Os dias passaram num piscar de olhos, quando notei já era quarta e todo o tempo que passei com Saori parecia tão pouco. Na terça, resolvemos ir ao show de uma banda local. A maioria das músicas tocadas foram apenas covers de outras já famosas, não reclamei porque, gritar "I wanna be yours" olhando nos olhos de Saori, foi um dos momentos mais mágicos do meu ano. Não conseguia parar de encará-la, era como se uma força magnética me puxasse para cada vez mais perto. Em determinado momento o mundo parecia ter parado, o jogo de luzes agitado se movimentava em câmera lenta e tudo que eu conseguia ouvir era uma batida abafada e o som de seu coração. Nos beijamos, pela primeira vez, em um lugar tão lotado, sem medo de sermos quem somos. E sinto que algo mudou naquela noite, eu gostaria de experienciar tudo com Saori, é difícil explicar algo que só percebi naquele dia. Como hoje não tínhamos nada certo marcado e meu corpo transbordava energia acumulada, resolvi, por algum motivo, ligar para Lucas.
- Fala. - Cumprimentou ele quando atendeu. Conseguia ouvir um barulho do que eu achava ser um vídeo game, estava alto demais e abafava vozes, quase como uma briga ao fundo.
- Estou indo na sua casa. - Disse sem meias palavras.
- Não lembro de ter te convidado.
- Quem disse que eu preciso de convite? - Respondo convencida.
- Folgada você, em? - Diz com uma risada. Lucas solta um suspiro antes de voltar a falar. - Olha, eu adoraria aceitar seu auto convite, mas minha casa não é o melhor lugar agora, na verdade.
- Aconteceu alguma coisa? - Pergunto, já sentindo um pouco de preocupação. Consigo o ouvir sibilar alguma frase, mas não chega a falar com clareza.
- Meus pais estão em casa... - Ele diz em um tom constrangido.
- Oh - é tudo que consigo dizer.
- Pois é... mas se você ainda quiser sair eu topo. Esse lugar tá um inferno, de qualquer maneira.
Sorrio concordando, mas aí me lembro que Lucas não pode me vê então respondo com palavras:
- Eu passo aí... ou?
- Eu te busco, preguiçosa!
- Que cavalheiro. - Consigo sentir Lucas revirar os olhos. - Até logo!
☆☆☆- Lucas.
Jogo o celular na cama e esfrego o rosto, passando a mão pelo cabelo e a descansando atrás da cabeça. Eu me sentia extremamente cansado, meu corpo parecia pesado e os gritos dos meus pais piorava tudo.
- Renê, pela última vez! Não pode transferir essas ações, é instável demais! - Esbraveja minha mãe.
- E vamos deixar com quem?! Lucas? É um inútil, vai nos fazer perder lucro! - Meu pai grita de volta.
Era a mesma discussão, de novo e de novo. O sonho do meu pai era que eu fosse bom o suficiente para administrar a empresa, mas eu não era. Nasci com dislexia e sentia dificuldade até mesmo com textos e contas simples. Para eles, eu era um completo nada, um erro. Eu já estava cansado de me sentir assim.
Me levanto e caminho até meu guarda roupa, pegando uma regata preta, jeans largo e um tênis. Fazia tudo no automático, retocava o risco na sobrancelha, limpava meus piercings, raspava novamente a cabeça. Vez ou outra eu olhava para meu espelho do quarto, nem sequer era usável mais. Estava cheio de fotos, cartas e desenhos. Fotos minhas com Saori, a que mais gostava era uma do dia que tocamos juntos em um pub de rock. Uma minha caminhando com Evandro, em um desfile que ele mesmo organizou, ele me obrigara a vestir um casaco preto pesadíssimo. Mas a que mais amava, era uma que tinha com Brisa. Sá a tirou quando estávamos distraídos, Bri pintava minha unha de preto, sorrindo adoravelmente. Nunca fui do tipo manteiga derretida, mas com ela era diferente. Brisa despertava um lado tão doce em mim que nem eu mesmo me reconhecia quando estava perto dela. Ela foi minha luz durante todo esse tempo.
