Capítulo Cinquenta e Quatro.

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       Era uma manhã agitada em casa, o dia da audiência final havia chegado. O dia que determinaria o final disso tudo. Recebi uma dúzia de mensagens dos meus amigos para demonstrar apoio, uma delas era de Saori. Não abri nenhuma, estou prestes a enlouquecer aqui. Minha mãe corria de um lado para o outro, fazendo ligações e separando documentos. Seus saltos, ainda que baixos, faziam um barulho irritante ao tocar a cerâmica do chão. Eu estava a beira de um colapso de ansiedade, e esse maldito som não ajudava muito a me acalmar.
  Tento me concentrar em ajeitar minha roupa; fomos instruídos a usar peças formais em tons escuros, então escolhi calças pretas de alfaiataria e uma blusa branca social que coloquei por dentro da calça. Foi realmente um desafio achar algo que não fosse curto, rasgado, estampado ou em cores claras; já que é isso que compõe 99% do meu guarda roupa.
— Pode me ajudar? — Pergunta Tom, se referindo a sua gravata. 
— Não sei dar esse tipo de nó — respondo. — Mas Amélia sabe. — Vou até a porta e chamo pela minha mãe, ela não responde de primeira, na terceira ou quarta vez ela aparece.
— Tudo bem aqui? — Ela diz, conferindo o ambiente com os olhos.
— Não sabemos dar nó de gravata — falo e Thomas balança a mesma em seu pescoço enfatizando. Está toda embolada e ele tem uma expressão um pouco constrangida. Seus ombros relaxam e ela vai até ele, pega o tecido com cuidado, cruzando as duas pontas, passando pelo meio e por cima. Tem algo em seus olhos, um tipo de afeição? Não me lembro se em outra ocasião a vi ter alguma interação assim com meu primo, ela parece ter percebido a mesma coisa.
— Eu odeio as circunstâncias do dia de hoje — ela termina a amarração e se posiciona de frente para nós dois. — Mas vocês estão uma graça nessas roupas.
Deixamos escapar um sorriso com o elogio. Era curioso que mesmo com momentos bem mais ‘’grandiosos’’ que aquele, era esses de simples calmaria que mais apreciava. O rosto gentil da minha mãe, Thomas tentando conter o sorriso radiante por usar terno pela primeira vez, meu coração sentindo que tinha uma família, um lar. 
   Já ouvi falar que não se pode sentir falta do que nunca teve, mas ali observando um momento como aquele, eu discordava totalmente de quem disse isso.

