Capítulo Vinte e Três.

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    Coloquei uma roupa mais arrumadinha antes de Saori chegar, já que estava de pijama. Uma jardineira jeans com um cropped amarelo. Dei uma ajeitada no meu cabelo com a mão, dando volume. Em algum momento entre passar o pente garfo várias vezes, comecei a reparar nele. Um crespo lindo e enorme. Nas últimas semanas tenho conversado muito com meus amigos sobre racismo e cultura preta. E agora olhando para meu reflexo, não conseguia deixar de observar meu Black com mais carinho. Sempre adorei meu cabelo, mas agora amava ainda mais. Refletia quem eu era. Bach estava certo, ‘’Aceitar-me como sou é o maior amor de todos.’’ 
  Ouvi a campainha tocar e saí correndo escada a baixo sentindo a adrenalina invadir. 
— Oi! — Saori me abraçou, quando abri a porta. Adorava o jeito que ela me abraçava, entrelaçando os braços no meu pescoço. Era minha desculpa para abraçar sua cintura e conseguir sentir todo seu tronco. Admirei o que ela usava hoje, uma saia colada preta e uma blusa curta. Gostava do estilo usual de Saori, mas momentos raros como esse em que ela estava casual? Com certeza eram meus favoritos.
— Oi! — Cumprimentei de volta, a deixando entrar.  
— Está melhor? — Perguntou. 
— Até que sim, mal posso esperar para tirar esse gesso. 
— Eu imagino, dizem que coça pra caramba né?
— Às vezes parece que estou com sarna! — Falei sem pensar, me arrependendo logo em seguida. Naquele momento rezei para abrir um buraco no chão e que eu fosse engolida por ele.
Puta analogia merda em Agatha, tanta coisa pra associar! 
Por sorte, Saori riu do comentário. Respirei mais aliviada. Odiava minha mania de soltar esse tipo de coisa. Parece que quando estou nervosa às palavras simplesmente saem, não tenho mais controle delas.
  — Quer comer algo? Beber alguma coisa? — Ofereci para quebrar o momento constrangedor.
— Ah eu tô tranquila, obrigada. — Dispensou com educação. 
— É...ol então, tá afim de ir lá pra cima, ou..
— Subir parece ótimo. — Ela me interrompeu com um sorriso doce.
Saori e eu subimos juntas. O clima estava diferente naquele dia. Sentia que o universo estava me dando mais uma chance. 
  Quando passamos perto do corredor que ficava o sótão a garota parou subitamente e encarou a pequena porta no teto. 
— Desde que vim aqui pela primeira vez, sempre quis saber o que tem ai. — Ela observou com curiosidade. 
Senti um pequeno gelo na espinha. 
— São apenas coisas velhas. — Menti, dando de ombros. 
— Seria indelicado eu pedir para vê? Desculpe se for. 
Dei uma risada baixa. Achava um pouco fofo aquela curiosidade infantil estampada em seu rosto. 
— Relaxa, pode ver, sim. — Cedi ainda um pouco sem jeito pelo que tinha lá em cima. Não era o tipo de coisa que gostava de mostrar, ninguém de fora jamais havia entrado ali; nem mesmo sabia como Saori iria reagir, ela acharia deprimente? Pensaria que somos acumuladores?
Afastei um pouco as dúvidas e dei um pulo, puxando a cordinha para descer a escada. Os degraus finos de madeira se estenderam em nossa frente; Saori deu alguns passos para trás, tentando não ser atingida por acidente. Deixei que ela subisse primeiro, não queria vê sua primeira impressão do lugar.
— O que é isso tudo? — Perguntou, depois de dar uma boa olhada no quarto todo. 
— Coisas do meu pai, não queríamos jogar fora. — Respondi timidamente.
Ela assentiu lentamente. — Sinto muito. 
— Tudo bem.
   Saori continuou andando pelo quarto. Ela observava tudo com muita atenção, me coagindo a reparar também. Fazia tempo que eu não vinha ali, pelo menos fazia tempo que não olhava de verdade para as coisas que ali estavam. Em cada canto do quarto tinha uma parte do meu pai. Seus livros e discos. Ele sempre foi apaixonado por música. "Prometo que no próximo ano iremos no porão do Rock juntos!" Me disse uma vez. Não fomos ao festival, mas gosto de pensar que sim, e foi incrível, do jeito que ele me descrevia.

