(68) - Ríltame

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"Meu íntimo atormenta-se. Prenúncios soturnos, errôneos, ásperos, permeiam meu pensar.

Vidência fora tratada como pura fantasia entre os pensadores, sendo um dos raros tabus de nosso povo. De algum modo, os fios invisíveis que tecem nossa história poderiam ter sua trajetória projetada, e não exatamente desvelada. Esse é um domínio do Vazio ao qual não deveríamos temer. É errado vivenciar o que nunca fora ou o que se não é? A dimensão dos espíritos guarda planos irreais, verdades distorcidas, fruto dos que lá habitam aprisionados e perdidos. No entanto, os espíritos muito sabem e possuem todo o tempo da Existência para predizer o que virá a ser. Confesso que a princípio não confiava neles nem em seus planos etéreos até que testemunhei certas previsões assustadoramente precisas. Senti temor. Meu próprio espírito foi abalado, pois minha visão se ampliou.

Vida e Luz formam um elo nesse mundo e eu os domino como sua mestra. Sei que a grão há de germinar ao solo pelo mesmo motivo que o dia há de perfurar o firmamento ofuscando as estrelas. Ciclos não são segredos, são trilhares ao entendimento. E justamente pela minha posição ante o Panteão que os espíritos se aproximaram de mim.

Tracei o ciclo ao povo, tal uma árvore de frutos. Pragas virão para consumi-la. Murchar-se-ão as folhas. Ramas secarão. Galhos cairão e tudo o que fora vívido definhará. Um caule trincado sem seiva descascará ao vento e as sementes, veículos de memória e esperança, despencarão junto ao pomo morto. Mesmo ante o fim do que fora grande, haverá um solo para que estas sementes se nutram e maturem. E nessa renovação do ciclo que meu pesar dá início. As sementes hão de se erguer. Frágeis, indefesas, sem orientação da árvore, perderão o sentido de unidade e competirão entre si. Tal catástrofe só culminará se perdermos a Matriarca. A união das tribos dissolvida traria uma guerra entre os awbhem e a ruína de nossas crenças. Tudo se tornaria infundado e as tradições seriam recusadas.

Fora essa a falsa verdade que minha visão trouxe da teia dos eventos vindouros. Quero desacreditar. Esqueceria se pudesse, mas seria imprudente se só eu vislumbrasse o suposto futuro que nos aguarda. Não sei como me preparar, como reagirei. Meu povo não perecerá. O último suspiro de meu espírito será gasto para lutar contra este fim e contra o fim dos awbhem.

Milênios vaguei pelo mundo e mesmo assim não vivenciei o bastante."

- Nyranuai, pergaminhos secretos


— NOSSOS AMIGOS de Á'Glah realmente necessitavam de nós. — Sorriu malicioso, a pegando pelo queixo carinhosamente. Fora a apertando gradativamente com os dedos de unhas tingidas de negro, igual ao entorno dos olhos, até que ela puxou o rosto para trás, libertando-se de sua pegada repulsiva. — E não mentiu para mim. Bom para você.

— Espero que não esteja pensando que me prenderá aqui, pois não conseguirá. — Veludo Negro o defrontou pegando um conjunto de espadas embainhadas na estante de armas à frente da cabine.

— Seria um desperdício, minha amada. — O lorde mercenário era um mestre em palavras. Seu desdém poderia soar como ternura, se assim quisesse. — Poderá lutar e morrer em nome de tua senhora em breve. — Virou-se à proa posicionando seus machados curtos no cinturão. — Nimeri, o que temos?

— Uma cidade em chamas e fumaça. — A sentinela se pendurara por cordas sobre uma haste de madeira ao meio do mastro, ganhando uma visão melhor dentro da noite recém caída. Sua vista ainda era melhor que de cima da torre no piso frontal da nau. — Se não for um incêndio controlado, há tochas nos atracadouros. Para nossa sorte essa ilha inteira é um porto, de todos os lados aparentemente.

Quinta Lua (Ýku'ráv)Onde histórias criam vida. Descubra agora