O enterro de Seu Antônio foi mais vazio do que eu esperava. Contava apenas comigo, meus amigos, minha mãe, Thomas e alguns poucos funcionários da escola. Mamãe ajudou na preparação de tudo, escolheu até mesmo as flores. Gostaria de ter sido mais forte e a ajudado no processo, mas não consegui. Já foi uma grande batalha vir ao enterro. Ninguém aqui parece tão triste quanto eu, me dou conta que nenhum dos meus amigos era tão próximo de seu Antônio como eu. Ninguém aqui sabe que ele "roubou" sua esposa do pai dela, ninguém aqui sabe que ele adora café sem açúcar. Ninguém aqui sabe que ele era gay e amou outro rapaz tão intensamente que largou tudo para protege-lo e proteger seus amigos.
Me aproximo do caixão, o corpo de seu Antônio repousa sobre várias rosas brancas. Ele usa um terno também branco, sua feição é tranquila, como se ele apenas dormisse. Os médicos me asseguraram que ele não sentiu dor, morreu dormindo pacificamente em sua cama. Essa certeza me dá um pouco de conforto.
Quando o velório acaba, começa o enterro. Acho que é aí que minha ficha cai de verdade, porque desato a chorar como um bebê. Lucas se aproxima e me abraça, fazendo cafuné no meu cabelo e sussurrando que vai ficar tudo bem. Quando o caixão desce por completo, faço uma promessa a mim mesma, vou fazer a memória do meu segundo pai perdurar. E uma delas quero concretizar agora.
— Se precisar de algo me liga. — Brisa diz me abraçando. — Estou falando sério.
— Obrigada, Bri. — Forço um sorriso para ela, é difícil demonstrar gratidão numa hora dessas. Você está grato, mas não sabe como demonstrar isso já que está derrubado pela tristeza.
— Quer dormir lá em casa? — Miguel pergunta.
— Tudo bem, não precisa, nos vemos amanhã, no aeroporto.
Ele concorda com a cabeça e me abraça, sussurrando um "Eu te amo". Falo de volta, sem a menor vontade de largar Miguel. Ele esteve comigo nas duas perdas da minha vida, não consigo deixar de notar a sensação de dejá vu. Estou feliz que ele esteja aqui.
— Promete que me liga mais tarde? Não quero ficar preocupado com você. — Evandro diz depois de me abraçar.
— Eu prometo. — Sorrio pra ele.
Aos poucos todos vão embora, avisei minha mãe e Thomas que só voltaria mais tarde para casa. Me sento ao lado do túmulo de seu Antônio, ainda sem a lápide, muito recente para colocarem. Lembro de todos os momentos que passamos juntos, e todas as vezes que ele me ajudou. Lembro das criaturas mágicas que ele me disse uma vez, que só podem ser vistas por pessoas visitadas pela morte. Pego uma fita amarela e deixo junto com as flores que ali estão. Resolvi trazer a fita comigo depois de lembrar de uma certa vez que ouvi uma música com Seu Antônio, ele cantarolava a parte "Quando eu morrer... Não quero choro nem vela, quero uma fita amarela[...]".
Sinto um vento frio me arrepiar, e por um segundo, sinto o cheiro amadeirado de seu Antônio. Talvez seja apenas meu cérebro me pregando uma peça, mas podia jurar que o senti ali. Eu li mais livros do que posso me lembrar, tinha centenas de citações na cabeça. Mas nada podia expressar o que eu sentia naquele momento. Nem toda arte do mundo poderia me impedir de desmoronar. Chorei por horas, até sentir que não existia mais lágrimas. E quando as lagrimas secaram, minha alma chorou em silêncio.
Não sei por quanto tempo fiquei ali, só me mexi para ligar para Lucas, ainda com a intenção de concretizar minha promessa.
— Quer me ajudar numa coisa? — Digo, quando ele atende a ligação.
— Depende, posso ser preso por isso?
— Não, eu acho.
— Ah que pena, seria bem mais divertido — Ele fala desapontado.
Poucos momentos depois, estou montada na garupa da moto de Lucas. Não me importo mais com a velocidade. Passamos por várias ruas, até parar na frente de um estúdio de tatuagem. Pedi ao Lucas que me ajudasse a fazer uma tatuagem, mas tinha que ser ainda hoje. Por sorte, um amigo dele é tatuador e estava sem clientes hoje. Reservei um horário e aqui estamos. O moço com alargador e uma grande barba limpa meu braço e aplica o decalque.
— Agatha, você é maluca, de verdade. — Lucas fala rindo, sentado do outro lado da sala. — Você acredita Fael, que ela inventou isso a menos de vinte minutos atrás?
