Capítulo Trinta e Quatro.

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     Ainda estava escuro lá fora, mas era manhã. Nem eu nem Miguel conseguimos
dormir naquela madrugada; ficamos com Thomas em seu quarto até ele cair no sono. Era doloroso não saber o que responder quando ele perguntava coisas como "E agora?". Nunca me arrependi tanto por algo que fiz, mas ao mesmo tempo que o arrependimento bateu, a tristeza e a raiva vinham junto. Odiava minha mãe, mas também sentia tristeza por ela, pelo que disse. Era confuso, não conseguia processar direito tudo aquilo, e imaginava que ela também não. Sendo realista, não tinha ideia que um simples coração pudesse fazer tanto estrago. No momento, pensava que, assim como Richard, existia de fato fora da literatura, aquela coisa de “falha fatal’’ ou ‘’fatal flaw’’; a nítida fenda escura que se estende e racha uma vida ao meio.
   Olhei para Miguel, ele parecia tão pensativo quanto eu. Não sei se pelo o que aconteceu de madrugada ou algo mais. Ele se sentou, encostou a cabeça na parede e soltou um longo suspiro. Me ajeitei ao seu lado, mas fiquei com o rosto virado para olhar para ele. 
— Sei que não parece, mas estou um caos! — Disse, ainda com os olhos fixos no teto. Sua linguagem corporal tão esgotada quanto a minha. 
— Ouvindo — sinalizei. 
— Isso tudo é muito novo para mim, sabe? 
— Se refere ao Evandro? — Perguntei meio que já sabendo a resposta. Óbvio que era, ele vinha agindo estranho quanto a este tópico desde a festa.
Ele virou o rosto para mim antes de falar.
— A gente se beijou, na adega. 
Dei um pulo da cama de choque. 
— Por que eu não vi isso?! 
— Acho que você estava com o Lucas lá fora, não lembro bem. — Ele fez um gesto banal com a mão, como se não fosse nada demais; o que me deixou indignada, foi a primeira notícia boa que ouvi em cinco horas.
— Conta isso direito. — Ordenei ao me sentar novamente ao seu lado. 
Miguel riu baixo e continuou. 
— Ele me chamou para pegar mais bebida, e disse: Verdade ou desafio? 
Tampei a boca para conter a animação.
— Meu deus que breguice! — Falei rindo. 
— Disse a garota que dançou música antiga antes do primeiro beijo. — Debochou. 
Contive o riso, realmente não tinha muita moral nesse quesito.
— Continua. — Falei. 
— Bom, eu escolhi verdade. Então ele me perguntou se eu ficaria com ele.
— E o que você disse?! 
— A princípio nada, porque sentia que minhas pernas iam falhar ali mesmo. Mas consegui murmurar um "sim". Depois disso, ele sorriu e me beijou. 
  Gritei baixinho e sacudi Miguel com empolgação, que respondeu com um sorriso amarelo, me fazendo perceber que ele não parecia tão feliz quanto eu. — Não tá feliz com isso? — Perguntei confusa. 
Ele respirou e jogou a cabeça para trás novamente. 
— Foi incrível. — Falou sem olhar pra mim, mas por mais que suas palavras fossem positivas, seu tom era quase doloroso. 
— Então qual o problema? 
Um pequeno silêncio se instalou até que ele falasse. 
— Beijar ele foi a confirmação de algo que venho negando a vida toda. Sempre pensei que se ignorasse o bastante, esses sentimentos por meninos iriam embora. Se beijasse garotas o suficiente eles sumiriam. 
Fiquei quieta um pouco, tentando interpretar o que ele disse ou que ele elaborasse o que quis dizer.
—  Estou um pouco perdida, está me contando que é gay? 
— Não! — Ele disse com uma risada, sincera desta vez. — Isso não é uma saída de armário, quer dizer, não que em algum momento precisaremos fazer isso um com o outro.
  Era verdade. Nunca tivemos esse tipo de relação em que escondemos alguma coisa assim, para ser preciso contar. Nós apenas vivíamos a vida juntos, as quedas por seja quem for vinham e não questionamos a sexualidade de ninguém. Era apenas nós, sendo nós. 
— Concordo — Falei com um sorriso. — Então, o que está me dizendo? 
— Acho que é mais um desabafo, por para fora o que sinto com alguém que confio. 
Segurei sua mão e acariciei gentilmente. — Sou toda ouvidos. 
Ele sorriu e continuou.
— Ver você com a Sá me deu vontade de largar tudo e explorar essa parte de mim. Me permitir mesmo estar com um garoto ao invés de ignorar todo e qualquer interesse que tivesse ou tive. E cacete… eu nunca me senti tão livre! Beijar ele foi como fazer todas peças se encaixarem, saca? 
Conseguia entender claramente tudo que ele falava. Era como olhar para os meus próprios pensamentos, só que em terceira pessoa. 
— E isso te deixa muito assustado porque não sabe o que vai acontecer agora e as consequências de tudo isso? — Chutei. 
— Porra, sim! — Ele exclamou, virando completamente para mim. — Evandro é tão confiante sobre isso, é assumido e parece não ter medo de nada. Eu acho incrível, mas também apavorante! Tenho receio de não ser tanto como ele e o afastar 

