Capítulo Sessenta e Dois

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Acordo com o pé de Miguel no meu rosto e metade de seu corpo quase em cima de mim. Dou um empurrão forte o suficiente para que ele vá pro outro lado da cama. Xingando para o vento, me levanto. Meu corpo todo dói, não dormi nem um pouco bem essa noite. Aprecio o gesto lindo de Miguel em dormir comigo, para que eu não me sinta só, e o amo por isso. Mas quantas vezes eu quis o asfixiar com o travesseiro toda vez que ele roncava ou se esparramava pela cama, quase me derrubando durante a noite, não pode ser escrito. 
     Ainda cansada, me arrasto para o banheiro, admirando o belo desastre que estou. É incrível como ninguém consegue ficar bonito usando essas toucas de cetim. Decido tomar um banho, parece o certo a se fazer agora. Sinto meu corpo relaxar assim que a água fervendo o toca, o sentimento não dura muito, logo lembro dos abraços quentes de Saori. 
Acabou Agatha, coloque isso na sua cabeça! — Falo para mim mesma. 
O que não adianta muito, já que, enquanto tomo café, meu celular vibra com uma mensagem de Saori. 

Cheguei

   Depois da mensagem, ela me manda uma foto sua em um carro, ainda usando a a mesma roupa do aeroporto. Um sorriso doce estampa seu rosto, daqueles que os olhos fecham e as covinhas aparecem. 
Que mundo cruel. 
Ao seu lado, consigo vê quem eu acredito ser seu irmão, dirigindo. Ele usa um grande casaco preto e touca. É frio nesta época no Japão? Ele parece sério, concentrado na estrada. Penso em mil e uma coisas para escrever, mas opto pelo básico, as declarações não fazem diferença agora. 

Que bom que chegou bem, diga oi para seu irmão por mim 💕.

Clico em enviar e largo o celular na mesa.
— Se torturando uma hora dessa da manhã? — Thomas parece brotar do chão, me fazendo pular com o susto.
— Caralho, Tom! Por que você não pode fazer barulho quando anda igual as pessoas normais?! 
— Não gosto de barulho. — Ele dá de ombros. — E você não respondeu minha pergunta. 
Com uma cara de cachorro abandonado, viro o celular e mostro a foto para ele.
— Uh, que merda... ela parece radiante. 
— Muito obrigada pela observação, se você não fala.. — Puxo o celular de volta. 
— Ok, desculpa. — Ele diz com as mãos pra cima. — Quem é esse do lado dela? 
— O irmão mais velho. — Respondo.
— Meus deuses, o senhor Yoshiaki tem um pincel no lugar do...
— Thomas! — Repreendo antes que ele possa completar a frase. — Ele tem quase idade para ser seu pai! 
Ele ri e pega uma xícara de café, desisto de me segurar e acabo rindo também. Então ficamos os dois ali, rindo até sair lágrimas dos olhos. É estranho como uma coisa tão idiota já me faz sentir um pouco mais leve. 

                           ☆☆☆

Passo o restante do dia arrumando minhas próprias coisas para minha viagem. Me dividindo entre atender ligações em grupo de Miguel, Evandro e Brisa. Todos nós compartilhando do mesmo sentimento de não saber o que levar. Decidimos que seria mais barato se dividíssemos um apartamento juntos, já que vamos todos para a mesma faculdade. Então passamos o dia de ontem inteiro até a madrugada de hoje procurando lugares; e depois de quase nos convencermos de comprar uma barraca e morar na porta da faculdade, achamos uma casa para alugar. Não era grande nem luxuosa, mas parecia aconchegante e melhor ainda, era barata. 
    Tinha escrito uma nova crônica, enquanto voltava de ônibus com Miguel, tínhamos ido comprar travesseiros de pescoço, para usar na viagem. Tínhamos o costume de andar bastante de ônibus quando crianças. Invetávamos os mais diversos jogos;o que mais gostávamos era o de contar histórias. Resolvi escrever sobre, não tinha título, mas era decente:

     O momento que o crepúsculo se torna avermelhado e suave, antes do pôr do sol, quando as folhagem ao redor se banham no laranja pacífico da luz, é denominado como hora dourada. Passara pelas estradas rurais no exato momento que tal feito se deu no céu. A locomotiva se balançava em uma dança intensa, pois seu par terreno era copulpso e selvagem, tal dança me levava junto, fazendo meu corpo reagir em sintonia mesmo sem minha permissão. O movimento se expandia por todo o local, tremendo cada átomo presente.
  Eu me perguntava a história de cada indivíduo presente ali, observando com atenção as sombras distintas que ainda se moviam pela dança pertinente da roda e do chão. Um moço de boina conversava animadamente com outro passageiro, outra moça se admirava em um espelho delicado. Gostava de criar histórias para eles, fantasiar comigo mesmo que a moça era uma rainha se embebendo de seu próprio reflexo encantado, e o senhor de boina já fora revestido de madeira. A viagem era sempre lotada, dando espaço e conteúdo para minhas criações. 
  Mas, meu maior questionamento era sempre o lugar que estavam indo, na verdade eu me perguntava até mesmo onde eu realmente queria chegar. Talvez, a grande graça seja essa, o desconhecimento do destino final, a ansiedade por esperar seu ponto de saída, sem saber direito quando chegará. E apenas deixar a mente divagar sobre para onde o restante iria, até onde iria. 
Acredito que algumas perguntas são mais instigantes, quando não respondidas. 
Ah! Meu ponto chegou, boa viagem a todos, espero que descubram o seus e que sejam agradáveis.