Uma das minhas novas fotos favoritas era a que tirei com Agatha no ginásio, fazendo careta com cigarros no nariz. Saori nunca foi de apresentar ficantes nem nada do tipo, mas quando apresentou Agatha, sabia que virariamos melhores amigos; mesmo que ela parecesse me odiar. Eu não a culpava, eu sou irritante, é meu jeito de pedir atenção, Brisa faltava pouco me matar todos os dias, mas eu acho divertido.
Enquanto termino de me arrumar penso em Agatha, ela era uma das pessoas mais legais e gentis que conhecia, era esquisita, bastante, mas era legal. Acho que nos sentimos mais próximos de pessoas quebradas como nós, talvez seja por isso que nos aproximamos. Era notável, pelo menos para mim, que Agatha era confusa, explosiva e orgulhosa. E eu era exatamente do mesmo jeito, ela só era bem mais doce. Transformava o que sentia em versos e parecia entender todo mundo, como se você automaticamente se sentisse relaxado e confortável perto dela. Como ela fazia isso? Acho que quando se passa muito tempo suprimindo suas emoções você acaba perdendo um pouco delas.
Pego meu celular e mando uma mensagem para avisar que já estava chegando. Eu não estava, é claro, mas Agatha era tão enrolada que era necessário mentir para ela nesses quesitos.
Arranco o skate debaixo da cama e caminho em direção a porta.
- Lucas Venerrôi, onde pensa que está indo? - Minha mãe questiona, antes que eu possa girar a maçaneta. Me viro para ela.
- Vou sair.
- Não pode sair agora, advogados vem visitar seu pai, queremos que esteja aqui. Assim pode ir aprendendo.
Resisto a vontade de agir como um mimado e revirar os olhos.
- Sabe que isso não tem a menor importância pra mim. - Respondo
- Sandra desista, esse aí é um encosto. - Meu pai diz, fazendo questão de pronunciar cada letra da palavra "encosto".
Saio em silêncio e bato a porta com força.
Que se fodam eles.
Eu odiava muito aquilo, odiava como eles só me notavam se o objetivo da conversa fosse para me diminuir de algum jeito. É confuso, eu queria meus pais comigo, queria que eles voltassem quando saiam em longas viagens, mas quando voltavam, tudo que eu queria é que eles fossem embora. Eu não podia os expulsar da própria casa, eu era o intruso ali. Então, quem iria embora era eu.☆☆☆
- Agatha.
Escuto o rolamento de um skate no asfalto, rápido e constante, com pequenas pausas seguidas de baques fortes no chão. Até finalmente pararem e eu ouvir a campainha.
- Fazia tempo que não via esse carinha - Comento, me referindo ao seu skate, arranhado depois de tantas manobras feitas. Também reparei nele como um todo, o cabelo mais curto e a presença de olheiras mais escuras em seus olhos. Lucas está bonito como sempre, mas parece cansado, como se não estivesse dormindo muito bem.
- É, ele estava um pouco paradão esses dias. - Responde, girando a coisa com as mãos e me dando um abraço como cumprimento.
Lucas e eu caminhamos por um tempo, até chegar a uma pista de skate que eu nem fazia ideia que existia. É estranho como o centro de Brasília parece ter passagens secretas que, só sendo atento ou conhecendo as pessoas certas, você consegue adentrar. Me sento em um dos corrimãos e observo com curiosidade Lucas fazer alguns giros ou andar um pouco com seu skate pelas rampas grafitadas e arranhadas.
- Vai ficar me encarando ou vai tentar subir aqui? - Ele pergunta.
- Não obrigado, gosto dos meus ossos onde eles estão.
Lucas ri e me estende a mão.
- Qual é, eu tô indo embora. Tenho que te deixar algum aprendizado!
Tento não esboçar tristeza lembrando desse fato, então mascaro com sarcasmo.
- Você vai acabar me deixando é um hematoma! - Digo, mas aceito com relutância.
Tiger segura minhas duas mãos e me ajuda a conseguir ficar de pé no skate, de algum jeito, consigo de primeira. A segunda coisa que me ensina é "remar". Tenho sucesso enquanto ele segura minhas mãos, mas assim que as solta perco o equilíbrio e caio no chão.