Joguei as mãos no ar. — Estamos no mesmo barco então, sinto o mesmo com Saori.
— O nome do barco é Titanic? — Levantou as sobrancelhas com ironia. 
Dei risada. 
— É, somos Rose e Jack LGBTs — Constatei. 
Meu amigo riu também.
— Dividiria a porta comigo, né? — Indagou ele. 
— Óbvio que não, chato do jeito que você é até o resgate chegar já teríamos nos matado! 
Miguel fez uma cara de chocado e indignado que me fez gargalhar. 
— Eu tô brincando idiota. Deixaria a porta inteira para você se fosse preciso. — Falei, o puxando para um abraço e dando um beijo em sua bochecha. Guél me apertou (com força como sempre) e também me deu um beijo. — Vamos superar isso juntos. Um defende o outro, certo? 
— Sempre.
Ficamos alguns segundos ali abraçados até Miguel falar de novo. 
— Na real, acho que seríamos os caras tocando violino enquanto o barco afunda. 
Soltei uma risada. 
— Substitui o violino por uma caixinha de som tocando Rita Lee, e aí sim seria a gente. — Devolvi. 
Miguel sorriu, como se uma chave tivesse virado em sua cabeça e se levantou, pegando o celular e digitando algo. Sorri ao entender o que ele fez e ao ouvir os primeiros toques, ele tinha  colocado ‘’Orra meu’’ para tocar. Então  fiz algo que a muito não fazia, agarrei a mão do meu amigo para dançarmos juntos. 
— Eu tô ficando velho, cada vez mais doido varrido! — Cantei fazendo caras e bocas. 
— Rockeiro brasileiro sempre teve cara de bandido! — Completou de volta, sorrindo. 
    Miguel me girou e depois usou minha mão para se girar também. Sempre amamos a parte do " Porque essa vida é muita louca e loucura pouca é bobagem!", então cantamos juntos. Enquanto Rita Lee cantava os últimos versos:"guerrilheiro, forasteiro" "Orra meu!". Miguel me levantava no ar, e ecoamos juntos a letra que decoramos depois de anos dançando no tapete da sala. Herdamos nosso gosto musical totalmente do meu pai. Seus discos foram nosso Spotify  por anos. Era uma das poucas coisas que eu me permitia pegar dele depois de sua morte. Não sei o porquê de termos parado com esse costume, então passamos as próximas horas assim, dançando músicas que éramos apaixonados desde pequenos. Passamos pela Elza Soares, Queen e Mamonas  Assassinas. Eu sempre chorava de rir em como Miguel sabia imitar o Dinho perfeitamente. ‘’Os verdadeiros amigos não só enxugam suas lágrimas, mas também perguntam o por quê delas.’’
   Por um segundo, consegui esquecer tudo que vinha acontecendo. Essa era a magia das memórias, elas te dão conforto e coragem para enfrentar o futuro. Não sei se me sentia tão corajosa, mas me sentia com menos medo.

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