Capítulo IX

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Liana estava preparada.

Mais do que ela esperava estar, mas as comidas que Teseu vinha trazendo ajudou e muito. Silver tinha dito que não podia se arriscar, que os outros elfos estariam esperando uma chance de roubar a posição dela. Dois aliados, duas vezes mais chance. Embora Teseu ainda não fosse uma certeza absoluta até o final do plano.

Silver tinha certeza que seria naquela noite, que Gilbert não poderia arriscar mais um dia. Então, uma parte dela esperava que não houvesse a sessão, mas, a despeito de suas vãs esperanças, Laurel apareceu como sempre. Liana respirou fundo quando o viu, e disse a si mesma.

" É a última vez"

"É a última vez"

De um jeito ou de outro, seria a última vez. Ela precisava ser forte apenas por mais um dia, apenas por mais uma sessão, ela precisava resistir. Mas foi o sorriso insidioso que a preocupou. Laurel parecia ansioso demais. Ele tirou o caderninho do bolso e o abriu, como se estudando alguma coisa escrita ali.

_Tinha algo que vinha me deixando curioso. Algo estava faltando, uma memória que eu não conseguia acessar. Foi então que eu compreendi, você suprimiu a própria memória. Sem magia. A sua mente fez isso sozinha para te proteger.

Liana estremeceu, e uma dor lancinante irrompeu na sua cabeça. Laurel se aproximou mais, aqueles olhos escuros sem luz, ele disse, num sussurro:

_Você não se lembra direito da morte de David, não é?

Ela não teve tempo de reagir. Ela sentiu a vertigem de sempre, como se estivesse caindo de um lugar muito alto, e abriu os olhos. Ela estava em um chalé antigo, um que ela reconheceu de imediato. As paredes de madeira, o ambiente aconchegante, a decoração simples, flores colocadas por toda a casa, os papeis com desenhos espalhados, os soldadinhos de argila. Aquela tinha sido a casa que Liana tinha conseguido alugar para eles, após muito tempo sobrevivendo de tavernas e acampamentos. Quando Liana conseguiu algo fixo em uma taverna modesta, uma que ela sentiu que poderia trabalhar sem lidar com homens passando a mão pela sua cintura e coxa. A dona era uma mulher simpática, não muito diferente de Sirona. As pessoas a respeitavam na pequena vila, pouquíssimas pessoas viviam naquele condado. Ela sentiu que eles estavam seguros, que podiam relaxar um pouco. Foi o maior erro da sua vida. Se ela tivesse se mantido na estrada, sempre se movendo, sempre se deslocando, talvez... Mas David era tão novo, e ele queria tanto uma casa. Liana acabou cedendo ao impulso. E, durante alguns meses, eles viveram em paz. Quando não estava trabalhando Liana o levava até o bosque, David brincava o dia todo e nadava no rio, Liana o acompanhava. A mancha estagnara, e os acessos se tornaram raros. David chegou até mesmo a fazer um amigo na vizinhança.

Mas ele os encontrou, eventualmente.

Laurel estava certo, era uma memória confusa, pois parte dela Liana se lembrava vividamente, até os mínimos detalhes. E depois...uma confusão. Mas ela se lembrava daquilo, de ter acordado, de fazer café em frente a luz amena do nascer do sol, de ouvir os passinhos de David até a cozinha. Assim como em todas as memórias, ela estava presa dentro do próprio corpo, sem poder nenhum de ação ou fala. Então quando David apareceu, o cabelo bagunçado, o rosto sonolento, o pijama amassado. Foi tão real que ela engasgou por dentro. Até o cheiro dele era real.

_David – ela foi até ele, se ajoelhou e segurou seu rostinho entre os dedos – Você pode dormir mais, não precisa acordar tão cedo.

Ele bocejou, e abriu um sorriso sonolento.

_Mas se eu dormir, quem vai te fazer companhia?

Apesar de ser uma criança, David era absurdamente intuitivo. Ele sabia que Liana era codependente dele, de alguma forma. Sabia que ela era solitária e que ele era sua única fonte de afeto no mundo. Então ele nunca ficava longe, não porque tinha medo de ficar sozinho, mas porque sabia que ela tinha.

Lealdade & Ambição - Legados de Sangue / Ominis GauntOnde histórias criam vida. Descubra agora