Voltamos para a sala de audiência, minha mãe me abraça ao me ver. Ela sorri reparando na mão de Saori entrelaçada à minha. Tomamos nossos lugares, busco a mão de Thomas por baixo da mesa; ele aperta com firmeza. Estamos prontos.
— Bom dia a todos. — Diz o juiz ao se sentar. Era negro, rosto firme e seus oculos redondos pendando na ponta do nariz. Ele folheia uma das pastas em suas mãos, se endireita e lê o processo em voz alta. Lesão corporal grave, injúria racial e LGBTfobia. — Os senhores: Silas, Ricardo e Jonathan Martins reconhecem a existência deste processo de acusação?
Eles se entreolham antes de Silas falar: — Sim.
— Muito bem. Antes de tudo, sugerimos discutir possíveis acordos. Os autores tem alguma proposta de acordo? — Pergunta o Juiz.
Busco o olhar da minha mãe, mas ela parece cochichar com Andresa.
— Não estamos interessados em acordos. — Amélia responde com firmeza.
O juiz assente e continua para as próximas fases, analisa documentos que comprovam a entrada que Saori, Thomas e eu demos no hospital e os motivos. Também analisa por quanto tempo ficamos "impossibilitados de realizar nossas atividades cotidianas". Tudo isso já havia sido feito antes, não entendo a necessidade de repetir; Mas é como minha mãe diz, "deixe os adultos cuidarem disso." A parte mais difícil é a seguinte, contar tudo que aconteceu naquele dia na frente daqueles que fizeram. Andresa havia explicado que nós seríamos os primeiros a falar, agradeço por não ter sido pega de surpresa.
— Senhor Thomas, pode nos contar detalhadamente o que aconteceu? — Ordena o Juiz.
— Sim. — Thomas entrelaça sua mão na minha, tento inútilmente sussurrar para que ele não os olhe e foque apenas no Juiz; Tom não me ouve, e se ouve me ignora e os encara mesmo assim. Mas dessa vez, não tem medo em seu olhar, parece algo como vingança. Ele está com raiva. — Alguns dias antes das agressões eu e Ana saímos para passear pelo parque. Ela não parecia estar muito bem, estava abatida e quieta. Eu a questionei mas ela não disse nada, até a noite. Durante a madrugada ela me contou o motivo por mensagem; disse que seu pai exigiu que ela parasse de sair comigo, que não ia admitir que a filha dele namorasse uma "preta Maria macho". — Estremeço com as palavras. — E se Ana ousasse passar por cima da ordem, ele viria atrás de mim. Ela desobedeceu, e veio até minha casa no dia que a agressão aconteceu.
Ele pausa, está tremendo de tristeza ou raiva, é difícil identificar pela sua expressão. Vê seus olhos ficarem vermelhos e marejados me parte o coração, mas não posso interrompê-lo.
— Eu fui contra, não queria que nada de ruim acontecesse, então pedi que ela fosse embora. Não adiantou, um tempo depois seu pai voltou, acompanhado de seu irmão e o filho mais velho. Pensei que a campainha tocando fosse Agatha, então abri, pronto para contar a ela sobre o ocorrido, sempre contamos tudo um pro outro. Mas não era ela, eram esses três. — Ele aponta para as carrancas sentadas do outro lado da sala. — Eles me arrastaram para fora até o meio da rua... Eu não sabia o que estava acontecendo... — Thomas deixa uma lágrima escapar. — Eles apenas me xingavam. Não lembro de muita coisa depois disso, apenas da minha prima tentando apartar a briga e caindo também.
Sinto vontade de machucar fisicamente aqueles caras; imaginar Thomas completamente assustado com tudo, confuso e sem saber o que fazer, faz meu estômago revirar e meu sangue ferver.
— Obrigado pelo depoimento, Thomas. — O juiz parece prestes a vomitar, atordoado. Partilho do mesmo sentimento, sinto tanta raiva que meu corpo todo treme.
Entrego um dos copos de água à mesa para ele e dou um beijo em sua bochecha. Minha mãe puxa a cabeça de Tom para descansar em seu ombro. Nunca a vi com um olhar tão desolado desde a morte do meu pai.
— Senhorita Saori Yoshiaki, pode dar continuidade nos contando o seu depoimento? — Pergunta.
