Capítulo Cinquenta e Dois.

7 2 0
                                    

      Não sei exatamente em que momento Saori desistiu e foi embora, passei a maior parte da noite com o fone estourado me impedindo de ouvir qualquer coisa. Se minha mãe ou Thomas veio tentar falar comigo, também não fui capaz de escutar. O dia já está clareando lá fora, não dormi quase nada, sinto meus olhos pesarem e meu corpo implorar por descanso. Decido me levantar, ainda tenho as provas finais para fazer hoje. 
Que merda.
   Coloco uma roupa simples, saia branca e a blusa do uniforme na cor preta. Pelo espelho consigo notar como meus olhos estão inchados, devo ter chorado sem perceber. Faço o máximo que posso para melhorar o caos que está meu cabelo e meu rosto. Em situações como essa, com certeza meu primeiro reflexo seria ligar para Miguel, mas ele está viajando e não pretende voltar até o final da semana. Penso em mandar uma mensagem, mas não quero atrapalhar sua diversão.
— Credo, você está péssima. — Comenta Thomas, quando me sento à mesa.
— É mesmo? Nem percebi. — Tento soar sarcástica, mas estou amarga demais para isso.
— O que aconteceu? — Pergunta ele se aproximando e me servindo uma xícara de café. Aceito mesmo sem vontade, doce demais, impossível beber isso aqui.
— Saori terminou comigo. — Digo, colocando a xícara de lado.
Thomas arregala o olho.
— Que?! — Exclama.
— Bem, ela não terminou, mas está voltando para o Japão em alguns dias para fazer faculdade. 
Tom assimila a informação e balança a cabeça algumas vezes, procurando o que dizer.
— Caralho que merda. Eu sinto muito mesmo...
Dispenso sua pena.
— Não sei porquê imaginei que dessa vez seria diferente. — Confesso.
Thomas franze o cenho.
— O que quer dizer?
— Todo mundo que significou algo para mim acabou indo embora. Meu pai, Amélia também foi de uma certa forma, e agora Saori. Talvez o problema esteja em mim.
Os ombros dele caem e seu olhar entristece.
— Nenhuma dessas coisas foi culpa sua, Agatha. O que aconteceu com seu pai foi uma tragédia, e com sua mãe foi uma reação do luto. — Ele pega minha mão. — E... eu ainda estou aqui, sempre vou estar. 
Deixo a tensão em meu rosto suavizar. Não sabia o que sentia, mas sabia que era agradecida a ele.
— Eu te amo. — Digo, puxando meu primo para um abraço.
— Eu também. — Ele me aperta mais forte. Não sei o que faria sem Thomas. 

