Não faz muito tempo desde que o aquário apareceu em meu quarto, e com ele a possibilidade de uma conversa. A ansiedade me consome, não sei se vem com uma oferta de paz ou apenas um comunicado prévio de: "ei não vou te expulsar porque isso seria abandono de incapaz, mas saiba que também não te quero aqui!".
Não durmo a uma semana pensando nisso, a privação de sono vem me deixando doida. Sonho acordada, tenho fumado muito e frequentemente fujo para a casa de Lucas ou de Miguel de madrugada. Lucas vem bebendo muito também, ele não me diz o motivo então parei de questionar; apenas ficamos em silêncio e bêbados até o amanhecer, quando volto para casa e me arrasto com Miguel para a aula.
Não me lembro muito da maioria das conversas que tive com Lucas, estávamos bêbados ou chapados demais para isso. Mas uma eu me lembro bem e nunca esquecerei. Estávamos lendo um livro de poesia qualquer, eram duas da manhã.
— Você também tem a sensação de que vai morrer jovem? — Perguntei, enquanto passava a mão pelas folhas amareladas.
— Ah sim, tenho quase certeza de que não passo dos vinte. — Ele disse dando de ombros. — Na verdade, acho que vinte e sete, é com essa idade que morrem as lendas. — Ele sorriu de canto e deu dois toques no cigarro para tirar as cinzas. O esmalte preto já estava desgastado. Dei uma risada com o comentário e ficamos em silêncio durante um tempo, tudo que se podia ouvir eram tragadas e o som da bebida cara chacoalhando na garrafa de vidro.
— Sabe, acho que isso é mal de poeta. — Falou.
— Como assim?
— Vivem rápido, vivem de tudo para traduzir em palavras a vida. Os que não vivem, morrem cedo por não viver, mas escreveram para aqueles que não viveram. Consegue me entender?
Lucas estava bêbado, e eu com certeza estava também. A explicação não era muito clara, mas eu de fato conseguia entender.
— Mais do que eu gostaria. — Respondi com um suspiro e soltei a fumaça.
Saori está ajudando Brisa e Evandro com algo, então não nos vemos muito. O que deixa minhas tardes livres o suficiente para que eu pense demais, leia demais e seja negligente comigo mesma.
Não tenho comido muito, então decido ir até a cozinha, atrás de algo para aumentar minha glicose. Uma xícara de café, no caso. A segunda coisa que venho bebendo demais. Levo o que meu pai falava como uma ideologia de vida: Café é a droga legalizada pela sociedade para aguentarmos a vida.
Porém, para meu azar, minha mãe está lá também.Que ótimo.
Respiro fundo e entro no cômodo, me dirigindo direto para a garrafa de café, evitando o contato visual. Faço força para abrir mas a tampa nem se move. Tento outra vez e o resultado é o mesmo, na terceira vez uso todas as forças que tenho. Dou um passo para trás e sinto minha cabeça esquentar e minha vista escurecer. Perco as forças da mão por alguns segundos, ouço o copo cair no chão e quebrar com um barulho.
— Agatha! — Em algum momento minha mãe se aproximou e eu não percebi. — Você está bem?!
Franzo o cenho tentando recuperar os sentidos. Ela está falando comigo?
— Acho que tive uma queda de pressão — Falo com um pouco de dificuldade, piscando várias vezes, a visão turva. — Eu vou limpar isso, não se preocupe.
— Esquece isso, precisa se sentar. — Ela puxa uma cadeira da mesa e me ajuda. Me acomodo e respiro fundo. — Beba. — Minha mãe me ofereceu um copo de água. Aceito, ainda me sentindo balançada. Bebo e espero até o mal estar passar. Minha mãe me observa com cautela, parecendo preocupada.
— Achei que estivesse com raiva — Falo.— Estava — Responde enquanto pega o copo da minha mão. — Bom, não era exatamente raiva. Era surpresa e um pouco de decepção.
Olho pra ela com a testa franzida de raiva e me preparo para levantar, não preciso ouvir isso.
— Não! — Ela segura meu braço. — Não era decepção por você... — Ela enrola um pouco pra falar — gostar de meninas.
Me sento de novo, disposta a ouvir, ou pelo menos vê aonde isso vai dar.
— Olha filha, eu sei que te magoei. Não só aquele dia como todo esse tempo. Eu não soube lidar na hora, foi tudo de repente.
A interrompo. — Também não queria que soubesse daquele jeito. — Confesso e ela assente.