— Sim, excelência. — Ela morde o lábio em sinal de nervosismo. — Agatha e eu estávamos na minha casa, não muito longe dali. Tivemos um pequeno desentendimento e eu a segui até a rua acima da sua casa, para conversarmos. Fomos interrompidas por vários gritos e pedidos de socorro, não imaginávamos que se tratava de Thomas, mas fomos atrás mesmo assim. Chegando lá, vimos a terrível cena dos três aqui presentes espancando alguém, quando Agatha se deu conta de que era seu primo eu não pude a impedir de intervir, foi tudo... muito rápido. — Ela parece tão transtornada quanto qualquer um de nós. — Meu único reflexo foi agir em defesa, tentei gritar para que parassem mas nada funcionou, então peguei um dos galhos caídos de uma árvore vizinha e fui para cima, na intenção de parar tudo aquilo. Consegui afugentá-los, mas não sem tomar alguns murros. Quando eles estavam longe, Agatha e Thomas já estavam desacordados, eu achei...achei que estavam mortos. Tudo que consegui fazer foi ligar para uma ambulância antes de também desmaiar também. Quando acordei já estava no hospital, Amélia também estava lá, Thomas e Agatha ainda estavam inconscientes.
Não sei como reagir depois de ouvir tudo isso, nunca tinha conversado com minha namorada e meu primo sobre como tudo aquilo aconteceu na visão deles. Não é o tipo de coisa que gostamos de relembrar.
— Senhorita Agatha? — Chama o Juiz me tirando da reflexão. — Pode me contar sua versão?
Faço que sim e começo a falar. Minha visão de tudo é bem parecida com a de Saori, sem muitos detalhes novos, apenas com a diferença de eu não saber quem chamou a ambulância ou como chegamos ao hospital. A excelência me olha e pensa sobre o que acabou de ouvir. Ele parece prestes a vomitar, acho que o caso deve ter mexido com ele. Deve ter se imaginado no lugar de Thomas, qualquer pessoa racializada se imaginaria. É desesperador vê esse tipo de coisa, você se sente inseguro, impotente. Martin Luther King disse que ‘’Uma injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar.’’ E era verdade.
Tem uma fase que se passa quando se é vítima de racismo e outras violências que poucas pessoas falam: a culpa. A culpa que você sente por ter denunciado, a pena que você sente do agressor. Você sente que fez algo errado, que foi duro demais, que não era para tanto. Você começa a se perguntar se não está exagerando, mesmo que você saiba o que passou, como se sentiu e o que sente. Porque somos ensinados a minimizar nossa dor, ouvimos a vida toda de que "é drama", "exagero" e coisas do tipo; e uma mentira contada várias vezes, pode soar como verdade. Eu pensei nisso, eu penso agora olhando aqueles rostos aparentemente abatidos. Uma das partes mais difíceis de sofrer um abuso, é aceitar que foi abusado, de reconhecer sua dor, de não se culpar pela atrocidade do outro.
— Vocês tem como provar que o que estão dizendo é verdade? — Pergunta o Juiz, quebrando alguns protocolos.
— Temo sim. — Andresa toma a frente. Não sei exatamente o que temos além dos laudos médicos, mas confio na minha mãe e em nossa advogada. — Aqui estão os arquivos de vídeo de uma câmera de segurança, é de uma casa da mesma rua em que minha cliente reside, ela filmou toda a ação. Também temos as mensagens enviadas pela filha de Ricardo, comprovando a motivação.
Ricardo, o mais velho, se mexe na cadeira, parecendo em pânico. O juiz pede o pen drive das mãos de Andresa e insere em seu notebook. Não tem som, mas ele assiste atentamente. Depois analisa as mensagens do celular de Thomas, lendo-as e verificando se o aplicativo ali aberto é verdadeiro.
— É inegável a veracidade das acusações diante das provas apresentadas. Os senhores ainda podem falar se quiserem, mas adianto que não fará muita diferença.
— O que?! Isso é um absurdo! É nosso direito ter uma defesa! — Silas se exalta.
— Não estamos tirando esse direito, os senhores ainda podem falar. Mas não terá impacto algum no processo, visto que tudo já foi provado.
— Você é um filho da puta! — Grita Jonathan, batendo na mesa.
— Posso qualificar isso como desacato de autoridade, senhor Martins. — Diz com a voz calma, parecendo não ser atingido pelo ataque de raiva do garoto. Um dos advogados pede para ele acalmar, Silas e Ricardo saem pela porta batendo os pés irritados.
— Acho que acabou. — Andresa se vira e sorri para nós. — Ganhamos.
Nenhum de nós consegue conter o sorriso, sem se importar em ser apropriado ou não. É a nossa história tendo um final feliz ali, são os dias de medo sendo deixados para trás; e imagino que o Juiz compreenda isso, porque não nos adverte.
— Eu amo muito vocês. — Minha mãe diz nos puxando para um abraço.
— Também te amamos. — Respondo.
‘’Quanto mais os oprimidos se levantam contra seus opressores, mais os opressores se mostram fracos e covardes.’’ Pierre de Marivaux estava certo.
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Estrelas ao meio dia.
De TodoAgatha sempre foi uma menina introvertida, vivendo em seu pequeno mundo coberto de livros, quadros e músicas que foram lançadas antes mesmo de ela sonhar em nascer. Mas quando uma garota punk de cabelo cruza seu caminho e a faz experimentar a rebel...