Coloquei o endereço de Saori no GPS e fui pedalando até sua casa. A cada aviso de proximidade do destino que a voz eletrônica dava, eu sentia meu coração acelerar. Também imaginava como seria sua casa; Aberta? Mais fechada? A cor etc. Mas o que estava curiosa mesmo era para ver seu quarto. Para mim, o quarto de alguém é um espelho de seu eu interior. O meu por exemplo, é um pouco confuso, não segue uma linha certa de estilo e muitas coisas não combinam. Na verdade ele é mais uma mistura de várias fases que tive. As únicas coisas que permaneciam era os diversos livros em toda parte e as paredes cobertas de pôsteres de peças de Shakespeare, e capas de álbuns de MPB. O de Isa expressa toda a sua obsessão pelo espaço e o quanto ela tem sede de conhecimento. Sempre brinquei com o fato de parecer o escritório do Sherlock Holmes, pela quantidade de quadros mediculosamente esquematizados com barbante vermelho, fazendo parecer mais uma investigação criminal que algum estudo sobre física quântica. Mas meu favorito sempre foi o quarto de Miguel. Era bagunçado de um jeito bonito, do jeito que mostrava que tinham histórias alí. Eu amava como ele mantinha o telhado de nuvens que fizemos juntos quando tínhamos 13 anos. Passamos um dia inteiro colando pedaços enormes de algodão no teto e colocando fitas led azuis para dar um efeito mais legal. Era como meu ponto seguro e mágico.
- Você chegou ao seu destino. - Informou a voz robótica.
Senti a ansiedade subir quando me vi ali parada na frente da casa. Talvez não fosse exatamente o que eu imaginava, mas era adorável. A casa tinha um tom bege e uma porta cor de carvalho escuro. Na varanda, um balanço para duas pessoas cheio de almofadas coloridas, ocupava um grande espaço. Do outro lado, podia-se ver algumas plantinhas, incluindo samambaias penduradas no teto ao lado de um filtro dos sonhos. Seus pequenos sinos e pedrinhas faziam um barulho calmo ao balançar com o vento.
Respirei fundo antes de tocar a campainha. Acho que minha ansiedade estava maior por conta de todos os eventos desses dias em casa, estava difícil relaxar.
Respirei e apertei a campainha. Ninguém saiu. Esperei um pouco e repeti o movimento. Quem atendeu foi um homem, bem alto, parecia ter uns 40 anos.
- Sim? - Perguntou o moço ajeitando seus óculos quadrados no rosto.
- Oi, boa tarde! A Saori mora aqui? - Tentei soar o menos nervosa possível.
- Ah sim, você deve ser a Agatha, acertei? - Sua expressão suavizou.
- Sou. - Falei com um sorriso amarelo. - Saori me chamou para vir para cá.
- Ela me avisou. - Agora o senhor sorriu, mas de um jeito simpático e tranquilo. Pude notar algumas rugas do lado dos olhos. Sim, deveria ter uns 40 anos de fato. - Pode entrar, ela já vai descer. Tá arrumando o quarto pra te impressionar. - Ele ri do próprio comentário.
Saori queria me impressionar?! Concentra Agatha, calma...
O homem(que chutei ser pai de Saori) fez um gesto para que eu entrasse na casa, ou pelo menos um tipo de Hall entre outra porta que dava para a casa mesmo. No canto do pequeno espaço estava uma mini sapateira e perto da porta um tapete escrito "Bem vindo!". Em japonês e em português. Na parede, um quadro de uma arte mais abstrata estava lá. Cheio de linhas pretas e amarelas com alguns tons de branco. Não entendi muito bem o que era, mas era curiosa de se observar.
- Pode deixar os sapatos aqui, por favor? - Perguntou ele com um tom educado. - É um costume que temos.
- Sem problemas. - Respondi e abaixei para tirar os tênis que usava.
Sem o sol, podia reparar melhor no (possível) pai de Saori. Realmente bem alto, e era Asiático como ela, e bem bonito. A única diferença que pude notar eram seus óculos de armação preta, os olhos que também eram mais escuros que o castanho mel de Saori e um certo sotaque forte em sua fala, falava mais pausado como se escolhesse as palavras com cautela.
- Pode se sentar, ela já vai descer - O homem apontou para o sofá preto de couro no centro da Sala. - Você quer algo para beber? Uma água, um suco?
