Pergaminhos Perdidos: A Crença da Harmonia

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A brisa dos montes que guiava as velas pelo rio e acaricia os arvoredos soava sua natural sinfonia pelas quebradiças folhas, fadadas sobre o santuário da Voz das Aves. Incensos e pétalas queimavam nas vasilhas ante o monumento da dama alada. Ali, onde o auge do Kéhsam era celebrado a cada ciclo que findava, elas caminhavam sem pressa ou rumo certo, vislumbrando a oferenda que era prestado pela sacerdotisa em forma de cântico. Respeitavam o transe áurico da cultista, mantendo a fala baixa em distância.

— O que nos fora dado pela Voz das Aves jamais poderá ser agradecido. — A túnica verde de caimento confortável esbarrava a saia por vezes nos amontoados maiores de folhas. Uma caçadora exímia, que se tivesse vocação, certamente teria sido uma enakân magnífica. De qualquer modo, amar o combate em nada lhe impedia de amar a erudição. — O cultivo, a domesticação, a compreensão de nós mesmos, muito viera dela no começo dos tempos. Dizem que foi a primeira das lunnos deste mundo, mas soa improvável. Possivelmente outras nasceram antes dela, porém, esta sobreviveu até a maturidade, diferente das demais.

— Mesmo com todas precauções e apoio, adoeço fácil. Imagine para ela. Devia ter sido terrível e confuso. — Adjacente, a lunno acompanhava Êdya. Yîarien mantinha o capuz mais por simbologia do que por precaução ou necessidade de esconder-se. Sua incomum visita ao santuário era percebida pelos membros de Aitháa, e ela só a fizera por não haver estrangeiros em Aitháa naqueles dias. Uma inocente curiosidade veio à jovem awbhem. — Fora há milênios antes da Primeira Era. Seu espírito talvez nem exista mais. Se Voz das Aves é uma imagem tão antiga, a quem ofertamos, afinal?

— Teria que perguntar a um enakân muito sábio — sorriu a capitã das vigilantes. Nem mesmo ela pensara nesta questão desta forma. — Creio que ele lhe dirá que é irrelevante. Sý'Einna assumiu esta imagem quando encarnara do ventre da besta. No fim, acabamos por venerar a Matriarca e sei que é isso o que importa.

— Nascida da besta... — repetiu com ênfase. — Sý'Einna deve ter abalado os povos daquela época.

— Teria abalado até em nossa Era — riu baixo, mantendo o respeito. — Tome isso como aprendizado, Yîarien; ela unificou as tribos, sendo o fruto mais improvável.

— Ela era uma lenda viva. — Yîarien argumentou sem desanimar. — Por enquanto só Aitháa conhece meu nome.

— Por enquanto — Êdya partilhava do mesmo ânimo. — Uma criatura sombria que ameaçava os antepassados acabou a gerando — era esta certamente a lenda awbhem mais difundida dentro e fora da Gállen, sempre usada para embasar as crenças e a origem da Antiga União. Quando novos povos eram descobertos na Primeira Era, esta era a primeira lenda narrada pelas lunnos diplomatas, assim, introduzindo a noção transcendental da rainha dos awbhem. — Ouvimos ao longo da vida diversas interpretações, mas o que mais vale, ao menos para mim, é como o Cântico de Nhãmrú é perfeito nessa história.

— Amaria ouvir a maior caçadora de Aitháa dividindo seus pensamentos eruditos — pararam ali e se sentaram sobre a grama rala, próximo a uma das pedras talhadas em baixo relevo e que era engolida pelo solo ao longo dos séculos.

— Veja como tudo é feito de forças diversas. A Existência e até a nossa forma, tudo é influenciado por Nhãmrú. — Sentada de pernas cruzadas, Êdya gesticulava os braços, quase como uma maga em uma conjuração. Então, mergulhou na cosmogonia awbhem. — Mudança e Preservação. Ambos sentidos opostos dominavam as Forças Akâns, causando a morte entre eles. A Forma, as Luzes, o Som, o Fluido, o Calor, o Sopro, a Essência, a Energia e tudo mais jazia em completo caos. O confronto fez a Existência se destruir por si só, e nas ruínas restou somente Nhãmrú, que jamais entrara no conflito. Cada aspecto do cosmos foi reforjado pelas mãos de Nhãmrú para moldar o universo atual. Por ser o aspecto da Harmonia, imbuiu parte de si mesma na reconstrução. Mas, sua obra foi um santuário onde os restos dos Akâns pudessem descansar eternamente.

— E nós habitamos este santuário — a lunno disse, relaxando a postura, sentada sobre os calcanhares.

— Ao mesmo tempo que somos ele. Quando um animal caça, ele impõe sua vontade de Mudança ao outro, e quando sua vida acaba, a natureza o consome de volta lhe impondo a vontade de Preservação. Quando a maré sobe sob efeito das luas, quando os cumes ficam nevados, quando o rio flui, quando as folhas caem, quando guerras ocorrem. — Pegou uma folha seca próxima de sua bota a segurando pelo talo e a girou vagarosamente entre os dedos, expondo os lados danificados. — Somos feitos dos mesmos aspectos que esta folha. Ela viveu em seu intento e pereceu. E mesmo dentro de nós mesmos há divergências, resquícios desse confronto cósmico. Mudança e Preservação para sempre lutarão dentro e fora de nós, sem que haja um lado inteiramente certo ou vencedor. A Harmonia é a única forma de unir — levantou os olhos para a lunno, fitando os inigualáveis olhos prateados. — Quando se tornares uma grande enakân, entenderá como na prática esta é uma lei do mundo. A conjuração nada mais é que nossa aura, através de Nhãmrú, tocando o lado externo e impondo nossa vontade. A aura dobrará o mundo se assim for digna e forte o bastante.

— A busca pela Harmonia deveria ser minha prioridade durante a missão sagrada. — Yîarien admirava as palavras sábias de Êdya que tanto a engrandecia.

— De fato. Somos falhos e devemos assumir isso em humildade para não nos cegarmos ante a possibilidade de evoluir. — Desfazia lentamente a débil estrutura da folha com a mão. — E então, quando a besta viera com sua intenção de Mudança, caçando os awbhem daqueles tempos, nosso ímpeto de Preservação prevaleceu, graças a Endamyan que a derrotou. Não esperavam eles que a Mudança viria mesmo assim.

— Com a vinda de Sý'Einna — completou, apreciando a lógica. — Isso é belo.

— Há muitas faces para todas as coisas. É o que os enakâns dizem.

— Voz das Aves é uma das faces da Matriarca. — No canto da visão da lunno, a silhueta da sacerdotisa continuava o rito.

— E quando a exaltamos, concedemos parte de nossa própria energia para sua imagem. Assim os espíritos divinos se fortalecem, escondidos nos véus que não podemos ver e nem o Banimento tocar, para nos guiarem pela Aura.

Quinta Lua (Ýku'ráv)Onde histórias criam vida. Descubra agora