- Eu disse! - Grito com raiva e vergonha, enquanto me levanto. Confiro se meus joelhos e mãos estão ralados, felizmente não
- Foi só um capote, é normal. - Ele ri, me ajudando a levantar. - Só não cai quem não anda.
Lucas me ensina novamente a remar e lá pra quinta tentativa consigo, meio "monga" como ele diz, mas não caio mais. Resolvemos dar uma pausa e nos sentar na sombra, Lucas me entrega uma latinha de refrigerante que ele comprou enquanto vínhamos para cá. Não está exatamente gelado, mas alivia o calor e a sede. Enquanto bebemos, tenho um flashback de coisas que ele me falou em momentos aleatórios, coisas que me deixam pensativa até hoje.
- Posso fazer uma pergunta pessoal? - Questiono, meio hesitante pela resposta.
- Não garanto que vou responder, mas manda aí. - Ele passa a mão pelo cabelo.
- Seus pais são...ruins com você ou algo do tipo? - Falo finalmente, um sorriso rápido e triste passa pelos lábios de Lucas antes dele responder.
- Eles são ruins com eles mesmo eu acho, ou melhor, entre eles. Comigo meio que não estão nem aí, na verdade. - Ele bebe um pouco de seu refri e deixa seus olhos longe, sem parecer querer me encarar.
- Entendo como é, minha mão nunca esteve presente na maior parte da minha vida. E meu pai, morreu ainda durante a minha infância, então também não o tive comigo. - Digo. Não sei exatamente o que dizer para Lucas nessa situação, mas gostava de saber que ele confia em mim para contar esse tipo de coisa.
- Isso afeta a gente quando criança, não é? - Concordo com a cabeça, para não o interromper. - Lembro de uma vez, no terceiro ano, que eles foram chamados na escola pela minha professora. Não lembro exatamente o que eu havia aprontado, mas eles tiveram que ir resolver. Comentei com Evandro que eles estavam na escola, ele entrou em pânico com medo de eu apanhar ou algo do tipo. Mas eu não escondia o sorriso, ele perguntou por que caralhos eu estava feliz. Não respondi, mas eu sabia que...
- Era legal o fato deles estarem participando de algo na sua vida. - Completo sua frase.
- É, isso. - Lucas concorda com um sorriso amarelo, ele parece feliz que eu entendi seu ponto. - Comecei a fazer muita merda depois disso, pra chamar atenção de algum jeito. Mas eles pararam de ligar, só assinavam as advertências ou suspensões sem se importar do porquê. Ou pior, mandam algum funcionário fazer por eles.
- Caralho, que merda. - Solto, odeio nunca saber o que dizer nessas situações. E odeio ainda mais ser péssima em pôr em palavras a empatia que sinto.
- Uma merda. - Ele repete.
- Sabe, sou sua família também. Todos somos na verdade, e garanto que não precisa matar o presidente pra chamar nossa atenção. - Eu brinco, mas falando sério.
- Vou me lembrar disso. - Ele diz sorrindo. Lucas tira do bolso sua clássica carteira de Tiger e puxa um para si, ele tira outro e me oferece. Mas este é diferente, é totalmente preto, nunca tinha visto um desse.
- Percebi que você é fresca e gostou mais do mentolado, então comprei esse pra você. É o mais forte de menta que encontrei.
Abro um sorriso, tentando não demonstrar que achei extremamente fofo Lucas se lembrar disso. Aceito o cigarro de prontidão.
- Sabe, acho que você vai me deixar um pulmão preto de presente também.
Lucas gargalhou, jogando o corpo para trás. Acho que sempre na vida tem um momento que percebemos a importância de alguém, e ali, eu percebi que aquele menino encrenqueiro é o irmão mais velho que ganhei.
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Estrelas ao meio dia.
AcakAgatha sempre foi uma menina introvertida, vivendo em seu pequeno mundo coberto de livros, quadros e músicas que foram lançadas antes mesmo de ela sonhar em nascer. Mas quando uma garota punk de cabelo cruza seu caminho e a faz experimentar a rebel...