Capítulo Sessenta e Quatro.

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    O frio de Janeiro havia chegado na cidade. As árvores e as gramas que tinham um tom cobre, agora estavam verde escuro e húmidas. As nuvens tão escuras que bloqueavam a luz do sol durante o dia todo, era difícil até mesmo dizer que horas eram, pareceria que sempre era fim de tarde. Thomas estava deitado no gramado do cemitério comigo. Tinha passado a vir muito ali desde o velório de seu Antônio, pensava que estava perto dele estando ali. Eu já tinha ouvido as baboseiras que todos dizem para consolar pessoas em luto uma centena de vezes. Decorei as frases robóticas como: "ele está em lugar melhor, "ele descansou", "Deus sabe o que faz". A verdade é que nenhuma dessas merdas ajuda em nada, mas assentimos e por educação, dizemos obrigada. O tempo não cura o luto, você apenas se acostuma com ele, e entende que acabou e você precisa seguir sua vida.
"Pessoas mortas não sangram". Se você sangra, sente; isso quer dizer que você está vivo. E sangrar por Seu Antônio era um lembrete que eu estava viva e fui capaz de amar.
    Hoje era meu último dia na cidade, a última vez que poderia vir aqui em sei lá quanto tempo, e eu me sentia calma, estranhamente calma. Parecia que a energia tão tranquila de seu Antônio reencarnou em mim. Ou o trauma apenas leva um pouco da sua habilidade de sentir, eu não sabia mais. Mas estava determinada a ser feliz, por ele, pelo meu pai que por lutar de mais caiu, e por mim que não cairia da mesma forma. Me levantei da grama, tirando os pedaços dela que prenderam no meu cabelo. Acendi um cigarro(culpo Lucas pela mania), dei uma tragada profunda e então soltei, imaginando que era minhas preocupações se dissipando no ar junto com a fumaça. 
— Esse lugar não vai ser o mesmo sem você. — Thomas diz para mim, com um suspiro. 
— Não é para ser, acho que a graça é como vai ser, não é? Se fosse o mesmo para sempre se tornaria entediante. — Respondo dando mais um trago e olhando para o meu primo. 
— Acho que tem razão. — Tom aperta as mãos no moletom vermelho, meu moletom. Deixei que ele ficasse com algumas roupas minhas que gostasse e desde semana passada, ele não larga desse moletom. 
— Vem, temos que ir andando. Amélia vai me matar se eu perder o voou. — Digo, dando tapinhas com os dedos no meu cigarro para as cinzas caírem. Tom assente e se levanta da grama. Não disse adeus a seu Antônio, ele não estava mais ali, mas estava comigo, e eu sabia que viria junto para onde quer que eu fosse. 