     Nessa viagem, aprendi que coisas acontecem de repente desde que os primeiros átomos se juntaram para formar o primeiro ser vivo e desde que me entendo por gente. Assim como de repente eu me vi sem pai e sem mãe em apenas uma única noite, de repente fiz o melhor amigo da minha vida, de repente uma garota de cabelo rosa girou meu mundo de cabeça pra baixo, de repente eu tenho uma nova família. E de repente, como numa vingança, uma velha conhecida retorna com seu frio. 
   Estou empacotando o restante das coisas para a faculdade quando minha mãe entra no quarto. 
— Preciso que sente-se. — Diz, pegando as coisas da minha mão. 
— Por que? — Questiono com medo da resposta. Minha mãe parece perturbada, seus olhos me trazem a tona lembranças trágicas. Fico dividida entre querer ouvir e ignorar seja lá o que ela vá dizer.
— Meu amor... — hesitante ela continua. — Eu sinto muito, mas o Seu Antônio faleceu há algumas horas. 
Sinto o mundo parar e encolher a minha volta. Mamãe está falando mais algumas coisas, mas não consigo escutar direito. 
— O Que?... Como? — Pergunto, me embaralhando nas palavras. 
— Os médicos não sabem direito, mas aparentemente ele estava muito doente há alguns anos.  
— Isso... — Sinto as lágrimas ameaçaram descer e a dificuldade em formar frases aumentando. — Isso não faz sentido, ele estava bem! 
— Agatha... ele era muito idoso...— ela começa a falar, mas não quero ouvir mais nada. 
A dor do luto é insuportável, sinto vontade de arrancar meu coração fora. É como perder meu pai de novo. Mas por algum motivo, não consigo chorar, tudo apenas doi.
— Filha, vem aqui. — Minha mãe diz, me puxando para um abraço, fazendo um leve carinho em meus cabelos. Tenho flashbacks do dia que meu pai morreu, e o sentimento é o mesmo. Encaro o chão, sem reação, enquanto minha mãe diz palavras de conforto. 
— Mãe, posso ficar um pouco sozinha? 
Ela assentiu em um jeito triste e então puxou algo do bolso. 
— A escola me pediu que te entregasse, eles acharam em meio aos livros dele. Estava endereçado à você. — Ela me entrega um envelope antes de sair e fechar a porta.
    Giro o papel nas mãos, na frente um desenho de uma flor roxa o decora, está escrito "Para Agatha Vasconcelos". Respiro fundo e o abro com cuidado. Dentro dele encontro uma foto que tirei com seu Antônio no primeiro ano, lembro que era o dia do idoso na escola e fizemos um trabalho que precisávamos tirar uma foto com nosso idoso favorito. Nesse dia comemos bolo e tiramos a foto. Sinto vontade de chorar mas não o faço. Além da foto uma carta cuidadosamente dobrada está lá.

Quinze de Abril de dois mil e vinte dois. 
Brasília, Distrito Federal. 

Queria Agatha, 

como começar esta carta? Se você está lendo isso significa que já não estou mais aqui para entregá-la, mas espero que ela chegue até você. Gostaria de agradecer a todos os momentos que vivemos juntos, a todos os doces e bolos que você me trouxe, a todas aulas que eu sei que cabulou para conversar comigo. Não querida, eu nunca acreditei que você estava passando mal. Quero que saiba que todo esse carinho foi inefável em vida, e não quero que chore por mim. Estou finalmente com minha amada Aurora e minha família e prometo que falarei muito bem de você para eles Você foi a filha que a vida me deu, e quero que aproveite sua vida o máximo possível. Seja corajosa e gentil. O mundo é seu, então nem por um segundo pense o contrário disso. Não estou mais aqui, mas estarei sempre cuidando de você. E quando sentir minha falta, quero que olhe para o retrato que tiramos, e se lembre de mim assim, sorrindo. Peço perdão também por não ter contado que estava doente, mas tudo fica tão colorido com a sua presença que eu me esquecia desse detalhe. Deixo para você minha casa e tudo que é meu. Quero que jamais se preocupe em não ter um lar, como aconteceu comigo e tantos de nós. Eu prometi que sempre teria um lugar para você, e estou honrando esta promessa. Agora, minha filha, é hora de você colorir a vida de outras pessoas, e iluminar a você mesma. 
                            

                                                                                     Do seu velhinho,
                                                                              que te amou muito,
                                                                               José Antônio Tocate.
                                   


    Quando termino a leitura, sinto as lágrimas brotarem nos meus olhos, meu coração dói como não doía a muito tempo. Tinha tanto que queria ter falado, que queria contar. Não consegui nem mesmo dizer que vou cursar letras, que vou morar com meus melhores amigos. 
  O luto é o preço que se paga por amar alguém. E mesmo consumida pela tristeza, fico feliz por ter amado seu Antônio, e ter sido amada por ele. Só queria que ele soubesse disso antes de ir.




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