Capítulo Vinte e Um.

11 3 0
                                    

Duas semanas depois do ocorrido, Isadora e eu já estávamos em casa. A rotina não era mais a mesma, nós talvez não fossemos também. Isa precisava de ajuda para quase tudo; as costelas quebradas dificultam o andar. E meu braço era basicamente inútil. Nenhuma das duas tinha tirado o gesso ainda, o médico nos orientou que em seis semanas, talvez, voltassem ao normal.
Por mais que estivéssemos todas juntas em casa, a sensação de perigo era constante. Sempre imaginávamos que aqueles caras voltariam para mais uma rodada. E a sensação piorava quando saía de casa depois de muita insistência de Saori e dos outros. Apesar de tudo, estava feliz pelo apoio que recebemos. Um dia depois de ter alta, Lucas, Brisa e Evandro vieram até minha casa. Ficaram horas conversando com nós duas e assinaram nosso gesso. Evandro fez o desenho de um braço esqueleto no de Isa que ela amou. Era bastante comum a presença do grupo em casa agora, quase todos os dias algum deles aparecia, mesmo que para ficar pouco tempo.
Naquele dia em específico, Saori e Miguel já haviam ido embora. Eles basicamente viviam aqui agora, nenhum dos dois gostava de me deixar só. Minha mãe também estava fazendo um ótimo trabalho. Pela primeira vez em 17 anos ela tinha pegado férias para cuidar de nós. E estava respeitando nossos limites.
Eu estava sentada na varanda, ouvindo música com Isadora. O céu estrelado deixava a noite clara e linda. Minha prima alternava entre cantar e tagarelar incansavelmente sobre constelações e que tal estrela na verdade não era uma estrela, e sim um planeta.
- Podemos conversar? - Perguntei.
- Já não estamos fazendo isso?
- Você sabe do que eu tô falando.
E ela sabia mesmo. Desde que voltamos do hospital venho evitando essa conversa. Sempre tentando achar um momento melhor para conversar, mas é óbvio que não existia momento para falar sobre algo desse tipo. Sabia que minha mãe também queria falar sobre, mas agora ela entendia melhor que falaríamos quando estivéssemos prontas.
- Tudo bem... isso ia vir à tona alguma hora né? - Isa cedeu, depois de um longo suspiro.
Concordei com a cabeça.
- O que aconteceu de verdade naquele dia? Por que aqueles caras estavam batendo em você?

Minha prima respirou fundo mais uma vez e olhou para o céu, visivelmente nervosa.
- Agatha... o que eu vou te falar agora é a coisa mais importante do mundo para mim. E dizer isso em voz alta ainda é apavorante e totalmente novo.
Olhei em seus olhos assentindo para que continuasse.
- Você já se olhou no espelho e sentiu que você não era você? Como se sua consciência estivesse em uma pessoa estranha?
- Não exatamente assim, mas talvez.
- Pois é. Imagina sentir isso todos os dias desde sempre. Você tenta fazer de tudo para ficar mais à vontade, mas nada funciona. Até o som do seu nome quase faz seu ouvido sangrar.
- Onde você quer chegar? - Perguntei um pouco aflita.
- Agatha... - Parou por um segundo, com os olhos marejados e a voz pesada. - Eu... sou um menino trans.
Parei de respirar por um segundo. Estava surpresa demais.
- Eu espero que isso não mude nada entre nós...- disse com lágrimas já descendo pela bochecha. - Outro motivo.... Bem, você se lembra de Ana? Aquela menina branca que bateu na nossa porta para entregar meus livros?
Fiz que sim ainda sem expressar reação.
- Eu estava meio que saindo, ou pelo menos gostando dela. Mas seu pai descobriu, e bom, o resto você já sabe.
Não tive muita condição de falar naquele momento. Estava eufórica, com raiva daqueles caras e perplexa. Tudo que consegui fazer foi abraçar minha prima. Não, abraçar meu primo. Parecia o certo naquele momento.
- Eu te amo. - Consegui dizer.
- Eu também...
De repente as memórias voltaram. O dia da porta quando a menina chamou Por um "Thomas", as trocas para o pronome masculino. Tudo. Esteve sempre ali, todo esse tempo. Como não enxerguei? O motivo das agressões também. Tive que respirar fundo para não deixar a raiva tomar conta, tentando não focar naquilo agora.
Depois de um tempo ali abraçados me afastei ficando em pé na frente da cadeira que ele estava sentado.
- Oi moço! Qual seu nome? - Disse, estendendo a mão e fingindo que não o conhecia.
- O que? - Perguntou confuso.
- Não sei o seu nome, é novo aqui?
Meu primo piscou entendendo a brincadeira.
- Ah claro! - Ele sorriu. - É Thomas. Thomas Vasconcellos. Desculpe a falta de educação, senhorita.
- Muito prazer. - Apertei sua mão de um jeito desajeitado por causa do braço quebrado.
Thomas sorriu novamente, rindo de verdade agora.
Senti que aquele era o meu momento também.
- Também preciso contar algo... - falei. Dessa vez quem estava o próprio nervosismo era eu. - Sabe a Saori?
Ele assentiu curioso. - Eu gosto dela... mais que como amiga. Nós quase nos beijamos no dia que aconteceu tudo aquilo - falei sem querer entrar em detalhes. Detestava reviver tudo. - Acho... Acho que ela também gosta de mim.
O sorriso de Thomas aumentou, indo de orelha a orelha. Chocado.
- AI CARALHO! - Ele pulou da cadeira, fazendo em sequência uma mini expressão de dor antes de se recompor. - Essa eu não esperava mesmo!
Gargalhei com sua reação.
- Pode me contar tudo! - Ordenou.
- E eu vou! - Correspondi à sua empolgação.
- Essa família tá quase uma parada LGBTQ+!
- Você não sabe nem metade!
A curiosidade tomou conta de seus olhos. Tudo parecia tão mais leve agora. Queria ficar nesse momento por mais 1 ano.



Estrelas ao meio dia. Onde histórias criam vida. Descubra agora