Ato II: O Errante do Oeste
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"Andarilhas das florestas. Assim primeiramente foram chamadas as lunnos. Cantavam e contavam mitos entre as tribos primitivas, cativando admiração e adoração, as infundido como seres sagrados nas crenças de todas as espécies. Migravam instintivamente saciando a sede de conhecimento, trocando seus ensinamentos entre elas quando se encontravam, organicamente desenvolvendo uma linguagem e escrita unificadora que perdurou entre elas devido à longevidade de seus corpos, dessa forma, mantendo a língua viva. A linguagem originado pelas lunnos ancestrais, após ser organizada por Níshma, ficara conhecido como Kandhú; a língua awbhem, a língua da Gállen."
— Alicerces da Gállen
Origem da União
A SOMBRA se esgueirou colina abaixo com o caminhar confuso. Parou na margem de pedras do lago e se ajoelhou. Livrou-se do manto negro e da proteção facial para encarar suas cicatrizes de combate e imperfeições diante do espelho d'água.
Pouco importava o amanhecer. Pouco importava a missão. O ódio não se reunia na intensidade desejada. A determinação vacilava. Distúrbios infindos.
Sacou a faca do cinturão de adagas, alisou-a no rosto e no pescoço tentando ver além do fundo do lago onde existia seu reflexo doentio na superfície.
O imponente inimigo, o alvo mais fácil, aquela que faria tropas sucumbirem, o atingiu do jeito mais inesperado, pois ela não lutava com armas. De todas as sensações que tentava compor, só as relacionadas à vergonha e à humilhação se formavam. Estava sendo levado à beira do desespero por si mesma.
Vijh firmou o cabo da pequena arma apontada para o centro de seu corpo. Hesitou, não uma, mas várias vezes, até que finalmente conseguiu executar o movimento final.
Tombou do lado daquela mesma margem, permitindo que o sangue jorrasse por contra própria, e não pelas mãos de seu mestre ao descobrir o fracasso.
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O GRANDE derramamento de sangue de Eyve'thir, a Floresta Dourada nos Bosques de Nyranuai, reverberou como um prenúncio macabro. Os fiéis seguiram a herdeira do trono da Gállen, atraídos pela promessa da Revelação da nova matriarca. Viram-se privilegiados em viver em tal época gloriosa, onde seriam os primeiros a conhecer uma nova Era, a Era prometida pelos antepassados. Em troca, os adoradores de Bálshiba chacinaram a todos que testemunhavam a Revelação, interrompendo-a, impondo mais do que a morte; impondo medo aos que ainda viviam na esperança.
Os povos das aldeias que apoiaram a jornada da herdeira souberam do monstruoso crime diretamente pela voz dos algozes. Confusos, tendo as terras invadidas, os aldeões tentaram, em vão, resistir, mas foram eliminados e falharam em defender suas terras. Os combatentes inimigos, vindos da Floresta Dourada, não dialogavam; meramente impunham as armas contra as gargantas dos inocentes alegando uma caçada aos devotos da falsa rainha.
Uma coorte de três centenas de combatentes thulym de Arutama, legionários, portadores do temível brasão do chifre partido, marcharam pelas estradas por onde a suposta herdeira viera, rastreando os que a adoravam, invadindo e saqueando violentamente assentamentos e vilas, traçando o caminho reverso justo por onde ela peregrinara, buscando seu local de origem. Acima de tudo, a líder desse grupo, a campeã da legião de Dranvath, distorcia e difamava o nome da lunno, ao mesmo tempo em que executava camponeses a sangue frio por pura demonstração de superioridade e terror, empalando e crucificando vítimas em encruzilhadas.
A imagem de Yîarien não foi abalada e, em efeito contrário, a veneração por ela se ampliou secretamente, pois testemunhavam quanto o inimigo a temia. Os fugitivos do novo massacre alertaram as demais vilas levando o testemunho. Se ela, a sua adorada, estava morta ou viva, não importava, sua figura se reverteu em símbolo de persistência, dor e sacrifício. Uma divindade que seria posteriormente relacionada à morte, mas encarada de várias maneiras. Assim, o nome de Quinta Lua evoluiu entre os povos mesmo sem estar presente.
