Capítulo Vinte e Sete.

11 2 0
                                    


Diferente de Saori, meu horário era duplo, então de qualquer maneira não poderia voltar para a sala até depois do intervalo. E francamente, não tinha cabeça para aturar Química depois de saber que ter um lugar para morar pode não ser mais uma realidade.
Todo esse tempo livre deu espaço o suficiente para as pilhas do meu cérebro pararem de funcionar e o meu senso de realidade se dissipar. As perguntas não paravam de surgir. O motivo das coisas serem assim tão cruéis.
Porque é tão difícil apenas aceitar que as pessoas são como são?
Como vou contar isso para minha mãe?
Thomas.
Vou ter que me afastar de Saori?
E se fomos agredidos de novo?
E se..
E se...
O acidente...
Porra porra porra porra
Tudo isso fazia meu coração acelerar. Em poucos segundos percebi que estava com dificuldade para respirar. Parecia que meu pulmão se esqueceu como se fazia sua tarefa básica. A sensação de desespero estava tomando conta da minha cabeça. Sentia uma enxurrada de pensamentos invadindo minha cabeça e a fazendo esquentar.
E se...
E se..
E..
Pai.
E se minha mãe se isolar de novo?
Eu não quero ficar sozinha...eu...
Respirar, respirar, respi..
- Agatha? Tá tudo bem? - Perguntou uma voz atrás de mim, me assustando mas interrompendo por um momento a onda de pensamentos.
Me virei e encontrei Seu Antônio, parado e visivelmente preocupado.
- Eu... respirar - tentei formular uma frase mas nada parecia sair direito.
Meu peito ainda subia e descia sem meu controle.
- Ei, calma, vamos respirar devagar, tente acompanhar meu ritmo. - Falou seu Antônio calmamente, enquanto inspirava e expirava. Ele estava a uma distância segura, o que me fez agradecer por não estar tão perto de mim. Já me sentia sufocada o suficiente.
Repeti seus movimentos até minha respiração estabilizar um pouco, mas ainda sentia as mãos trêmulas e a sensação terrível de não ter controle da minha própria mente.
- Vamos para dentro, consegue se levantar? - Perguntou, quando percebeu que respirava um pouco mais devagar. Fiz que sim com a cabeça mesmo não tendo certeza da resposta.
Seu Antônio me ajudou a ficar de pé, e com cuidado, me conduziu para a guarita que estive da última vez. Cuidadosamente também me sentou em uma das poltronas. Acho que devo ter apagado por um segundo ou dois, quando me dei por mim novamente, ele estava à minha frente, com um copo d'água e um pano, que delicadamente o molhava e passava em meu rosto enquanto assoprava. O vento gelado era reconfortante, me sentia menos engolida pelo mundo. Aos poucos consegui me acalmar e minha respiração se tornar mais constante, uniforme.
- Se sente melhor? - Perguntou.
Respirei fundo antes de falar.
- Até que sim... - Respondi. - O que foi isso? Eu passei mal?
Minha cabeça ainda estava atordoada, tinha que me concentrar para formar a frase.
- Olha Agatha, acho que o que você teve foi uma crise de ansiedade. É bem comum depois de situações traumáticas. Ainda mais depois do que você passou... - respondeu.
- O senhor também ficou sabendo?
- Desculpa querida, não foi minha intenção ser intrometido, sua mãe me contou. Ela estava preocupada com sua segurança quando voltasse à escola.
Pela primeira vez não senti raiva da minha mãe por ser um pouco fofoqueira. Era até melhor que não precisasse explicar tudo novamente.
- Entendo, tudo bem. - Falei com compreensão.
Seu Antônio foi até o filtro e me trouxe um copo d'água com açúcar.
- Vai te deixar mais calma. - Disse, me entregando.Tomei um gole e respirei fundo. - Não deixei de notar que muita coisa nessa história não faz muito sentido. Quer conversar sobre o real motivo disso tudo? - Perguntou ele, ao se sentar ao meu lado.
Seu Antônio tinha uma voz doce e calma. Era fácil me abrir com ele, era como se estivesse falando com meu pai.
- O senhor me conhece mesmo - disse com uma risada baixa.
- Não posso discordar, já são 3 anos com a senhorita. - Ele sorriu.
Respirei mais uma vez e então contei tudo a ele. Todos os medos que tinha, meus sentimentos por Saori, Thomas, a relação com minha mãe, tudo. Despejei de uma vez só o que me incomodava. E só de dizer em voz alta, já sentia que tirei uma bigorna das costas.
- Olha pequena... - Seu Antônio me olhava com compaixão. - O que vou te contar agora, é algo que guardei por muito tempo, mas é uma parte importante da minha história.
Me inclino para frente, para ouvir o que ele tem a dizer.
- Eu menti para você, ou pelo menos omiti. Aurora foi o grande amor da minha vida, mas não era por ela que eu estava apaixonado. Meu coração era de Vincenzo.
Olho para ele completamente surpresa, sem conseguir formular nenhuma frase. Seu Antônio continua, a voz mais oscilante.