O tatuador ri, enquanto prepara o restante das coisas para começar.
— Bom, acho que vai ficar bem bonito. — Ele sorri.
A máquina começa a trabalhar e quase tiro o braço por reflexo quando sinto as primeiras beliscadas. Mas depois de um tempo, meu braço adormece e a dor é suportável. Lucas divide um fone sem fio comigo, me fazendo escutar suas músicas barulhentas e antigas. Também se diverte gravando vídeos quando a dor aumenta um pouco e eu faço uma careta.
— Essa tatuagem tem algum significado ou você só achou bonita mesmo? — Fael pergunta pra mim, ainda sem tirar os olhos do meu braço ou parar seu trabalho.
— Na verdade tem... Uma pessoa muito querida pra mim faleceu ontem e deixou uma carta para mim. No envelope da carta tinha um desenho de uma flor, achei que era um bom jeito de eternizar isso. Um jeito de ter uma parte dessa pessoa sempre comigo. — Respondo, tentando não chorar ali.
— Isso é muito bonito da sua parte. — Ele diz sorrindo. — Prometo fazer o meu melhor para sua tatuagem ficar linda.
Assinto e voltamos ao silêncio.
Ao todo, a sessão durou cerca de duas horas. Lucas saiu para ir ao mercado em determinado momento, trazendo consigo alguns biscoitos integrais e água para que eu não precisasse ter que pausar o processo.
— Pode se levantar. — Avisa Fael, me tirando do meu sono. Nem percebi quando adormeci.
Observo a tatuagem pelo espelho, a flor não tem cor mas está igual a que veio desenhada no envelope. Sorrio satisfeita com aquilo, e lembrando de seu Antônio. Acho que ele diria que eu era maluca por fazer aquilo, mas ainda sim acho que ele acharia bonito.
— Quer saber? — Lucas se aproxima. — Tem tempo para mais uma Fael? Fiquei com vontade também. — Fala numa súbita animação. — Acho que uma flor no pescoço, igual a da Agatha.
— Se você me esperar comer um sanduíche, sim. — Fael responde, parecendo feliz por ter dois clientes de uma vez.
— Depois eu sou a maluca. — Falo para Lucas, que me dá língua em resposta.
Enquanto Fael come, pago a minha tatuagem e tiro uma foto para mandar para Saori. Mais cedo, ela me mandou mensagens de carinho e conforto, alguém do nosso grupo deve ter contado para ela. Fico grata pelo gesto.Isso tá incrível!
Ela responde, junto com uma foto com a mão na boca chocada. Mando a mesma foto no nosso grupo de mensagens e guardo o celular.
Fael retorna e começa a de Lucas. Por ser em uma área mais sensível, ele parece sentir mais dor do que eu. Também gargalho com suas caretas e gravo videos que vão direto para nossos amigos. Sua tatuagem é menor, então cerca de uma hora depois, ele já está admirando o trabalho no espelho.
— É incrível como eu só fico mais bonito. — Fala, em um tom convencido.
— Sua auto estima deveria ser encapsulada e vendida. — Zombo.
— Dá para abastecer um açougue inteiro com essa sua língua. — Devolve ele com uma risada.
Lucas paga a sua tatuagem e saímos do estúdio. Enquanto caminhamos de volta para o estacionamento, resolvo perguntar:
— Por que fez isso? Digo, você não era nem um pouco próximo dele, a tatuagem não perde o significado?
Ele pensa um pouco antes de responder.
— Tatuagens tem o significado que nós damos a elas, independente do desenho. Você quis fazer como uma homenagem para o seu Antônio, eu quis fazer para me lembrar da primeira e única irmã que eu tive. — Ele responde.
Não consigo responder de imediato estou tentando processar o quão fofo e lindo foi isso. Não sei exatamente o que fazer, então abraço Lucas, com toda força que tenho.
— Vou senti muito a sua falta. — Consigo dizer.
— A gente ainda vai se vê, prometo te visitar no seu aniversário. — Ele estala a língua.
— Não sou muito de dizer isso, pelo menos nunca disse pra você mas... — Começo, mas Lucas me interrompe.
— Eu também te amo.
Sorrio e o aperto novamente, feliz por ter Lucas como meu irmão.
— Não sei se isso é contra as regras, mas minha tatuagem tem dois significados agora. — Falo, o fazendo rir.
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Estrelas ao meio dia.
RandomAgatha sempre foi uma menina introvertida, vivendo em seu pequeno mundo coberto de livros, quadros e músicas que foram lançadas antes mesmo de ela sonhar em nascer. Mas quando uma garota punk de cabelo cruza seu caminho e a faz experimentar a rebel...