Em certo ponto da invasão, após mais de um mês seguindo ao Norte, a campeã notou que os povoados haviam se esvaziado, restando pouco para saquear. Nenhuma organização militar por parte das cidades-estados se declarava defensora para se opor às atrocidades. Todas as estradas, todos os caminhos levavam ao abandono. Presumiu-se, então, estar surtindo o efeito moral que sua ordem demandara.
Quando os legionários adentraram nos limites da vila portuária do Lago das Brumas, pilharam e a queimaram inteira ao longo de um dia, destruindo seu santuário, pois ali havia a maior quantia de representações da herdeira entre os povoados invadidos. Esculturas rústicas em madeira queimavam junto a pergaminhos, em piras improvisadas no interior do templo, para que nada associado a ela restasse; e até mesmo os que desistiram de fugir, os sacerdotes que se entregaram ao martírio, foram castigados e agredidos até a morte na casa sagrada que desabava em chamas. No porto, apoderaram-se dos barcos, a maioria mercante, então assumiram a rota para Aitháa, seu trajeto final.
Destruir a tribo de origem da divindade falsa era, por fim, a ordem maior dada àquela coorte seleta de legionários.
Vyso'ógyw, o Lago das Brumas, é um leito imenso, esconderijo de formas que observam atentas, escondendo-se, preservando a própria contagem de tempo em seu particular calendário.
"Nem as pétalas que caem sobre a água passam despercebidas."
Vultos esguios deslizavam por baixo dos barcos. Diversos e indistinguíveis. Por mais que os legionários atirassem azagaias, não intimidavam as estranhas presenças que os acompanhavam pelo lago. Hastes começaram a estocar contra os cascos, rasgando, criando aberturas que não podiam ser cobertas. A água invadiu os barcos, e os legionários assistiram a si mesmos naufragarem.
Dentro das orgulhosas armaduras pesadas, não podiam estar mais protegidos. O ar foi negado quando braços os arrastaram às profundezas escuras de águas frias. Raivosos e desesperados, brandiram as armas sem nada acertar — não estavam mais em seus domínios, nem sequer havia um terreno para lutar —, debatiam-se agonizantes em busca da superfície e da claridade orientadora, mas na obscuridade, imergiram cada vez mais. Antes que o afogamento os matasse, garras os rasgaram feito lâminas impiedosas.
O sangue dos soldados de Arutama foi carregado pela correnteza do Rio Lunar, até onde terminava seu caminho no mar, diluindo-se onde seus fluídos não poderiam mais ser notados ou encontrados na imensidão, para assim serem esquecidos.
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A BRISA vinha do sul.
Calma e rasante, escondendo para si os tormentos de onde viera, sem narrar aos ouvidos daqueles que a sentiram.
Emergiram do amado rio, escalando o cais e tomando o porto. Nenhuma arma foi erguida. Rapidamente, os juízes que estavam no nível baixo de Aitháa se aproximaram dos inusitados visitantes que aguardavam parados.
Eles trocaram olhares por um tempo. Os que habitavam as montanhas e os que habitavam as águas, seres opostos de propósitos mútuos. Eram algumas dezenas de vaynus carregando consigo vários embrulhos em redes feitas de algas. Os tribais se aproximaram para testemunhar aquele estranho encontro.
Os juízes aguardaram alguma pronunciação, e talvez os visitantes também, mas a única troca de informação era o monarca do lago abrindo o invólucro de algas. Das quatro mãos dele, um elmo caiu sobre o embarcadouro de madeira, tombando de lado, vazio. Era um icônico elmo legionário, que encarava os tribais com a face metálica de olhos vazios e interior oco. Em seguida, os demais vaynus fizeram igual, simultaneamente, até que trezentos elmos, molhados, danificados e ensanguentados foram deixados no cais do porto de Aitháa.
Nenhuma palavra foi dita, e os vaynus retornaram silenciosamente às águas frias de Lafheam.
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Quinta Lua (Ýku'ráv)
Fantasía(LIVRO COMPLETO) *Fantasia Épica em Terceira Pessoa focada na trama entre divindades vivas e mortas: um testemunho lírico em forma de livro sagrado dentro deste universo próprio* (+18) Sinopse: "A Matriarca nos governava com sua eterna sabedoria. T...