Capítulo Quarenta e Cinco.

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     Tinha desenvolvido um hábito novo de vir sempre ao sótão, adorava passar horas no meio das coisas do meu pai. Antes me recusava a vir a este local, mas agora me trás um grande conforto. Tanta coisa mudou em tão pouco tempo, olhar para tudo aqui é como respirar com calma, como se fosse uma fenda no espaço, um lugar em que o tempo não passou e eu posso estacionar um pouco. No momento fazia uma de minhas coisas favoritas: ler e escutar música. Tinha dormido aqui noite passada, o chão agora abrigava um colchonete fino e travesseiros, ao lado uma pequena taça que adotei como cinzeiro. Não me preocupava o fato de alguém entrar e me flagrar, minha mãe e Thomas tinham uma espécie de contrato social de não me importunar quando estava aqui, eu agradecia por isso. O Retrato de Dorian Grey repousava em meu colo enquanto eu me dividia entre pensar no que desenhar para meu próximo encontro com Marcela e ler. Achei que não seria tão difícil desenhar meu momento mais feliz na infância, mas agora via que era sim. Sempre que tentava me lembrar de algo, minha mente me levava para minhas piores lembranças: o rosto de minha mãe ao jogar o celular na parede quando descobriu sobre o falecimento de meu pai, as noites que chorei baixinho sozinha em meu quarto ou as semanas que passei sentada à porta da minha mãe, esperando que ela saísse. A música ecoava pela velha vitrola enquanto eu me questionava, ‘’The World Knew’’ do Frank Sinatra.
A melodia fazia meu sangue ferver e as frases de Oscar Wilde giravam na minha cabeça, ‘’Alguma coisas são preciosas por não durarem.’’ E a vida era assim, se tudo durasse para sempre, inclusive nós mesmos, qual seria o ponto de viver?
   Depois de questionar tudo isso me lembrei de uma de minhas raras memórias felizes. Thomas, Miguel e eu correndo entre as árvores de uma chácara; minha mãe e meu pai haviam alugado para um almoço de família, o único que tivemos sem acabar em briga. Meus parentes em geral não eram muito unidos, e hoje em dia não tenho contato com mais ninguém, com exceção do pai de Thomas.  Percebi que aquela memória era a mais feliz, não por ter sido o dia que mais comi sorvete na vida ou porque ganhei um box de livros de colorir; mas porque foi a última que tive. Poucos meses depois papai morreu e nada foi mais o mesmo. Achei na época que aquele era o começo de uma fase mais unida, mas não fora, apenas tolice infantil. E essa é a razão da importância dela, não durou. 
    Faço o desenho, arrumo tudo e caminho de volta para meu quarto, tinha que me arrumar para sair com Saori.

                             ☆☆☆
     

     Passava perfume quando escutei uma buzina do lado de fora, ignorei de primeira já que não estava esperando nenhum veículo, mas a buzina insistia no barulho. Olhei pela janela do meu quarto, era Lucas? Apertei os olhos para enxergar melhor, maldita miopia. Era ele mesmo, apoiado em uma moto branca. Lucas parecia um Bad boy de fanfic ali parado de jaqueta de couro, cabelo raspado e capacete apoiado no banco. Desci às pressas para encontrá-lo. 
— De onde veio isso? — Perguntei observando com curiosidade.
— Não conhecia meu bebê? — Ele sorriu e deu tapinhas no banco da moto. 
— Não sabia sequer que você sabia andar de alguma coisa que não fosse skate. 
— Quanta falta de expectativas em mim, tampinha. — Ele fingiu estar ofendido. — Sobe aí — ordenou.
— Não posso, estou esperando Saori.
Ele riu, como se eu tivesse dito algo idiota.
— Saori é o motivo de eu estar aqui — começou, e antes que eu pudesse questionar ele me cortou. — E nem venha me perguntar nada, ela disse que se eu contasse algo, terminaria de raspar meu cabelo. Então para todos os efeitos, é uma surpresa. — Finalizou me jogando o reserva que estava pendurado em seu antebraço. Não fiz mais perguntas, apenas coloquei o capacete e subi na moto, me segurando nos apoios do lado do banco. 
— Sei que sou deslumbrante, mas não precisa ficar tímida de segurar na minha cintura. — Disse convencido. Revirei os olhos e envolvi meus braços em seu quadril. — Com emoção ou sem emoção? — Ele perguntou, me olhando pelo retrovisor. 
Pensei e resolvi desafiá-lo.
— Com emoção. 
Lucas balançou a cabeça negativamente e riu. 
— Péssima escolha. 
Foi tudo que eu ouvi antes de uma arrancada brusca que me fez apertar seu tronco com o susto e conseguir sentir sua gargalhada. Ele estava certo, me arrependi no mesmo instante. O garoto acelerava com tudo, fazendo Zig Zags pelos carros e não dando a mínima para as buzinas vindas de motoristas raivosos. Já imaginava minha  foto no jornal da manhã seguinte: Garota morre em acidente de moto por causa de adolescente fumante inconsequente.
    Quando me acostumei um pouco com a velocidade, me permiti olhar em volta. O céu de Brasília estava azul vivo e quase sem nuvens, como sempre. Na esquerda conseguia vê a torre de TV, estava lotada hoje. Passamos pelas fontes com jatos de água altos e coloridos. De longe consegui ver a Catedral e a Biblioteca Nacional. Perdi as contas de quantas tardes passei naquele lugar, me escondendo em meio aos livros sempre que a situação ficava difícil em casa.
    Paramos na entrada do parque Sarah Kubitschek e desceu da moto. Assim que desci ele puxou uma venda do bolso. 
— Pra que isso? — Pergunto. 
— Para não ver as coisas antes da hora.— Ele se aproxima na intenção de pôr a venda, hesito mas deixo. — Não precisa ter medo, tá comigo tá com Deus.
   Lucas me guia pelo parque até sabe se lá deuses onde, me avisando quando descer algo ou virar para esquerda e direita. Ele é péssimo nisso então em determinado momento piso em falso e quase caio.
— Puta que pariu! — Ele exclama, fazendo um gesto rápido para me segurar. 
— Se estar com Deus é assim, quero nem saber como é estar com o diabo. —  Digo com sarcasmo.
— Foi mal eu me distraí. — Diz segurando o riso.
   Andamos mais um pouco até pararmos em algum lugar que chuto ter muitas árvores pelo som de galhos se chocando. O ar é fresco e consigo ouvir também água correndo no fundo. 
— Quando eu te soltar, quero que conte até 10 devagar e tire a venda. — Instrui. 
Concordo com a cabeça. 
— Obrigada por me trazer — Digo. — Viva.
Aposto que Lucas está sorrindo, consigo ouvir um riso nasal. Ele se solta do meu braço que estava agarrado no dele e se afasta.
1, 2 , 3 , 4 , 5 , 6, 7 , 8 ,  9 ... 10. Tiro a venda.

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