    — Cacete, que jaqueta foda! — Exclamou Saori, segurando a peça de couro. 
Senti uma enorme nostalgia.
— Meu pai não desgrudava dessa jaqueta. — Comentei, admirando a peça também — Já estava quase andando sozinha! 
Sá riu, me fazendo rir também. Lembrei como minha mãe ficava louca por não conseguir colocar aquela jaqueta para lavar nunca. Agora já estava gasta, o couro continha vincos e rugas aparentes.
— Eu também não tiraria. — Disse ela, girando a peça no ar para analisá-la melhor. 
— Acho que o cheiro de tabaco ainda está impregnado nela — Peguei uma das mangas com cuidado e inalei profundamente. — Ah é, definitivamente está. — Sorri. 
— Ele fumava muito?
— Igual uma chaminé — respondi rindo. 
— Seu pai e Lucas se dariam muito bem. — Saori riu também. Não consigo não imaginar aquilo, Lucas e papai fumando juntos, ou brigando por um cigarro. — Qual era o nome dele?
— Jorge. — Sorri ao dizer o nome, fazia anos que não o pronunciava.
— Que nome charmoso. — Ela ainda olhava para a  jaqueta, como se o imaginasse vestido nela. A memória era vivida na minha cabeça: péssima postura, o sorriso mole e o jeito malandro de girar o isqueiro entre os dedos. A pele negra com algumas tatuagens… Cara, que saudade do meu pai.
  Saori devolveu a jaqueta e continuou a vasculhar a sala.
— Ai meus deuses! —  Disse a menina de repente, correndo para um dos cantos da sala. — Nem ferrando que isso é um toca discos! 
Observei o aparelho, com atenção e meu coração aqueceu. 
— Ah sim, com certeza. Meu pai adorava essas coisas. "Nenhum alto falante de celular pode se comparar ao som de uma agulha direto no disco", ele dizia. 
— Concordo com ele. — Ela sorriu e passou os dedos pela agulha. — Feche os olhos. — Ordenou. 
— O que? Por que?
— É uma surpresa, confia em mim! — Disse Saori, pegando minha mão e levando aos meus olhos. Aceitei o gesto ainda insegura.
 Saori se afastou, pude ouvir o barulho de algumas coisas mexendo, passos para lá e para cá. 
— O que você está aprontando? — Perguntei.  Senti sua presença novamente, mais perto dessa vez, repousando seu indicador em meus lábios, para que eu fizesse silêncio. Fechei a boca no mesmo instante, sentindo meu corpo todo arrepiar. 
   Alguns instantes depois uma melodia suave começou a tocar. Put your head on my shoulder…
Fiz menção de abrir os olhos, mas Saori me impediu. 
— Não tivemos a oportunidade de resolver nossas pendências… então, só sente.

Fui tudo que ela disse antes de segurar minha cintura com carinho e levantar meu braço levemente, segurando em minha mão. Sorri, ainda de olhos fechados. Seu cheiro doce e familiar de framboesa impregnando meu olfato. Balançávamos devagar, um pouco desajeitadas e sem muito ritmo. 
— Put your hair on my shoulder… — Saori cantava baixinho em meu ouvido. Sua voz era doce, como veludo. 
   Quebrei o acordo e abri os olhos. Ela me olhava fixamente. O linha fina de luz solar que saía da única janela batia em seus olhos castanhos mel, os fazendo ficar ainda mais claros. Sua pupila estava dilatada e suas sardas destacas como constelações no céu noturno. Não conseguiria desviar a atenção deles nem sob ameaça. 
— Hold me in your arms baby… — arrisquei a cantar. 
Saori me puxou para mais perto. A essa altura já estávamos abraçadas. Minha cabeça descansava em seu ombro assim como a música pedia. Conseguia ouvir seu coração batendo aceleradamente assim como o meu. Paul Anka cantava "put your lips next to mine dear" Quando Saori afastou meu rosto de seu ombro e me encarou. 
— Won't you kiss me once, baby? — Ela sussurrou, olhando primeiro para minha boca, se demorando lá um pouco antes de me fitar novamente.  
  A sensação que tive quando estava em sua casa voltou. Eu estava exatamente onde queria estar, e dessa vez nada poderia nos impedir. Então a beijei. Um beijo singelo e delicado me afastando logo em seguida, dando oportunidade para ela se afastar se desejasse. Saori não recusou, ela queria aquilo tanto quanto eu. A menina me beijou de novo. Dessa vez um beijo mais acelerado, cheio de desejo e pressa como se alguma de nós pudesse fugir. Sua mão varria minhas costas e minha nuca. Segurei seu rosto acariciando de leve. Parecia que tudo ao nosso redor não existia mais, éramos só nós duas. Me afastei de novo para admirá-la. Os lábios um pouco inchados e as bochechas rosadas… Saori era tão linda. 
— Você é tão bonita. — Consegui falar em voz alta. Ela sorriu. Um sorriso doce e ingênuo, daqueles que faz ruguinhas aparecerem. 
— Você também. — Devolveu. 
   A realidade naquele momento era apenas um borrão. Eu já tinha lido inúmeras histórias de amor, das clássicas às contemporâneas. Sonetos detalhados sobre sentimentos de ternura e afeto; mas nenhum deles se comparava ao que eu sentia naquele momento. ‘’Tão impossível como tentar apagar o lume com neve é tentar apagar o fogo da paixão com palavras.’’ E ali, mergulhada em seu olhar amendoado, eu constatei duas coisas óbvias: eu estava apaixonada, e mais óbvio ainda, eu era lésbica. Nos olhos de Saori, podia ver estrelas ao meio dia. 

Estrelas ao meio dia. Onde histórias criam vida. Descubra agora