Passo pelo portão da escola que estava aberto, provavelmente para os alunos não ficarem esperando na chuva. A escola parece vazia e mais escura. Esgueirei-me pelos cantos tentando não me molhar. Entro em minha sala de aula, não havia nenhum aluno lá, apenas uma funcionária que limpava as mesas.
— Licença — falo. — Onde estão os alunos?
— As aulas foram canceladas, a tempestade está muito forte, e a escola está sem luz. — Responde ela.
— Acho que não fui avisada, desculpe o incômodo.
A moça me responde com um sorriso e continua seu trabalho.
Volto para a portaria pensando no que vou fazer, não posso ir embora para casa por causa da chuva e porque prometi para minha mãe que não sairia sem ela.
— Agatha? O que está fazendo aqui? As aulas foram suspensas. — Diz seu Antônio, saindo de dentro da guarita onde ele fica durante seu expediente.
— Fiquei sabendo agora, acho que esqueceram de me avisar. — Dou de ombros.
Seu Antônio riu da minha resposta, o que me deixou um pouco confusa. O que eu disse de tão engraçado?
— Você quando não é oito é oitenta. Quando é para vir para a escola não vem, mas quando não tem aula acorda até mais cedo.
Agora que compreendi ri também, um pouco envergonhada.
— Melhor não ir agora, a chuva está forte e as enxurradas são perigosas!— Diz ele.
Penso em como poderia estar em casa debaixo da coberta, comendo biscoitos recém saídos do forno acompanhados de uma grande xícara de café quente. Mas logo sou arrastada de volta a realidade onde estou presa em uma escola, com frio e com as roupas húmidas.
— Eu trouxe alguns pedaços de bolo para o senhor. — Digo, entregando a vasilha que estava em meus braços.
— Ah, isso é muita gentileza sua Agatha, obrigada. — Respondeu seu Antônio, com o sorriso mais sincero e agradecido do mundo. Meu coração fica mais quente e o sentimento de raiva que tinha agora pouco se esvai.
— Estou terminando de passar um café, gostaria de me acompanhar? — Pergunta ele.
— Adoraria! — respondo.☆☆☆
A parte de dentro da Casinha não é um local muito grande. Duas poltronas ocupam o meio da sala, uma pequena mesa no centro onde podem ser vistos alguns jornais e outros papéis amassados, nossas xícaras de café e os pedaços de bolo. Nas paredes, uma prateleira empoeirada que carrega dois porta retratos. Não consigo identificar muito bem as fotos por causa da minha péssima visão, mas parece ser uma moça na primeira foto e duas pessoas na outra. Eu realmente preciso de óculos.
— Posso olhar as fotos? — Pergunto. — Digo, mais de perto?
— É claro! — Diz seu Antônio, se levantando para pegar os porta-retratos.
Ele me entrega o primeiro, a foto está em preto e branco mas posso vê uma bela jovem moça. Seus cabelos ondulados brilhantes vão até os ombros. Ela usa um vestido de babado até os joelhos, e luvas de renda. Ao seu lado está uma bicicleta com uma cestinha repleta de flores.
— Quem é essa moça? — Pergunto ainda admirando a foto.
— É a minha falecida esposa... Aurora era seu nome. — Diz ele, sua voz oscilando um pouco.
— Ela era linda! E parecia ser uma moça muito gentil.
— Sim, a mais gentil e doce das moças. Me pergunto o que ela viu em mim. — Agora há humor em sua voz, mas o tom triste ainda está lá.
— Como se conheceram? — Eu me ajeitei na poltrona com curiosidade nos olhos.
— Na escola, era minha protetora. Alguns anos depois, gosto de pensar que a roubei de seu pai.
— Roubou?!
— Sim — diz ele com uma risada. — Ela era uma menina rica, e o pai dela me odiava! Ele achava inadmissível sua filha se casar com um homem negro, nunca permitiria esse romance. Então fugimos para Portugal. Pensamos em voltar para o Brasil mas estava tudo um caos aqui.
— Como assim voltar para o Brasil? Vocês não moravam aqui?
— Morávamos na Itália. Sabe como dizem, Florença é o lugar perfeito para se apaixonar, e o pior lugar do mundo para ficar de coração partido.
— Não sabia que o senhor era italiano. — Eu comento ainda mais curiosa.
— E não sou. Nasci no Brasil, apenas me mudei para lá na adolescência.
— Isso é incrível… — Digo com um tom maravilhado, completamente fascinada pela história de Seu Antônio. — Vocês tiveram filhos?
— Não…descobrimos que Aurora era estéril.
— Sinto muito.