                             ☆☆☆ 

    Era costume na Alithís que as provas finais ocorressem no período da tarde, os coordenadores diziam que era para que "dormíssemos um pouco mais". O que, a não ser que você já tivesse uma pontuação alta ou apenas fosse muito inteligente, fazia. A maioria dos estudantes usava o tempo da manhã para enterrar a cabeça em livros e estudar até os olhos cansarem. No meu caso, não faria nenhum dos dois; remarquei minha terapia daquele dia para a manhã. Estava um caco, e duvido muito que conseguiria fazer as provas sem conversar com Marcela antes. 
    Minha mãe não pôde me levar naquele dia, o que significou que tive que pegar o metrô. Cheguei mais cedo do que esperava, cerca de trinta minutos antes da consulta. O dia estava até que agradável,mas estava tão desgostosa de tudo que poderia mandar o vento ir se foder. Passei o tempo todo lendo o livro que seu Antônio me deu, era Hamlet e fumando um cigarro atrás do outro. Já tinha lido mil vezes, sabia as falas de cor e salteado. Mas uma parte sempre me pegava, o discurso do pardal. Não tive muito tempo para continuar a leitura, logo deu meu horário. Apaguei o cigarro com o tênis e caminhei para dentro do prédio. O consultório estava vazio, conseguia ouvir meus próprios passos enquanto andava pelo extenso corredor.
— Bom dia, Agatha — Cumprimentou Marcela quando passei pela porta. — Fiquei surpresa quando remarcou nosso encontro, algum motivo específico?
Me sentei no sofá, cruzando as pernas a minha frente e apoiando uma almofadada no meu colo. 
— Minhas provas finais são sempre à tarde, não podia perder, mas também não queria deixar de vir pra cá. — Respondo e ela assente.
— Entendo... está ansiosa com os testes?
Meu primeiro reflexo é mentir, dizer que não e que está tudo sob controle. Mas não gosto de mentir para Marcela, eu quero mesmo ficar bem. 
— Tenho que admitir que sim, aconteceu muita coisa e mal consigo dormir. — Eu suspiro.
— Tem fumado muito? — Ela pergunta enquanto anota algo no caderno que sempre tem consigo.
— Não. — Minto por instinto mas me arrependo. — Ta bom, tenho sim, bastante por assim dizer. 
   Marcela me pergunta sobre tudo e não minto sobre nada, conto absolutamente cada pensamento que tive durante os dias, até mesmo aqueles que muitas vezes nem sei se fazem sentido. No meio da sessão, quando sinto que não tenho muito mais o que falar, ela questiona sobre o livro que estou lendo.
— Adoro este, o que está achando?
Pego o livro que ficou ao meu lado durante toda a sessão e o giro na mão.
— Eu já o li uma vez, é um dos meus favoritos de Shakespeare. — Sorrio enquanto falo. — Mas tem coisas que fico confusa sobre. 
Ela se inclina mais para frente.
— E o que seria?
— Que seja como for, ele sempre disse isso. Nunca entendi direito esse discurso, nunca fez sentido pra mim. Mas agora acho que faz, isso é um mal sinal? 
Ela ri um pouco.
— Por que faz sentido agora e não antes? 
— Acho que não era traumatizada o suficiente. — Tento dizer em forma de piada mas Marcela não ri. Limpo a garganta antes de voltar a falar. — Quero dizer, acho que não faz sentido nem mesmo para ele, nada faz. O mundo todo está desmoronando e ele não pode fazer nada sobre, e quando percebe isso ele faz a única coisa que está ao seu alcance. 
— Que é... — Marcela diz com interesse a minha interpretação.
— Lavar as mãos e culpar o destino. 
— Se sente assim? — Ela se endireita na poltrona antes de voltar a falar. — Sente que está tudo desmoronando e você não pode impedir? 
— Acho que é exatamente isso. Toda vez que algo bom acontece na minha vida, não dura, algo ruim sempre acontece em seguida. — Passo a mão pelo rosto em frustração. — Pensei que tinha aprendido a lidar com isso, mas não aprendi. Saori vai embora e não tem nada que posso fazer, o julgamento me preocupa e nada posso fazer sobre isso também...
Minha voz falha na última parte, nunca chorei na frente de marcela, mas dessa vez é difícil segurar. 
— Agatha não é assim que os aprendizados funcionam, não vai aprender de uma vez apenas porque escutou um bom conselho. Você vai errar e sentir tudo de novo, e com o tempo virá o aprendizado. — Ela me olha com empatia. — Sei que sente que seu mundo está desmoronando porque sua namorada vai embora, e além de perdê-la tem medo que o que veio com ela também vá junto. 
    Uma chave gira na minha cabeça quando ela fala isso, tenho mesmo medo de perder meus amigos caso Saori não esteja aqui para me ligar a eles. Tenho medo de perder a liberdade que conquistei. Tenho medo de tudo isso. 
— Mudanças sempre acontecem, a vida é um perder e ganhar coisas até o dia que não estivermos mais aqui. Seus amigos não vão desaparecer porque ela foi embora e você não vai se perder por isso, Saori foi apenas a porta de entrada mas quem trilhou o caminho foi você. É a sua vida, sua jornada. 
    Não conseguia dizer nada naquele momento, apenas sentia as lágrimas rolaram. Marcela não me impede, fica calada o tempo todo, deixando que eu chore tudo que não chorei nos últimos meses. Eu me sentia aliviada, ainda com medo e com muita raiva de Saori, mas aliviada. No final de tudo, parecia que tinha sido picada por um enxame de abelhas. Meu rosto estava inchado de tanto chorar, mas eu me sentia vinte quilos mais leve.