- Eu o amava, amava demais e felizmente ele me amara também, ficamos juntos por décadas, às escondidas, é claro. Aurora era minha melhor amiga, me contou em uma noite, enquanto estávamos sentados no telhado da minha casa, que gostava de garotas, assim como você.
Quando volto a mim, estou de queixo caído.
- Mas então, vocês não eram casados? Eu não estou entendendo. - Digo, confusa.
- Éramos sim casados, um casamento por amor, mas também por necessidade. - Ele faz uma pausa antes de continuar. - Vivíamos os quatro juntos, ela e Nino sabiam de mim e Vicenzo. Ninguém se importava, Nino gostava de moças e rapazes. Éramos uma família, protegendo uns aos outros em tempos tão difíceis. A questão, porém, é que os boatos corriam por Florença, por que uma garota tão rica andava tanto com um grupo de rapazes? As mais diversas especulações surgiram, e a família dela descobriu o que eu era e da mesma maneira, sobre ela.
Seu Antonio estava tão abatido ao me contar a história, queria confortá-lo, mas não ousei interromper.
- Aurora foi desposada do por um filho de banqueiro, e por desespero decidimos fugir. Era questão de tempo para todos ficarem sabendo sobre Nino e Vicenzo. Nino nem mesmo hesitou, mas Vicenzo sim. Obcecado demais com a ideia de um futuro grandioso, escolheu a si mesmo e permaneceu na Itália. Em Portugal, me casei com Aurora, para não levantarmos suspeitas. Nino acabou seguindo seu caminho lá, e o restante da história você já sabe.
Eu estava desolada por Seu Antônio, queria o abraçar, dizer tantas coisas para ele, mas não sabia bem como expressar.
- O senhor é a pessoa mais extraordinária que conheci, não tem noção do quanto saber disso significou para mim. Eu sinto muito mesmo, por tudo.
Ele me olhava com o mais puro carinho e eu só queria o proteger de tudo.
- Eu sei como é estar em um relacionamento escondido. Vivi o mesmo com Vicenzo, o medo do depois é sempre de amargar a boca. - Ele segurou minha mão gentilmente, o que me dava uma sensação de conforto. - São novos tempos, Agatha. Acho que deveria abrir o jogo com sua mãe, antes que ela fique sabendo pela boca de outra pessoa.
Arregalei o olho no mesmo instante. Só de pensar em ter aquela conversa minhas mãos tremiam.
- E se ela não reagir bem? E se algo ruim acontecer? - Falei, em pânico.
Ele apertou mais a minha mão. - Escuta, conheço sua mãe e ela não parece ser uma pessoa ruim. Talvez meio mente fechada, mas não ruim. Ela pode ficar magoada sim no começo, talvez ela fique com raiva pela mentira, na verdade. E mais, na pior das hipóteses, minha casa estará aberta.
Seu Antonio era tão bom para mim, eu não sabia como retribuir tanta gentileza. Respirei fundo e estudei as possibilidades e todos os cenários possíveis.
- Pode ser... - finalizei, mas continuei imersa em um novo pensamento. Seu Antônio reparou.
- Tem mais alguma coisa te incomodando? - Perguntou ele.
- É só que... tem a Saori. Nem parei para pensar que ela pode não querer tudo isso, não querer esconder as coisas. - Respondi finalmente.
- Realmente é uma coisa a se pensar. Mas também é algo que pode se resolver na conversa, coloque para fora, ela parece gostar de você, vai entender.
Sorri para ele, apesar de não acreditar cem por cento naquilo.
Olhei a hora no celular, faltava 10 minutos para o intervalo, tinha que me apressar se quisesse pegar a próxima aula.
- Obrigada pela conversa, e por tudo. Não sei o que teria feito sem o senhor.
- Não precisa agradecer, - Disse seu Antônio com um tom tão doce que quase derreti. Ele me abraçou, com a mesma ternura em sua voz. Não sabia como precisava daquilo até ter. Era como ter meu pai de volta, por alguns segundos.
Apertei mais o abraço.
- Não sou só seu porteiro terapeuta - disse ele com humor, me fazendo rir. - Também sou seu amigo. E mais, você é a filha que eu nunca tive, Agatha.
Levantei o rosto encará-lo, chocada, não sabendo bem o que sentir, mas feliz.
- O senhor... o senhor também é como um pai para mim. - Consegui dizer em meio a algumas lágrimas.
Ninguém fala do curto circuito que você sente quando tem de volta algo que não teve por muito tempo, você fica em choque, como se sua mente não conseguisse processar que aquela sensação está ali novamente. Você se sente como um cãozinho abandonado que, depois de muitos maus tratos, se assusta com um carinho. E era assim que eu me sentia naquele momento, vulnerável e congelada. Entendi bem o que Fernando Pessoa quis dizer com: "O coração é capaz de guardar uma infinidade de sentimentos sem se perder, o único problema é saber organizá-los." Habilidade que eu não possuía naquele momento.
Me despedi de seu Antônio e sai da guarita, feliz e atônita. Todas as vezes que ele me defendeu e me deu apoio voltaram na minha cabeça como um filme. Parece que minha família só cresce, não é mesmo?

Estrelas ao meio dia. Onde histórias criam vida. Descubra agora