— Tudo bem, éramos felizes apenas nós dois. — Ele faz um gesto banal com a mão, o sorriso tranquilo de sempre de volta em seu rosto.
Estava extremamente curiosa para perguntar como Aurora morreu, mas talvez aquele não fosse o momento adequado. Por mais felizes que lembranças fossem, elas podem ser bem dolorosas.Olhei a próxima foto, três rapazes abraçados e sorrindo. O primeiro usava óculos e um terno que mesmo gasto era elegante. O do meio tinha os cabelos grandes e vestia uma roupa mais simples, blusa social amassada e uma calça jeans. E o último que estava na ponta era careca, suas roupas eram nada mais que uma regata e bermuda. O do meio, ria e encostava a cabeça no ombro do primeiro garoto, e o último fazia uma careta.
— Quem são eles? — Perguntei apontando para o porta retrato.
— Esses Agatha, são meus melhores amigos. — Ele diz com alegria. — Tente adivinhar qual deles sou eu. Uma dica: sou o mais bonito deles. — Ele brinca com uma piscadela que me faz rir.
Examinei a foto mais perto agora, tentando buscar traços e semelhanças com as de seu Antônio. Até que por fim chego a uma conclusão.
— Eu chuto o do meio. — Declaro com confiança.
— Correto! O mais bonito não disse?
Dei risada disso. Não vou mentir, era um rapaz bonito.
— Qual o nome dos outros dois?
— O da esquerda é o Vicenzo. Era um homem muito ambicioso, sempre quis ter uma carreira de sucesso e fazer parte da alta sociedade. Não é à toa seu nome. — falou com uma pequena risada.
Franzi a sobrancelha com a última piadinha pois não fazia ideia do que aquele nome significava. Seu Antônio pareceu não notar minha confusão,talvez estivesse distraído com memórias ou coisas do tipo.
— E o da direita? — Perguntei.
— Este é Nino, uma verdadeira figura. Sempre fazendo piada com tudo, vivendo a vida sem se preocupar com o amanhã. Aurora costumava dizer que éramos como presente, passado e futuro — explicou ele. — Vicenzo sempre preocupado com o amanhã, seu destino, e o que viria a se tornar. Nino era um cara de momento, para ele o que importava era o agora, o amanhã se resolvia depois. E eu… sempre fui apegado a memórias, ao que já passou. — Agora sua voz soava mais triste.
Seu Antônio falava com tanta nostalgia e carinho de seus amigos que senti como se eu mesma tivesse os conhecido.
— Meu pai costumava dizer que somos tão apegados a lembranças porque elas não podem ser mudadas. Já as pessoas, estão sempre mudando.
Seu Antônio me deu um sorriso triste.
— Ela era um homem sábio, sinto muito pela sua perda Agatha.
— Sinto muito pela sua também.
Ficamos em silêncio durante um tempo, até que seu Antônio voltou a falar.
— Existe um conto — começa ele — sobre criaturas um pouco diferentes mas muito belas. Segundo a lenda, elas só podem ser vistas por pessoas que já foram visitadas pela morte. Acho que teríamos o privilégio de vê-las.
Dei risada e bebi um gole do meu café.
— Os seus amigos ainda estão vivos? — Questionei sem querer, me arrependendo instantaneamente pela indelicadeza.
— Não tenho ideia, quando fugi para Portugal perdemos o contato, não existia mensagens ou essas coisas de hoje em dia.
— Deve ter sido difícil.
— Foi bastante, e piorou depois que minha mulher morreu. — Uma lágrima ficou presa em um de seus olhos.
— O senhor é um homem muito forte — falei e abracei seu Antônio, seu corpo parecia rígido como se não fosse abraçado a muito tempo. Mas por fim ele relaxou e também me abraçou.
Terminamos de comer o bolo e finalmente a luz da escola voltou.
— Vou ligar para sua mãe vir te buscar, está bem? — Informou seu Antônio.
Assenti com a cabeça. Poucos minutos depois ele voltou dizendo que estava tudo certo e minha mãe estava a caminho. Fiquei feliz por poder ir para casa, mas um pouco sentida com a conversa que tive com seu Antônio. Eu queria poder fazer mais, sabe? Porém sou ruim até mesmo em resolver meus próprios problemas, como conseguiria ajudar outra pessoa?
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Estrelas ao meio dia.
RandomAgatha sempre foi uma menina introvertida, vivendo em seu pequeno mundo coberto de livros, quadros e músicas que foram lançadas antes mesmo de ela sonhar em nascer. Mas quando uma garota punk de cabelo cruza seu caminho e a faz experimentar a rebel...