2 O Som da Esperaça

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Alicia

Ouvi ele chegando, era tão fedorento de álcool e cigarros, que eu conseguia sentir antes mesmo de ele abrir a porta, coloquei o livro dentro do armário e o tranquei. Corri para a pia fingindo esfregar uma das tigelas plásticas que usávamos para comer. Tomei o último fôlego antes de ele abrir a porta e o cheiro da imundice invadir a casa.

— Cadê minha comida, Desgraça? — Ele cantarolou com a língua enrolada pelo álcool.

— Já vou servir. Senhor. — falei baixo, e usando ar suficiente só para falar, respirando pela boca para evitar o odor nojento.

Peguei o tacho de sopa do almoço, esquentando já há alguns minutos e coloquei quatro conchas em uma vasilha de plástico, a sopa rala com batatas, cenouras e caldo de carne estava quente o bastante para queimar até os bigodes daquele maldito.

Todas as vezes... absolutamente todas as vezes em que lhe servia, pesava os prós e contras de lhe jogar o caldo quente na cabeça e lhe derreter aquela cara de demônio. Todas as refeições eram tentadoras. Mas não o fiz, e não tinha coragem, por mais humilhações que pudesse sofrer, não conseguia, não podia, não era de mim, eu não conseguiria carregar o peso de uma morte assim. Mesmo com tudo sendo difícil em minha vida, a morte nunca fora solução, não era assim que eu tinha sido criada.

Me sentei, assistindo-o terminar de comer, como eu era obrigada a fazer. Obrigada a assisti-lo comer com os bigodes pingando o caldo na camisa que um dia fora branca. Ele era nojento de todas as formas que poderia existir na terra.

— O que você tá olhando Desgraça? Não vai comer?

— Estou sem fome, Senhor — falei baixo.

—Deveria obriga-la a comer! Quando atingir a idade, não quero ter apenas ossos para me satisfazer — Ele gargalhou, com as batatas na boca, o som me fazendo estremecer.

— Não tenho apetite, Senhor. ⸻ baixei a cabeça, falando baixo, engolindo o medo e a repulsa.

— Está parecendo um cadáver, me dá nojo olhar pra essa sua cara.

Apertei minhas mãos sobre as coxas embaixo da mesa. — Sinto muito.

Voltei a olhar para ele, quando ergueu a tigela bebendo o líquido e derramando mais um bom tanto na camisa e na toalha da mesa.

Com as mãos ainda sujas e cheirando a sopa, ele esticou um braço na minha direção, fechei os olhos em repulsa enquanto ele afastava meu cabelo no rosto.

— Quantos anos tem mesmo Desgraça? — sussurrou ele, e sua vontade de me tomar, brilhava em seus olhos.

Senti meus lábios tremerem de nojo com o toque e o cheiro — Dezessete. — murmurei. Mentindo como em todas as vezes.

Sua expressão foi de fúria, e ele afastou sua mão socando a mesa. — Não serve pra nada! Pra nada Desgraça! Maldita hora que peguei você do lixo, maldita hora que tive pena de você! Você não cresce, não consigo dinheiro, só me dá gastos e nem posso trepar com você!

— Se me deixasse sair, eu poderia trabalhar... poderia...

Não consegui nem me virar quando sua mão acertou meu rosto, tão forte que caí da cadeira. Meu pescoço estalou, e me encolhi no chão, me protegendo, ou ele continuaria.

Ele se levantou, cambaleou esbarrando nos poucos móveis, e ouvi ele cair no quarto. Uma parte de mim desejou que ele tivesse batido a cabeça e morrido. Desejou que eu encontrasse seu corpo em uma poça de sangue. Mas não, ao me levantar, vi que suas pernas estavam para fora da cama, ele, de alguma forma conseguira se arrastar, mas deixou um rastro de urina da porta, até o capacho da cama.

Fechei a porta, e voltei para a pequena sala, me encolhi na poltrona surrada, com um guardanapo com gelo sobre o lado direito do rosto, e meu livro achado no lixo sem a capa e as dez primeiras páginas, mas ainda era um bom escape daquela vida. Daquele lugar, até mesmo daquele cheiro terrível.

Desde que ele me "salvara" não tive um dia sequer de paz, eu tinha consciência de que sabiam que eu estava ali. Mas ninguém se importava o suficiente para  imaginar o que acontecia  dentro daquela casa.

Vezes sem conta, me perguntei, como conseguiria viver mais um único dia daquela forma. Mas não havia alternativa para mim. Fugir não era solução, porque ele era um oficial, e eu seu bicho de estimação, tinha ciência de que ninguém ali me ajudaria, ninguém me salvaria se eu pedisse. Pelo menos, ainda não.

****

Era perto da uma da manhã, e ouvi os passos de sempre na escada, eram botas pesadas de alguém forte, que caminhava com determinação. Ele sempre chegava de madrugada, as vezes ouvia murmúrios do outro lado da parede. Em algumas noites, ele chegava parecendo querer destruir a própria casa, quebrando e atirando coisas entre rosnados. Em outras, não se ouvia nada, nem respiração.

Eu não dormia enquanto o monstro estava em casa, preferia deitar minha cabeça e me permitir dormir só quando estivesse em segurança. Na minha ideia, aquilo queria dizer, sozinha.

Como todas as noites, colei o ouvido a parede de madeira e fechei os olhos, ele caminhava de um lado para o outro, se sentou em determinado momento arrancando as botas. Os passos mudaram de som, e ele saiu do cômodo.

Soltei o ar.

Um dia eu veria seu rosto. Um dia veria tudo do lado de fora, mas principalmente o dono daqueles passos inquietos na madrugada. O dono dauele lamento silencioso.

Voltei a ler, depois de ouvir seu ritual costumeiro antes de se deitar. Arrancar as cobertas da cama, esticá-las no chão e então, exercícios, exercícios até sua respiração ficar ofegante, entrecortada pelo esforço, e ele desabar, e dormir, ali mesmo no chão.

Abracei o livro, encostando a cabeça na parede, e fechei os olhos antes de usar as batidas correspondentes do código morse para — Durma em paz. E tenha sonhos bons.

Fazia isso nos três idiomas que conhecia razoavelmente, desde que ouvira seus pesadelos a primeira vez. As poucas palavras pronunciadas do outro lado, não eram conhecidas por mim. Mas podia tentar mesmo assim.

Sorri, com o pensamento de dizer isso para ele um dia. Ele, porque sabia que o peso e o som de seus passos, o ritmo, a voz... Era um homem, e me permitia dar um rosto a ele todas as noites, cada dia um. E imaginava se um dia poderia comprovar se chegara perto de acertar suas feições. Imaginava um homem grande, com braços volumosos, cabelos castanhos e olhos tristes. Olhos verdes que refletiam sua dor. A dor que afligia seus sonhos... Mas era apenas minha imaginação fértil demais. Era apenas minha mente trabalhando com sonhos especiais. Mas esses, não eram reservados para pessoas como eu. 

AlgozOnde histórias criam vida. Descubra agora