- Uma água seria ótimo. - Respondi educada o suficiente para que quem veja de fora não imagine o quanto estou morrendo de sede. A pedalada até aqui junto com o nervosismo deixou minha garganta mais seca que um deserto.
- Eu já volto, fique a vontade - Disse com um sorriso doce.
Olhei em volta. Por dentro a casa tinha um tom de preto. A maioria dos móveis tinha algum enfeite em cima. Notei um curioso, na verdade não acho que era um enfeite. Era uma altar, com pequenas velas e um pratinho onde um incenso queimava, quase no final. No centro, um Buda dourado se sentava com as pernas cruzadas. Muito bonito.
Assim como no hall, na maioria das paredes se encontrava quadros diversos. Não consegui identificar o artista, as assinaturas estavam todas em kanjis.
- Aqui - O suposto pai de Saori me entregou um copo com água gelada.
- Obrigada! - Falei pegando o copo. Se para falar eu estava calma, para beber a água foi diferente. Bebi tudo tão rápido que até eu me assustei.
- Que sede, em? - Disse ele com uma risada.
- Desculpe, vim pedalando até aqui. - Respondi com vergonha.
- Não precisa se desculpar. - Ele pegou o copo e colocou na mesa de centro. - Esqueci de me apresentar, Sou Yoshiaki, pai da Saori.
Isso acertei! As semelhanças não podiam ser coincidência.
- Muito prazer! -- Eu estendi a mão e nos cumprimentamos.
- Você chegou! - Disse Saori, pulando 4 degraus da escada de uma vez até o chão. Fazendo até eu me assustar com o barulho e a altura.
- Saori! Já disse para não fazer isso! - Repreendeu ele. Notei como ele pronunciava "Saori", não era como eu e os outros: "Sáôrí" o dele era "Sáôré", e parecia mais arrastado e estridente.
- Otōsan... - Respondeu ela apontando para mim com os olhos parecendo querer sinalizar que eu estava ali.
- Kegawosuru kanosei ga arimasu!
- Sumimasen, Mo yaramasen. - Disse ela obediente, mas com uma expressão
Fiquei ali, tentando entender o que estava acontecendo e desejando estar com um dicionário por perto ou que magicamente legendas com tradução iriam aparecer no ar. Era uma briga? E se era uma briga, por que ela parecia tão charmosa?! De verdade, não me importaria de fazer besteira só para ouvir Saori brigar comigo em japonês.
- Vamos lá pra cima? - Chamou Saori.
- Foi um prazer te conhecer - Falei olhando para o pai dela. - Senhor...?
- Nobayashi. - Completou - Mas pode me chamar só de Yoshiaki, se preferir.
- Certo, Yoshiaki - Repeti com um sorriso amarelo, parecia um pouco sem educação o chamar assim.
A parte de cima da casa era bem aberta assim como o térreo. Nas paredes tinham várias fotos do que, eu suponho que seja Saori com sua família quando pequena; não consegui enxergar direito por causa do reflexo da luz no vidro.
Em uma das grandes janelas estava uma espécie de banco estofado e um cavalete. Ao seu lado também se encontrava uma mesa cheia dos mais variados utensílios de pintura: pincéis, tintas e um godê cheio de tintas secas coloridas. Me lembrei do quadro que Saori me mostrou no dia que a conheci. Será que era ali que ela havia pintado?
- É por aqui - Saori me puxando pela mão, quase me fazendo cair de novo.
-Bom... esse é meu quarto. - Ela abriu a porta timidamente.
Olhei em volta. Era exatamente o tipo de quarto que imaginei. Paredes cobertas de pôsteres e desenhos. O teto tinha de fitas led (agora desligadas) como as do quarto de Isadora. Uma cama de casal estava encostada na parede, a cabeceira tinha um pisca-pisca enrolado, com várias polaroids penduradas. Fotos dela com Lucas, Brisa, Evandro e outros amigos asiáticos que não conhecia.Saori fez um gesto para que eu entrasse. Dei outra volta no quarto até uma estante de livros.
- Não sabia que gostava de ler - Apontei para as centenas de livros enfileirados..
- Não sou muito chegada na verdade, mas Brisa é bem insistente quando se empolga com um livro - Disse ela, rindo. - Ela inferniza todos para ler também.
- Bem, ela tem bom gosto, só tem livros bons!
- Não posso discordar. - Ela dá de ombros com um sorriso.
Vasculhei mais um pouco, admirando as capas e folheando algumas páginas. Se dependesse de mim, eu poderia passar o dia ali, aprendendo sobre os gostos de Saori. Ela me assistia com atenção.