— De qualquer maneira, eu te peço perdão. Passei as últimas semanas pesquisando e assistindo vídeos para entender você e seu primo. — Noto o pronome masculino em sua fala ao se referir a Tom. — E quando eu o vi na sexta… — Ela respira tentando não chorar. — Ele estava um garoto tão bonito.
Dessa vez sou eu que tenho que segurar a lágrima.
— Eu não entendo tudo ainda, mas entendo que amo vocês mais do que qualquer coisa. Desculpe se fiz vocês duvidarem disso.
Engulo seco e travo a mandíbula.
— Não deveria ter dito aquelas coisas para você também, foram pesadas demais. — Consigo falar.
— Também não disse coisas gentis a você Agatha, não quis insultar seu pai.
A menção a ele faz a lágrima que eu segurava escapar.
— Por que… por que disse que eu cheirava como ele? — Perguntou, com medo da resposta.
Ela respira e hesita antes de falar.
— Agatha... seu pai era um homem com alguns problemas. O vício era um deles.
Não desvio o olhar dela, minha mãe engole seco pensando em como continuar.
— Bebia demais... — diz.
— Ele te fez algo? — Perguntou com revolta.
— Não, não! — Ela diz imediatamente. — Seu pai nunca levantou um dedo pra mim, pode ficar tranquila. Ele não era assim. Mas a bebida estava o desgastando sim, e desgastando nosso relacionamento também.
Respiro aliviada. Não sei o que faria se de uma hora para outra descobrisse que meu pai era um agressor. — Sua avó morreu bem antes de você nascer, mas ele ainda sentia muito a perda dela. A bebida era como uma válvula de escape, entende? E sentir seu cheiro naquele dia me trouxe memórias que não gosto de relembrar — Ela explica.
Sinto uma onda de empatia pela minha mãe. O vício pode destruir as pessoas à sua volta também, mesmo que de maneira não tão direta.
— Sinto muito por isso, mãe. — Falo sem ter muitas palavras.
— Está tudo bem agora, não se preocupe.
Assenti com a cabeça. Ficamos em silêncio por alguns minutos até minha mãe voltar a falar.
— Pode chamar seu primo? Preciso me desculpar com ele.
— Claro. — Respondo e me levanto com a ajuda da minha mãe.
Thomas também não sai muito do quarto, estava sempre com as luzes apagadas e música alta, às vezes surrupia alguns dos meus livros e volta para sua caverna, mal nos falamos.
Bato em sua porta, ele não responde da primeira vez, então bato novamente.
— Quem é? — Pergunta pelo lado de dentro.
— Eu. — Respondo.
Ouço Tom sair da cama e o som da fechadura destrancar.
— Fala. — Diz ele com a voz cansada, acho que estava dormindo, ou não dormiu.
— Pode descer? Amélia quer falar com você.
— E quem disse que eu quero falar com ela? — Questiona arisco.
— Tom... — Comecei. — Eu também não estava afim de falar com ela, mas dá uma chance. Não é bom viver nesse pé de guerra pra sempre.
Thomas olha para baixo, pensativo.
— Vai estar comigo? — Ele pergunta.
— Óbvio. Se ela falar algo maldoso, vou ser a primeira a te defender. — Asseguro e ele suspira, entrando no quarto para pôr uma camisa larga por cima do top esportivo curto que usava, antes de sair novamente.
Tom e eu descemos juntos. Minha mãe está sentada no sofá agora, também não parece relaxada. Nos sentamos de frente um pro outro.
— Obrigada por aceitar falar comigo. — Fala minha mãe, com um sorriso amarelo.
— Vamos vê por quanto tempo eu aguento. — Alfineta ele.
Minha mãe se endireita com a patada, limpando a garganta para falar.
— Eu queria começar pedindo desculpas, para você... — Ela termina de falar um pouco confusa, como se buscasse algo. O nome. Me toco que minha mãe não sabe o nome de verdade de Tom, apenas o nome morto. É estranho pensar nisso, na maioria do tempo o nome antigo nem sequer voltava à minha memória. Apenas quando era obrigada a utilizá-lo perto de Amélia.
— Por que você não diz seu nome para ela? — Sugiro, me virando para meu primo.
Ele me olha ainda cauteloso, mas assente.
— Thomas. Meu nome é Thomas. — Ele diz com convicção. Olho para minha mãe buscando uma reação negativa.
— É um nome bonito. — Responde ela levantando as sobrancelhas.