                            ☆☆☆

— Pegou tudo? — Mamãe pergunta depois de abrir as malas pela milésima vez. — Seus documentos? Protetor solar? Agatha, você está levando casacos?
— Mãe. Tá tudo aqui, ok? — Eu digo segurando os ombros dela para que ela pare o segundo, então sorrio. — Eu vou ficar bem, lá eu compro mais coisas. 
Mamãe me devolve um sorriso triste, mas orgulhoso.
— Eu só fico preocupada...— seus olhos lacrimejam um pouco, e ela respira fundo. Antes que ela possa dizer algo, eu a puxo para um abraço, passando a mão pelo seus lindos cabelos crespos. — Justo quando começamos a nos dar tão bem...
    Eu suspiro e aperto o abraço. Entendo o que ela quer dizer, mamãe e eu passamos anos em pé de guerra, agindo como se não nos importassemos uma com a outra. Mas hoje vejo que não é verdade, o luto nos muda, e nos afeta de várias maneiras únicas. Não culpo mais minha mãe por tudo que aconteceu, ela errou como eu errei também, e eu já a perdoei por isso. Não esqueci, já que tudo que vivi ainda me afeta de algum jeito, deixou cicatrizes em nós duas e isso não dá para mudar. Mas eu a perdoei, não conseguiria seguir em frente sem fazer. Quando chegamos no aeroporto, já estão todos lá novamente, do mesmo jeito que estávamos quando Saori partiu, até mesmo senhor Yoshiaki veio se despedir.      
     Evandro e Miguel estão jogados em um banco, agarrados como cobras. Brisa está sentada no chão com Lucas, ela faz desenhos na mão dele, enquanto pela expressão, ele tenta não infartar. 
— Ei, gente. — Digo, quando chego, cumprimentando um de cada vez com um abraço. Mamãe e tom fazem o mesmo. — Estão aqui a muito tempo?
— Tempo o suficiente para eu considerar jogar o Lucas dessa escada rolante. — Diz Evandro, fuzilando Lucas com o olhar.
— Eu já pedi desculpa! Foi um acidente, eu fiquei hiperativo e derrubei seu café sem querer! — Ele se desculpa, parecendo exausto de explicar.
— Na minha blusa caríssima?! — Evan o acusa novamente.
— Calem a boca vocês dois, estão fazendo eu borrar meu desenho. — Brisa  reclama.
— E eu estou com dor de cabeça! — Miguel murmura, sem abrir os olhos.
    A briga boba me faz sentir nostalgia, vou sentir falta do grupo todo reunido, mesmo que apenas Lucas vá embora. Se saudade tivesse um som, seria o daquelas vozes. Se tivesse cheiro, seria o daquela manhã húmida. Se saudade fosse um momento, seria todos aqueles que vivi com eles.
    Eu rio e me sento no chão, Thomas deita com a cabeça no meu colo e sorri para mim, como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo para ele. Eu sorrio de volta. Miguel solta uma risada sem contexto algum, o que atrai nossos olhares.
— Tá rindo de que, maluco? — Pergunto, o fazendo rir novamente.
— Essa briga me lembrou quando o Evandro e o Lucas quase saíram no soco enquanto fazíamos o bolo que você comeu no piquenique do seu encontro com a Saori. — Ele responde ainda rindo e nos contagiando com a risada.
— Eu lembro disso, Saori quase enlouqueceu! Vocês pareciam duas crianças. — Brisa diz rindo.
— A culpa não é minha se essa caipora dos infernos é um saco! — Evandro xinga de brincadeira nos fazendo rir mais ainda. 
— Vou tatuar esse apelido, obrigda pelo carinho. — Lucas diz com um sorriso arrogante para Evandro, jogando um beijo para ele. Acho que isso é a coisa mais irritante sobre Lucas, ele não se estressa com ofensas que fazemos, ele sempre da um jeito de responder de um jeito charmoso e flerteiro que te irrita mais ainda. 
    O gatilho que Miguel puxou, nos rendeu uma hora inteira das típicas conversas de "lembra quando...". Amélia e Yoshiaki completamente horrorizados com as histórias, nos faziam rir mais ainda. Só ali percebi como meu ano foi mesmo inesquecível, no bom e no mal sentido. Tudo que eu vivi ali ia ter sempre um lugar no meu coração, eram histórias que eu iria contar com saudades para sempre. 

Passageiros do voou 125, Brasília para Rio de Janeiro, por favor comparecer ao portão de embarque. — A conhecida voz nos avisa nos alto falantes. 

