99 dias. 4 de Outubro de 1986.

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Abro os olhos.

Minha visão está embaçada e tudo o que eu consigo ver é o contorno borrado de duas pessoas.

- Ela está acordando - sussurra uma voz feminina.

- Olá, querida - diz a voz da outra pessoa, agora um homem.

Finalmente posso enxergar direito e vejo uma mulher ruiva com o corpo inclinado em minha direção. O homem tem os cabelos castanhos e as duas mãos enfiadas nos bolsos.

- Quem são vocês? - pergunto.

A mulher arregala os olhos como se eu tivesse lhe dito algo realmente terrível e começa a chorar.

O homem se aproxima ainda mais de mim.

- Querida, como assim quem somos nós? Somos seus pais.

- Não, vocês não são meus pais.

- É claro que somos.

Eu não faço ideia de quem eles são; o homem estica o braço para me tocar, mas me ajeito na cama e afasto o rosto para longe dele, que diz:

- É melhor eu chamar o Dr. Blake.

Ele sai do quarto e eu sou deixada com a mulher chorosa à minha esquerda.

- Você vai encontrar sua filha - digo, tentando ser solidária.

Parece não funcionar. A mulher soluça ainda mais alto.

De repente, sinto uma dor muito forte no abdômen e levo instintivamente minha mão até ele. Sinto algo estranho. Existe um nódulo dentro de mim, há poucos centímetros do meu umbigo e aí eu me lembro: eu tenho câncer e vou morrer.

Por algum motivo, eu não consigo me lembrar de absolutamente nada sobre mim, que não seja esse maldito câncer. Lembro das inúmeras vezes que fui internada; das centenas de vezes que desmaiei em público; lembro de quando fui diagnosticada com câncer, em 14 de fevereiro 1978, no meu aniversário... E... Me esforço, mas isso é tudo o que eu consigo saber sobre mim.

A porta torna a abrir e a médica entra.

- Que bom que você finalmente acordou, Tess.

- Esse é o meu nome? - pergunto e o médico balança a cabeça. Ele se vira para as outras duas pessoas no quarto. - Não se preocupem. Isso deve ser efeito da pancada e do coma... Em alguns dias ela ficará bem.

Mil perguntas surgem em minha confusa cabeça.

- Pancada? Coma?...O que aconteceu?

- Bom, Tess, o trem em que você estava sofreu um grande ataque. Não recomendo que você saiba de tudo agora. Deixaremos para depois, quando você se recuperar totalmente.

- Mas eu estou recuperada! - exclamo. Ele não parece dar atenção; anota alguma coisa na prancheta que carrega, diz alguma coisa ao homem que diz ser meu pai e sai.

Não faço ideia do que dizer à esses estranhos, por isso prefiro ficar calada. A mulher ruiva escolhe o oposto.

- Filha? Se lembra da mamãe agora?

Balanço a cabeça negativamente.

- Sinto muito - murmuro, bastante desconfortável.

- Esta tudo bem. Você ouviu o médico. Ficará melhor em breve... Você e os sobreviventes.

- Muita gente morreu nesse...hum... ataque?

- Doze pessoas, filha... - ela dá um soluço meio engasgado e diz: - talvez você não se lembre dele agora, mas... Uma das pessoas que morreu era um conhecido seu.

- Conhecido? - pergunto, intrigada. Me esforçando para lembrar. Nada.

- Vocês estavam viajando juntos para Londres... Eu hesitei tanto em te deixar ir nessa viagem... Eu nunca quis... - ela volta a chorar, mas eu quero desesperadamente saber de quem ela está falando, mesmo que eu não consiga me lembrar.

- Hum... A culpa não foi sua, ok? Ninguém sabia... ninguém sabia o que ia acontecer, afinal. E, de qualquer forma, o meu acompanhante não deixaria de viajar se você tivesse me proibido de ir.

- É, eu sei... Ah, coitado do Charlie!

- Charlie? - indaga, apreensiva. Esse nome não me lembra nada nem ninguém. Que angústia! - Esse é o dele? - quero saber.

- Querida - o homem interrompe. - Não é bom ficar dizendo todas essas coisas para ela no momento, não acha?

A mulher ruiva balança a cabeça e levanta. Reparo que seus olhos estão vermelhos e há profundas olheiras em seu rosto.

- Vamos deixar você descansar... - ela se vira direção à porta. O homem da a volta na cama e a acompanha.

- Espera! - chamo, involuntariamente. Essa conversa não pode simplesmente acabar assim. - Esse tal de Charlie... Foi ele que morreu? O que ele era meu?

- Ele nos disse que é seu melhor amigo.

[CONCLUÍDA] A Contagem Regressiva de Charlie e TessOnde histórias criam vida. Descubra agora