Depois do comentário Tom relaxa um pouco os ombros. Um silêncio cai antes de minha mãe voltar a falar.
— Eu já pedi desculpas para a Agatha, mas quero pedir a você também.
Thomas a fita, escutando atento. — Quero que saiba que eu te apoio e te amo muito, desculpe pelo jeito grosseiro que tive com você, vocês dois na verdade. — Ela se corrige.
Busco o olhar de Tom, ele não parece bravo. Resolvo falar.
— Perdão é uma coisa que se conquista. Podemos aceitar um perdão a longo prazo agora, mas vai ter que ser daqui pra frente, nas atitudes, que vamos vê se perdoamos de verdade.
Minha mãe suspira e concorda. Penso que a conversa acabou e estou prestes a sair quando ela começa de novo.
— Quero pedir mais uma coisa. —Thomas e eu nos entreolhamos com desconfiança. — Quero que comecem a fazer terapia.
— Que? — Disparo. — Não vou contar meus problemas para um estranho!
— Agatha... é importante terem a ajuda que precisam. E pode ser estranho no começo, mas vai ajudar. — Argumenta minha mãe.
Busco apoio de Tom mas ele não parece estar contra a ideia.
— Eu topo, acho que pode ser bom. — Diz dando de ombros.
— Até você?! — Acuso irritada.
— É... — ele procura uma palavra. — Novo, dizer isso, mas ela não está errada.
Travo a mandíbula e cerro o punho apreensiva. Sentar numa sala sozinha e me abrir com alguém que nunca vi na vida? Me parece um pesadelo completo.
— Não precisa decidir agora — Minha mãe me tranquiliza um pouco. — Posso marcar a consulta do Thomas, se ele topa. Mas você tem seu tempo para considerar. — Concordo com esse acordo. — Estamos entendidos, então? — Ela pergunta. Fazemos que sim.
Deixo Tom e minha mãe sozinhos na sala e subo ao meu quarto para pensar. Me jogo na cama com um pulo e analiso o aquário. O som da bombinha na água é relaxante. É um daqueles dias quentes de final de ano, que me fazem sentir uma ponta de inveja dos peixes, não precisam se preocupar com nada e estão sempre refrescados. Deixo minha mente ponderar sobre como deve ser não ter consciência da própria existência. Por exemplo, Epicuro dizia que: "O sono é o curso principal da natureza; ela o proporciona no início de cada dia e novamente no seu final. Quando estamos dormindo, não temos consciência de nós mesmos e de tudo. Mesmo se sonhamos, não importa. Somente quando estamos conscientes, experimentamos prazer e dor". Ou seja, não ter consciência de sua própria existência significa não ter dor. Viviam os peixes então, em estado contínuo de sono? Talvez eu quisesse ser assim, seria mais fácil, apenas não sentir nada. ‘’Dormir plutôt que vivre, dans un sommeil aussi doux que la mort…’’
Enquanto encarava os peixes, constatei que precisava mesmo de ajuda, e lembrei que Saori cítara uma vez que fazia terapia. Pego o celular e decido mandar uma mensagem. Felizmente ela não demora muito para responder.Sá ♥
Hoje, 16:30 pm.
Eii, está ocupada?Oie!
Tô tranquila, pq?Posso ir para aí?
Pode sim :)Chego em um minuto!
Dou um salto da cama e me levanto para trocar de roupa. Ponho um vestidinho leve verde e mexo no meu cabelo para dar volume. Me admiro no espelho e sinto que está faltando alguma coisa. Optei por um par de brincos pequenos dourados e um colarzinho de pequenas pérolas.
Nada mau.
— Tô saindo! — Grito ao descer as escadas.
— A onde? — Pergunta minha mãe, fazendo eu estranhar um pouco. Tenho que me acostumar com essa coisa de mãe presente. Mas não desgosto.
— Saori. — Respondo.
Minha mãe sorri com a menção do nome.
— Você poderia trazer ela aqui, para jantar ou algo assim. — Ela sugere.
Lembro que minha mãe acha que Saori e eu estamos namorando.
Que merda.
— É vamos ver. — Desconversei. — Tchau, mãe!
Parabéns, Agatha.
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Estrelas ao meio dia.
RandomAgatha sempre foi uma menina introvertida, vivendo em seu pequeno mundo coberto de livros, quadros e músicas que foram lançadas antes mesmo de ela sonhar em nascer. Mas quando uma garota punk de cabelo cruza seu caminho e a faz experimentar a rebel...