— Então é isso. — Falo ficando de pé. Todos fazendo o mesmo movimento, nos entreolhando. 
Mamãe se aproxima, e me abraça mais uma vez, lágrimas em seus olhos, mas ela sorri. 
— Vai com Deus meu amor, toma cuidado e me liga assim que chegar tá bom? — Ela diz passando a mão no meu rosto com um sorriso. — Eu te amo, e curta muito essa nova etapa. Lembra do que já conversamos. — Ela me abraça novamente, mais forte, tenho que me segurar muito para não chorar.
Thomas pula no meu colo, me pegando tão desprevenida que quase caio.
— Eu te amo. — É tudo que ele diz antes de apertar o abraço novamente e descer do meu colo.
— Volto para o seu aniversário. — Digo para ele.
Senhor Yoshiaki também me abraça e sorri.
— Seja feliz querida, obrigada pelo tempo que passou aqui. — Ele sorri novamente. 
As despedidas continuam, mas meu coração dói mais ainda quando Lucas me olha esperando sua vez de se despedir 
— Então é isso... — Ele diz, com as mãos no bolso da jaqueta. — Eu vou sentir muito a sua falta, de verdade mesmo. Vou sentir falta até do jeito que você revira os olhos quando eu te arrasto para algum plano horrível e que provavelmente pode nos matar. — Ele ri e me puxa para um abraço, me fazendo rir, triste. — Obrigada por ter sido a irmã mais nova que eu nunca tive.
— Você também foi meu irmão mais velho, sempre será. — Eu digo, ainda abraçado nele. — Vou lembrar sempre de tudo que a gente viveu. 
— Eu te amo. — Ele sussurra no meu ouvido. — Só não conta pra ninguém que eu disse isso, acaba com a minha reputação. — Eu rio e o solto, deixando ele se afastar. Mas antes, sinto Lucas colocar algo no meu bolso, não tenho pressa de ver o que é. 
       Miguel e eu nos entreolhamos, quando Lucas vai se despedir de Bris. Ele se aproxima na intenção de falar algo, mas ela o silencia, colocando a mão na sua boca e o puxando para um beijo digno de novela. Ele arregala os olhos surpreso, mas depois se rende e os fecha, a puxando pela cintura para mais perto. Comemoramos com palmas, é como se finalmente a guerra tivesse acabado.
— Dá uma passada pelo rio enquanto estiver nessa viagem louca para me visitar. — Ela diz, com as mãos envolta do pescoço dele. Dá para sentir a conexão deles ali.
— Depois disso, eu tô considerando é me mudar pro Rio de Janeiro. — Ele diz rindo, e nos fazendo rir. Eles se beijam novamente e com muita relutância, se afastam. 

Última chamada para o voo 125, passageiros por favor comparecer ao portão de embarque. 

    Olho para todos ali, me sentindo profundamente amada e agradecida.
— Eu amo vocês, de verdade. Vocês são a família que eu sempre quis, e obrigado por tudo. — Eu digo com a voz embargada. 
    Miguel segura minha mão,  Brisa toma a outra, em sequência Evan entrelaça a de Miguel. E nós entramos assim no avião, juntos, como sempre. Ao me sentar naquele banco, no momento que o avião decola, eu me sentia uma sobrevivente, e também perdida como a criança que ainda parece que sou. Lembro dos versos da carta de seu Antônio e me sinto corajosa. Porque é assim que pessoas como eu conseguem viver a vida, com coragem. 
    Tinha decidido transformar toda a merda que passei em combustível, energia para alcançar a vida que eu merecia. Eu com certeza tomaria decisões ruins de novo, e passaria por dias terríveis. Mas era para isso que o combustível servia, para me lembrar que a vida é cheia de buraco e pessoas são filhas da puta. Mas eu não tinha que ser como elas ou ser o que elas esperavam que eu fosse. Essa é a minha vida, e eu iria vive-la da melhor maneira possível, e isso inclui passar pelos dias ruins. Eu costumava odiar mudanças, ter medo delas. Mas agora ansiava pelo diferente porque, o que é a beleza se não o desconhecido? O novo. 
Era o começo da minha própria trajetória, e eu era dona dela, não meus traumas, minha mãe ou meus amigos, eu. Aquele era o começo de uma vida nova, o mundo era todo meu, e eu não deixaria mais ninguém o tirar de mim.
"Our revels now are ended, these our actors, As I foretold you, were all spirits, and Are melted into air, into thin air;"

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