                          ☆☆☆

   As oito em ponto estávamos sentados em uma sala parecida com um grande local de reuniões. Thomas e eu no meio, mamãe e Andresa nas pontas. O juiz que está avaliando o caso só chegaria às nove, mas nossa advogada não queria arriscar atrasos. Às 08:20, Saori chega acompanhada de seu pai, odeio reparar em como ela está bonita em seu terno cinza escuro. Sinto um desconforto no estômago.
— Bom dia!  — Cumprimenta Yoshiaki com apertos de mão e um sorriso amigável.
— Que bom vê-lo aqui — mamãe diz, devolvendo o sorriso.
— Queria dar apoio a Saori, ela já é maior de idade agora, mas eu ainda quis vir. 
— E você fez muito bem! — Elogia Andresa. — Venha, sente.
Senhor Nobayashi se senta e Saori o segue. Tento não olhar para ela, mas consigo sentir seu olhar em mim. A atenção de todos é atraída para a porta, três homens entram acompanhados de dois policiais. Eles nos olham com nojo e tomam seus lugares, como se fossem reis se encontrando com a plebe suja. Sinto uma mistura de medo e raiva ao lembrar da última vez que os vi. Minha respiração acelera e sinto que vou vomitar. Thomas agarra minha mão e se levanta me puxando para fora da mesa.
— Onde vocês vão? — Ouço minha mãe perguntar. Nenhum de nós responde.
— Deixe-os, eles precisam respirar. — Diz o pai de Saori, impedindo minha mãe de nós seguir, imagino.
   Thomas e eu seguimos até a frente de um enorme vitral, onde ficam os filtros de água. Ainda sinto um aperto no peito, uma vontade avassaladora de chorar.  E como passar tudo de novo, achei que saberia reagir a isso, fantasiei mil vezes em minha cabeça. Mas não importa quantos caçadores um cervo veja, o quanto sonhe com isso, ele se assusta com o tiro. 
   Tento me recompor, controlar minha respiração quando noto o estado de Tom, ele parece centenas de vezes mais abalado que eu.
— Olha pra mim — ordeno, segurando seus ombros, tentando parecer firme. Ele vira o rosto, seus olhos pretos estão marejados e suas sobrancelhas franzidas em um arco triste. — Eles não podem nos machucar, não mais. Entendeu? Tem policiais lá dentro, estão lá por nós, não por eles. 
— A polícia não é exatamente nossa melhor amiga. — Responde.
— É verdade, mas eu ainda vou estar lá, e se for preciso, eu quebro até o juiz se isso significar te manter seguro.
    Ele me encara, analisa minha expressão e me puxa para um abraço apertado. Ficamos ali um pouco, ouvindo os batimentos e a respiração acelerada em sincronia, em uma tentativa desesperada de tentar encontrar abrigo no peito um do outro, como sempre fizemos. Uma voz nos interrompe: 
— Oi — reconheço de imediato, é Saori. — Fiquei preocupada com vocês.
Levanto o rosto para olhá-la, está segurando dois copos de água e tem uma expressão turbulenta.
— Está com sede? — Pergunto a Thomas. Ele se afasta do abraço e aceita um dos copos de Saori.
— Vou ao banheiro lavar o rosto. — Ele anuncia. — Pensa direito. — Ele sussurra no meu ouvido e se afasta.
   Volto meu corpo para a direção Saori, sentindo tantas coisas ao mesmo tempo que temo explodir.
— Você está com sede? — Diz e me oferece um dos copos. Penso um pouco, mas acabo pegando-o de sua mão. Me encosto no vidro e bebo goles grandes até acabar com todo o conteúdo.
— Obrigada. — Falo, ainda sem a encarar. Ela faz um gesto dispensando o agradecimento. — Não sabia se veria você aqui hoje. — Confesso.
— Essa briga também é minha. E mesmo se não fosse, eu viria pelo Thomas, eu viria por você.
   Me viro para ela, analisando seu rosto. Reparo em como seu cabelo cresceu, está um pouco abaixo do queixo agora e com as raízes grandes. Ela tem círculos escuros abaixo dos olhos, não tão escuros como devem realmente ser, foram cobertos com base facial. Não usa delineado, o que é uma grande raridade, Saori não sai de casa sem. As mãos estão limpas e brancas, não tem nem mesmo riscos de caneta colorida. Não tem pintado esses dias?
— Sei que não é o momento, mas eu queria muito conversar. — Murmura ela, a voz vacilante. — Vim evitando essa conversa a quase quatro dias, inventei diversos cenários para ela. Alguns me enfureço novamente, outro choro e recito todas as poesias mais bregas que conheço. Nos piores, não sinto nada. Mas agora que vai acontecer, não sei bem o que esperar. — Entendo se não quiser, mas eu realmente...
— Eu quero. — A interrompo no meio da frase. Chega de fugir Agatha. Saori abre a boca mas não diz nada, acho que nem ela sabe o que falar agora. Ela limpa a garganta antes de falar:
— Eu... me desculpa, é só o que consigo pensar agora. Me perdoa por não ter dito nada antes, fui egoísta e sei disso. — Continuo em silêncio, não tirando os olhos de seu rosto. — Eu fui babaca pra caralho com você, e não te culpo se não quiser mais olhar na minha cara. Não era minha intenção te machucar, eu apenas fiquei com medo de que se dissesse a verdade, você se afastaria de mim. Não tem noção de quantas vezes quis te contar, mas todo dia eu me apaixonava mais, e mais difícil era também de contar. — Ela fala rápido e ofegante, como se aquilo tudo estivesse entalado ali. — Me perdoa, você não é um passatempo Agatha, é a garota que eu gosto, sempre foi.
   Tanta coisa passa na minha mente que mal consigo selecionar o que refletir primeiro. Respiro fundo e percebo que talvez eu seja mais parecida com minha mãe do que penso. Me esquivo de conflitos e fujo quando não sei lidar com algo. Odeio ser assim, odeio mais ainda não conseguir dizer alguma coisa.
— Eu senti sua falta. — Consigo balbuciar.
Ela respira, tentando não chorar.
— Eu também, todos os dias. 
Me aproximo mais para encarar seus olhos. Estão frágeis e dolorosos, me sinto como um monstro por ser parte do motivo deles estarem assim.
— Eu posso ficar, se você quiser. Foda-se o Japão e a faculdade, se você me pedir, eu fico. 
Me viro rápido pra ela, sem acreditar no que acabei de ouvir.
— Que?! 
— Eu não quero me separar de você Ágatha, e não me arrependeria em momento algum disso.
   Fico atordoada com a proposta, quero gritar que sim, e quase faço. Mas sei que Saori não está pensando direito, ela vai se arrepender sim, é o sonho dela. E eu não conseguiria ser feliz ao seu lado sabendo que a impedi de realizá-lo. Sempre soube que Saori era um espírito livre, e prendê-la seria como dilacerar sua alma. Como prender um pássaro em uma gaiola, que mesmo bem cuidado, não pertence aquele lugar. 
— Quero que você vá. — Digo, ainda com meu coração implorando pelo contrário. — É a sua vida, quero que você viva. 
Deixo meu choro escapar e Saori me puxa para um abraço. Nós apertamos como se o mundo fosse acabar ali, como se pudéssemos sumir a qualquer minuto. 
— Eu te amo. — Sussurrou tão baixo que se fosse distraída o suficiente nem sequer escutaria. Sinto meu corpo inteiro queimar, e a vontade de desmoronar cada vez maior. É a primeira vez que escuto aquelas palavras vindo dela. — Não precisa dizer de volta eu…
— Eu também te amo. — Digo de volta. Saori se cala por alguns segundos e então me aperta ainda mais forte antes de afastar meu rosto de seu ombro, me puxando para um beijo. Sua língua invade minha boca, é acelerado e caótico. Não sei mais o que são lágrimas minhas ou dela, e não me importo com isso. Gostaria de me afogar naquele beijo, parar o tempo e reviver aquilo por toda a eternidade, sem nunca me cansar.

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