Tinha acordado mais cedo naquele dia, as últimas semanas foram um completo caos. Ninguém parava quieto, eu me matava de estudar para vestibulares e mal conseguia ver meus amigos, estavam igualmente atolados. Minha mãe passava a maior parte do tempo no telefone com nossa advogada Andresa ou no computador, pesquisando por maneiras de ajudar. Thomas e eu estávamos cansados de ir no fórum tantas vezes, era extremamente desgastante, mas gostava de pensar que era por um bem maior.
A manhã estava fria e calma; estava a caminho da minha primeira sessão de terapia. Depois da conversa com Saori me senti mais tranquila em relação a isso, mas ainda me sentia ansiosa. Tento me concentrar em coisas para me acalmar, como os vidros embaçados e as poucas gotas que por eles deslizam. Thomas está no banco de trás, dou uma olhada nele pelo retrovisor, seu cabelo está diferente. Mamãe autorizou que ele cortasse, então seus pequenos cachos naturais agora batem um pouco acima da orelha, o suficiente para fazer tranças mais soltas com jumbo, ainda que curtas. Em 1 ano ele pode começar o tratamento hormonal de acordo com o médico e a lei, Tom vivia tagarelando sobre isso, perdia horas e horas pesquisando sobre e me explicava sobre. Eu ficava feliz por ele, adorava como seu sorriso iluminava seu rosto sempre que tocávamos no assunto. Eu poderia matar qualquer um que tirasse isso dele outra vez.
Entramos na clínica e nos sentamos em um banco, aguardando enquanto minha mãe passava nossos nomes para a recepcionista. A moça nos conduz por um corredor, parando nas duas últimas portas.
— Podem entrar, suas psicólogas já estão à espera de vocês. — Comunicou a moça, com a voz calma.
Thomas e eu trocamos olhares.
— Vou estar logo ao lado. — Asseguro para ele, que sorri em resposta.
— Volto em uma hora para buscar vocês — avisa mamãe.
Respiro fundo e abro a porta.☆☆☆
Dou uma olhada na sala, não tem nada muito extravagante mas é aconchegante. Duas poltronas cinzas ficam de frente uma para a outra, no meio uma mesinha de centro marrom. Uma janela bem grande está atrás de mim e em uma das paredes posso ver uma estante recheada de livros e alguns enfeites. nada que me interesse, a maioria é sobre psicologia ou anatomia humana e auto ajuda. Nunca fui do tipo que lê esse tipo de livro, era mais do tipo que gostava de clássicos, fantasia, romance e tragédias. Adorava plots para cair da cama, enredos que me faziam anotar nas páginas e ficar obcecada por dias. Para mim, quanto mais um livro dilacerava minha alma, mais eu gostava.
— Bom dia Agatha, eu sou a doutora Marcela e vou ser sua psicóloga. — Diz com simpatia.
Marcela é uma moça jovem, não deve ter mais de 30 anos. Seus olhos cor de amêndoas e seu cabelo cacheado ressaltam sua cor de pele negra alguns tons mais clara que a minha.
— Sua primeira vez na terapia? — Pergunta, se sentando à minha frente e abrindo um caderno.
— É sim — respondo um pouco tímida. — Estou um pouco nervosa.
Ela sorri com doçura.
— É normal ficar nervosa, mas entenda que esse é o seu espaço. Você pode ficar do jeito que mais te faz sentir confortável.
— O que quer dizer? — Pergunto curiosa.
— Bom, tem pessoas que se sentem melhor conversando enquanto comem, outras preferem estar deitadas ou andando, você decide.
Penso sobre o assunto e ainda com vergonha, coloco os pés na poltrona.
— Vejo que entendeu. — Ela sorri. — Então, Agatha, você sabe por que está aqui?
Faço que sim em silêncio mas depois noto que é melhor falar em voz alta.
— Sim, sei.
— Consegue me dizer?
Hesito um pouco, odeio me lembrar desse tipo de coisa.
— Eu... — Tento mas não sai uma palavra sobre. — Desculpe.
— Está tudo bem, não há expectativas aqui. — Ela me consola. — Que tal irmos mais devagar. Por que não começa me dizendo o que gosta de fazer?
Assinto, me sentindo menos assustada.
— Eu gosto de escrever e de ler. E hum, de fazer doces.
O rosto dela se ilumina.
— Isso é ótimo! Aprendeu sozinha?
— Ah sim — respondo um pouco sem graça. — Minha mãe nunca teve oportunidade ou tempo de me ensinar, então aprendi com vídeo da internet.
Ela com a cabeça e anota algo. Daria tudo para ler aquilo.
— Ela parece ser um pouco ausente — deduz.
— Bem, ela é, ou foi…não sei bem. — rio constrangida. — De um mês pra cá a convivência melhorou um pouco.
Passamos a próxima hora apenas conversando sobre como a falta da minha mãe acabou afetando o jeito que eu enxergo o mundo. É curioso e estranho como ela me faz falar. Às vezes algumas de suas perguntas parecem tão bobas mas elas me levam a responder questões mais complexas. A sessão está quase no final quando Marcela me entrega uma folha em branco.
— Nosso tempo já está quase acabando, então tenho um dever de casa para você. Quero que me traga um desenho de sua memória de infância mais feliz.
Pego a folha de suas mãos e a dobro, não parece tão difícil.☆☆☆
— Como foi lá? — Pergunta minha mãe quando voltamos para o carro.
— Bem, eu acho. — Respondo.
— Thomas? — Ela o olha pelo retrovisor.
— Foi legal, a terapeuta é bem gentil. — Diz sorrindo. Ele parece animado, o que me deixa feliz também.
Meu celular vibra, é Saori me chamando para sair. Ela não cita mais ninguém na mensagem então sinto meu coração acelerar. Sá e eu já estamos ficando a um bom tempo, mas tirando o dia que nos conhecemos, nunca saímos sozinhas e a possibilidade me deixa eufórica e nervosa.
Pera... isso é um encontro?
— Pergunta rápida — me viro no banco para falar com Tom. Felizmente Amélia está com o som alto então não me ouve. — Se eu e Saori passarmos o dia juntas, apenas nós duas e mais ninguém, isso é...?
— Um encontro. — Diz sem hesitar.
Aí caralho.
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Estrelas ao meio dia.
AléatoireAgatha sempre foi uma menina introvertida, vivendo em seu pequeno mundo coberto de livros, quadros e músicas que foram lançadas antes mesmo de ela sonhar em nascer. Mas quando uma garota punk de cabelo cruza seu caminho e a faz experimentar a rebel...