direção à minha casa. Quando já estou há alguns centímetros da porta, percebo que ele não me segue. Paro e viro para trás. Charlie está parado, olhando para mim. - Que foi? Perdeu alguma coisa aqui?
Ele não responde, apenas vem na minha direção e entra na casa, completamente enxarcado.
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[CONCLUÍDA] A Contagem Regressiva de Charlie e Tess
Ficção AdolescenteEsse é o relato de uma garota com câncer que sabe que irá morrer, e de um garoto sem muitas expectivas na vida, cuja felicidade é encontrada nos olhos coloridos de uma menina ruiva. A contagem regressiva de Tess e Charlie é uma história sobre como...