- Você leu Percy Jackson? Não brinca! - Eu sorria enquanto passava a mão pela edição de capa dura.
- Claro! Até heróis do Olimpo pelo menos, depois fiquei com preguiça
Dei uma risada.
- Qual seu chalé? - Perguntei.
- Não é óbvio? 13 com certeza, Querubim.
Lá estava de novo, o apelido que quase me fez cair de cima do muro.
- Seu dia de sorte então, o meu é apolo.
Saori deu um sorriso travesso de lado em resposta. Ela pegou a referência.
Antes que pudesse continuar meu flerte literário descarado, notei outro livro na estante. A garota notou meu interesse.
- O príncipe cruel? - Perguntou ela, se aproximando de mim até nossos ombros se tocarem.
- É meu livro de fantasia favorito. - Comentei empolgada, folheando o livro. - Esse príncipe sabe provocar. - Finalizei rindo.
- Nesse caso...- Em um movimento rápido, Saori agarrou minha cintura e tirou o livro de minha mão. Estávamos perto, tão perto que podia sentir sua respiração quente. Meu coração pulsava tão rápido que eu temia que fosse sair do peito ou ela escutasse. - Como era mesmo? - Ela ponderou enquanto olhava para meus lábios, depois de volta para meus olhos.
Saori apertou mais minha cintura, derrubando o livro de sua mão e colocando a ponta dos dedos em meu pescoço, imitando uma faca, igual a Jude na história.
- Me beije, Me beije de novo até que eu esteja cansado disso.
Não conseguia pensar direito. O quarto parecia quente. Olhei para os lábios de Saori, eles pareciam mais vermelhos que de costume. Era tudo que queria naquele momento. E estavam bem ali, a poucos centímetros do meu, o calor de seu corpo e seu cheiro de framboesa suave invadindo meus sentidos e me deixando zonza.
A porta abriu subitamente fazendo eu pular de susto e sair da magia daquele momento. Era o pai de Saori com uma bandeja de comida.
- G-gomen! - Exclamou constrangido.O homem misturava o português e o japonês em uma língua confusa. Meu rosto queimava de vergonha. - Só queria oferecer um lanche...
- Obrigada, pai. - Saori disse com vergonha, pegando a bandeja e fechando a porta.
Ela se virou pra mim, eu com
- Agatha... desculpa por isso... - Ela esfregou as têmporas com um suspiro.
- Acho melhor eu ir. - Cortei Saori, com vergonha demais para a olhar nos olhos.
- Não, não vai, por favor. - Saori segurou minha mão e começou a falar algo, Não escutei o restante, me soltei de sua mão e corri passando pela porta. Yoshiaki ainda estava do lado, o que me fez sentir mais vergonha ainda.
Conseguia escutar Saori chamando por mim quando coloquei o tênis de maneira desajeitada e saí porta a fora.
- Agatha! Desculpe, volta aqui!
Continuei correndo, não conseguia virar, por algum motivo me sentia boba. Nem cogitei a possibilidade de Saori ser assumida ou não. O pai dela ficará bravo? Na verdade, em que momento assumi que ela gostava de mulheres? Meu Deus e se foi tudo uma brincadeira dela ou sei lá?
Ela continuava me seguindo, já estava a uma rua de casa quando Saori me alcançou e puxou meu braço me fazendo parar.
- Olha pra mim por favor. - Falou ofegante da correria. Levantei o rosto e a encarei. Seu olhar parecia um pouco, desesperado? O que foi que eu fiz. - Desculpa se aquilo te deixou desconfortável, foi mal mesmo era uma tentativa idiota de não sei, sedução? Não me liguei que talvez você nem sequer gostasse de meninas. Desculpa.
A visão de Saori da situação era ainda pior que a minha. Ela achou que eu fiquei incomodada e por isso corri?
- Eu...
Fui interrompida por um grito rasgado e esganiçado vindo de algum lugar. Não era só um grito, eram vários. Um atrás do outro. Pedidos de socorro. Saori segurou minha mão em um reflexo assustado. Foi depois de mais um grito que notei. Estavam vindo da rua em que eu morava.
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Estrelas ao meio dia.
AléatoireAgatha sempre foi uma menina introvertida, vivendo em seu pequeno mundo coberto de livros, quadros e músicas que foram lançadas antes mesmo de ela sonhar em nascer. Mas quando uma garota punk de cabelo cruza seu caminho e a faz experimentar a rebel...