Will
Jantamos em silencio absoluto, ela no quarto, ele na mesa de frente para mim. Nada além de respirações e sons de talheres nos pratos. Se não fosse pelo fuzil encostado na parede, e minha faca de combate sobre a mesa, a cena poderia ser igual a de qualquer casa próxima.
⸻ Como aprendeu a cozinhar Senhor? ⸻ ele falou baixo, quebrando o silêncio da casa, sua voz ainda era trêmula, mas sabia que o silêncio o incomodava, ele não se interessava por minhas habilidades na cozinha, só queria uma distração para seu medo crescente.
Ergui os olhos para ele ⸻ Quando se passa mais tempo em movimento que em um lugar fixo, você aprende certas coisas que podem te manter vivo.
⸻ Mas usou sua língua materna para nomear o prato.
Baixei a cabeça deixando o talher escapar de mim. Seria o medo fazendo-o raciocinar, ou ele escondera essa habilidade até agora?
Dei de ombros ⸻ Minha boca é capaz de pronunciar várias linguagens, mas eu ainda penso em minha própria língua.
Ele não pareceu satisfeito com minha resposta. Mas deixou passar.
⸻ Quero aproveitar que está aqui para lhe esclarecer algo, já que não atirou em mim, ou correu para implorar clemência de seu senhor.
Ele ofegou, apertando os dedos, fechando as mãos sem me olhar. ⸻ Meu Senhor tem muitos soldados para me substituir. Pedir por minha vida, seria perda de tempo, se é como você diz.
Fiquei feliz em ser tirado do patamar de "Senhor", meu objetivo não era angariar seguidores, ou simpatizantes.
⸻ Vamos juntos para a reunião amanhã. Não vigia e caça, mas como iguais, é assim que irão nos ver. Não esboce reação, a reunião vai tratar do nosso caso, mas acredito que será o último. Não opine, nem mesmo se mova se conseguir.
⸻ E ela? ⸻ Ele apontou com a cabeça para o quarto.
⸻ Ela mal pode andar, mas está fora de questão não levá-la conosco. Guardião precisa ver que não temos intensões escondidas.
Ele assentiu.
⸻ Fique com o sofá esta noite, a reunião será as quatorze horas, terá que me mostrar onde vai acontecer.
Seus olhos baixaram, enquanto seus ombros tomavam uma posição de decisão ⸻ Não pedirei mais que tente salvar minha vida, mas espero que consiga salvar a dela. Ela é a maior vítima dentre nós.
Fiquei em pé recolhendo a louça, desinteressado na conversa ⸻ Amigo... eu não salvo pessoas, não sem um propósito, não me importa se ela é vítima ou não. Não me verá implorar, nem por ela, nem por ninguém.
Ele se calou, se levantou da mesa, deu uma longa olhada para a porta do quarto e se jogou no sofá, arrancando as botas. Terminei de limpar a cozinha, recolhi o prato de Alicia ao lado de sua cama. Ela já dormia, e agradeço por isso. Me sentei à mesa, não podia me dar ao luxo de planejar qualquer coisa. Não sabia como as reuniões funcionavam, e tinha certeza que mais do que olhos amedrontados estariam sobre mim. Ele não esperaria que eu me entregasse pacificamente. Gael estaria preparado também, com o agravante de ele conhecer minha fraqueza, saber meus pontos fracos, mas eu também conhecia os dele, e não havia nenhum tipo de irmandade agindo sobre nós que impedisse de usarmos conhecimentos obtidos enquanto estávamos do mesmo lado. Ele podia me destruir com poucas palavras, e eu podia matá-lo com poucos movimentos. Tudo era uma questão de o que ele ganharia se me entregasse.
***
Despertei com o sol, Miguel ainda roncava no sofá, com a garganta exposta, longe da arma, torto, e visivelmente em sono pesado. Ignorei a vontade de chutá-lo. Calcei minhas botas, e entrei no quarto, para a minha surpresa, ela estava sentada na cama, me olhando como se soubesse da minha aproximação, antes mesmo que eu tomasse a decisão.
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Algoz
Romance(+18) Will é um soldado rebelde com um passado sombrio e repleto de traumas. Junto a seu grupo, ele é recrutado para a América do Sul, onde se instaurou uma guerra civil. Capturado em uma armadilha, ele se vê refém, em uma vila isolada do mundo ond...