Hoje é o enterro do Mike.
Três dias depois daquela incrível, terrível e embaraçosa noite, estou na frente do espelho passando gel no cabelo.
Minha mãe entra no quarto.
- Oi querida - ela fala. - Charlie acabou de chegar.
- Eu já vou descer.
- Coitado dele - ela cruza os braços. - primeiro o irmão e agora o amigo.
- É - "e depois a garota esquisita que beijou ele" penso, mas engulo as palavras. Hoje não é um dia para conflitos. - Melhor eu ir.
- Manda um abraço ao Charlie por mim - passo por ela e desço a escada.
- Tchau, mãe - abro a porta e saio. O carro está parado há alguns metros da minha casa. Está chovendo. Baixo a cabeça e corro até o Ford Anglia do Charlie, que destrava a porta para que eu entre. - Oi.
- Oi - ele diz com cautela. Não nos falamos direito desde o domingo, quando tudo aconteceu.
- Como você tá? - pergunto.
- Melhor. Eu acho. Vamos?
Entendo que ele não quer continuar o assunto e abaixo a janela; ele logo liga o carro.
O trajeto até o cemitério é silencioso e meio pesado. Eu encaro, com os olhos já doendo, as árvores e casas passando do lado de fora, enquanto o Charlie dirigi encarando a rua à nossa frente.
Finalmente chegamos.
Ele para o carro juntamente com os outros do estacionamento, mas não sai.
- Talvez esse não seja o melhor momento - ele começa do nada. - mas... por que você me beijou e... por que você disse aquilo? - pergunta. Finalmente olho para ele que, como era de se esperar, já me encara.
- Eu não sei se quero...
- Tá, mas eu quero. Vamos, diz.
Eu não quero dizer. Não quero assumir. É ruim demais para poder falar em voz alta. Antes que eu possa tentar desviar o assunto, fugir ou disfarçar comentando sobre o de repente interessante retrovisor, ele questiona, a voz séria.
- Você gosta de mim? - seus olhos nem piscam e, por mais que eu queira desvia-los, me sinto atraída.
- Não - respondo logo de cara. Ele arqueia as sobrancelhas. - sim - falo em seguida, as sobrancelhas dele permanecem arqueadas. - Quer dizer... eu não sei.
- Você pode se decidir, por favor?
- Eu até poderia, se a gente não estivesse no estacionamento do cemitério para o enterro do seu melhor amigo.
Ele meneia a cabeça.
- Faz sentido - confessa, forçando um sorriso triste que faz com que eu sinta vontade de abraça-lo.
- Eu sei que faz - levanto a mão para tocar seu ombro, mas desisto no meio do caminho e coço a cabeça.
Ele destrava o carro e eu faço o mesmo. Saímos do carro.
Antes mesmo de chegar à cova onde o Mike será enterrado, já é possível ver ao redor dela uma pequena aglomeração de pessoas.
- Micheal Phillips permanecerá no coração de todos nós até o fim de nossas vidas... - fala solenemente o orador que, segundo o Charlie, também é pai do Mike.
- Não quer ir para frente e se despedir dele? - pergunto, tentando dizer algo para que ele não pense que não sei confortar as pessoas. Não que ele realmente fosse pensar isso.
- Depois, talvez - Charlie cruza os braços e faz silêncio, assim como os outros.
Ouvimos as palavras do pai do Mike e finalmente chega o momento mais difícil para todos. O caixão deve ser enterrado.
Mesmo estando lá na frente, consigo ouvir os soluços nervosos e meio engasgados da mãe do Mike. O pai dele a abraça e, antes que o coveiro feche o caixão, os dois lançam uma rosa amarela lá dentro.
Sem nenhum aviso, Charlie sai do meu lado e para há mais perto da cova. Eu o observo. Ele continua lá, parado, observando. Charlie leva uma mão ao rosto e eu não sei o que está acontecendo até que ele se vire para mim e eu veja seus olhos vermelhos.
- Vamos sair daqui. Aquele não é mais o meu amigo. Ele se foi.
Balanço a cabeça e o acompanho de volta ao carro.
Entramos. Eu não sei o que fazer; ele respira com força e dá um soco no volante, tocando a buzina sem querer. Eu me sobressalto, pois não esperava por isso e ele me olha.
- Desculpe.
- Não, relaxa.
- DROGA! DROGA! DROGA! INFERNO! PUTA MERDA MIKE, POR QUE VOCÊ FEZ ISSO COMIGO??!- ele aumenta a voz enquanto olha para a o teto do carro. - Tínhamos combinado... morreriamos de overdose de maconha... na caixa d'água... - agora ele murmura, desolado. Sua cabeça está encostada no banco e, apesar dos olhos fechados, uma lágrima escorre pelo seu rosto.
Toco seu ombro magro e ele me olha.
- Você ainda pode morrer de orvedose comigo, se quiser.
Ele ri.
- É overdose, Tess. E não, orvedose - um "Ah" quase inaudível sai da minha boca e ele torna a rir. Eu também dou risada e ficamos assim por alguns minutos, até que ele para de repente e só me encara.
- Eu realmente gosto de você - diz. Sinto minhas bochechas queimarem e procuro não desviar os olhos.
- Eu não. Gosto de um cara chamado Júlio - digo e ele morde o lábio.
Tiro minha mão do seu ombro e me ajeito no banco.
- Sabe, isso tudo me deu uma baita fome. Fome de comer fritas. Você quer comer fritas, Júlio?
Lanço um olhar para ele, minhas sobrancelhas arqueadas como se nada de... peculiar tivesse acabado de acontecer.
Charlie não diz nada; liga o carro e sai do estacionamento.
Meu coração bate tão rápido e eu me sinto tão ironicamente viva, que eu poderia ir correndo até a lanchonete.
VOCÊ ESTÁ LENDO
[CONCLUÍDA] A Contagem Regressiva de Charlie e Tess
Ficção AdolescenteEsse é o relato de uma garota com câncer que sabe que irá morrer, e de um garoto sem muitas expectivas na vida, cuja felicidade é encontrada nos olhos coloridos de uma menina ruiva. A contagem regressiva de Tess e Charlie é uma história sobre como...