                          ☆☆☆

    Chego na escola um pouquinho atrasada, mas não o suficiente para ficar para fora. Estranho o fato de que Seu Antônio não está na portaria, no seu lugar está uma das coordenadoras. Não me dou ao trabalho de cumprimentar.
    Passo pelos corredores ignorando as pessoas ao meu redor. Não tenho amizades muito próximas em minha classe, então apenas fico lá em silêncio tentando me concentrar na prova. Que saudade de Miguel. Assim que a terminei, saio para andar pela a escola, estava morrendo de fome, acho que não comia nada direito a dois dias. Compro um dos salgados ridiculamente caros da cantina e me encosto na parede enquanto como. O gosto é péssimo, parece só ter massa; e a conversa com Marcela ainda roda na minha cabeça o que não ajuda muito.
— Ei — Evandro se aproxima, me dando um beijo de bochecha. 
— Oi — O cumprimentei de volta com um mesmo beijo. 
O intervalo estava tranquilo hoje, a maioria dos estudantes estava esgotada do ano letivo corrido e os poucos que eram vistos pareciam zumbis caminhando ou jogados pelo chão.
— A gente estava te procurando — Falou. — Não te vimos na entrada.
— Ah é, cheguei um pouco atrasada então tive que correr para a sala. — Digo, omitindo que na verdade estava evitando todo mundo.
   Evandro me chama para andar e eu o acompanho, vamos andando até um canto do pátio onde estão todos sentados em um círculo. Brisa e Lucas dividem um salgadinho, ou pelo menos tentam. Troco um olhar longo com Saori, mas desvio antes que ela possa me cumprimentar. 
— Já fizeram as provas? — Pergunta Saori. Deixo as respostas dominarem, sem me dar o trabalho de responder.
   O restante da conversa é monótono, nenhuma de nós duas fala muito. Lucas está estranhamente quieto, ele observa nossas interações e assente, parecendo entender algo. O sinal toca mais uma vez, nos levantamos para sair, mas antes que eu possa ter a chance de caminhar Saori me para.
— Podemos conversar? — Pergunta, quando o restante do grupo se afasta um pouco.
— Não temos nada para falar — Digo ríspida.
— Temos sim, e você sabe disso. Por favor, Agatha. — Reparo em seus olhos vermelhos, não gosto da sensação de me importar tanto com ela, sinto um aperto no peito.
— Talvez tenhamos, mas não consigo, não agora. — Mais balbucio do que falo. Saori faz que sim ressentida 
— Certo, tome o tempo que precisar, só fale comigo quando quiser, está bem? — Ela se vira e sai andando.
   Queria gritar com Saori, dizer para ela parar de ser tão compreensiva para eu poder ficar com raiva sem querer chorar no ombro dela ao mesmo tempo. Eu odiava Saori naquele momento, odiava me sentir descartada e me odiava por não a odiar coisa nenhuma.
   Suspiro soltando a respiração que nem sabia que estava segurando. Sinto alguém atrás de mim.
— Boo! — Exclama Lucas no meu ouvido.
Dou um pequeno pulo com o susto.
— De onde você surgiu? Achei que tinha ido com os outros. — Falo com a mão no peito, sentindo meus próprios batimentos acelerados.
Ele dá de ombros e solta uma risada.
— Eu percebi o clima de merda entre vocês duas — comenta, sem rodeios.
Sinto minha mandíbula tensionar.
— A gente meio que terminou. — Detesto ter que repetir isso pela segunda vez no dia. 
Ele analisa alguma coisa antes de dizer:
— Hum, certo, mas quem terminou com quem? — Pergunta.
— E no que isso importa? — Questiono de volta, irritada.
— Faz toda diferença — Argumenta. — Tenho que saber quem consolar. 
— Não preciso de consolo.
— Ah, entendi. Então ela terminou com você. 
Bufo com raiva e frustração.
— Veio aqui só para me azucrinar?
Ele se aproxima um pouco e põe as mãos no bolso.
— Faz parte, mas não. Vim te chamar para sair.
Franzo a sobrancelha, confusa. — Eu?
— Não Agatha, só tem nós dois aqui mas com certeza estou chamando o Miguel. — Debocha.
Tá, essa eu mereci.
— Só não é comum sairmos juntos desse jeito. 
— Para tudo tem uma primeira vez, não é? — Ele sorri.
Penso a respeito, não queria ficar em casa depressiva como vinha fazendo bastante, então aceito o convite.
— Tudo bem então, que horas? 
Ele olha o próprio celular, ponderando. — As dezesseis. Vista uma roupa de mangas longas de preferência. — E não diz mais nada, apenas se despede com um aceno e um sorriso que é quase um presságio de que, provavelmente, não foi a escolha mais segura que fiz. E dado a experiências passadas? Concordo completamente. 

Estrelas ao meio dia. Onde histórias criam vida. Descubra agora