17 - o peso do silêncio

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22 de outubro; 2024
AMÉLIA MARTINEZ

Três dias se passaram desde a crise de ansiedade. — três dias desde que eu mostrei minha invulnerabilidade para a Gabi. — três dias inteiros, e aqui estou, firme. Ou pelo menos, é isso que eu digo a mim mesma. Não há necessidade de alarmar ninguém. Tudo passa, não é o que dizem? O tempo cura tudo, e a vida segue em frente. Agora estou de volta à rotina. Acordo cedo, treino duro e finjo que está tudo perfeitamente normal. Funcionando. E isso basta. Deve bastar.

Os últimos dois dias foram como um filme, daqueles que a gente assiste sem realmente se envolver. Me pego sorrindo nas conversas, mas é como se eu estivesse vendo tudo de longe. As piadas arrancam risos automáticos de mim, enquanto minha mente permanece em algum outro lugar, protegida. É mais fácil assim. Ninguém precisa saber que, por dentro, talvez eu não esteja tão bem quanto pareço.

Hoje acordei antes do amanhecer. Dormir tem sido difícil, mas tudo bem. Se o sono não vem, eu treino. Coloquei os tênis de corrida e saí enquanto a cidade ainda dormia. O ar fresco da manhã me ajudou a manter a cabeça limpa, ou pelo menos a mantê-la ocupada. Corri até sentir os músculos queimarem, até a exaustão física ser maior que a mental. No fim, é só isso que importa: manter o controle. Não há espaço para cansaço emocional. Tudo tem que continuar rodando.

Cheguei ao ginásio antes de todos. Treinei sozinha, como sempre. Não havia motivo para esperar que alguém chegasse. O treino oficial só começaria mais tarde, mas eu preferia estar ali, me movimentando, me preparando, fazendo o que eu faço de melhor: me esforçar ao máximo, me empurrar além dos limites. Gosto dessa sensação de estar sempre na frente, de dar o máximo. Me sinto no controle quando estou assim.

As meninas começaram a chegar por volta das 7h, mas ninguém estranhou me ver ali antes de todos. Já se acostumaram. Amélia sempre chega primeiro, sempre se esforça mais. "É só o jeito dela", devem pensar. E é melhor que pensem assim.

Gabi foi uma das primeiras a aparecer. Ela me viu de longe e, mesmo com um sorriso, eu percebi o olhar de preocupação. Eu sou boa em fingir, mas ela é boa em perceber. Ainda assim, ela não disse nada de imediato, o que foi um alívio. Eu não estava pronta para uma conversa agora.

Gabi se aproximou, mas eu estava em um mundo à parte. Enquanto ela me cumprimentava, eu apenas acenei com a cabeça, tentando manter a imagem que construí ao longo dos últimos dias.

— Oi, Amélia. Como você está hoje? — disse ela, com aquele tom carinhoso que só ela sabe usar.

Mas eu não consegui responder como gostaria. O que eu realmente queria era gritar, deixar escapar toda a pressão que me envolvia, mas a máscara estava firme no lugar, e eu não ia deixá-la cair agora.

Gabi permaneceu em silêncio, me observando com aqueles olhos que pareciam ver através de mim. Então, com um gesto carinhoso, pegou em minha mão.

— Estou com saudades daqueles sorrisos gigantes seus — ela disse, em um tom baixinho.

Aquilo mexeu comigo. As palavras dela eram como uma corrente de ar que soprava sobre as paredes que eu havia construído ao meu redor.

Eu mordi o lábio, tentando desesperadamente manter a fachada, mas as primeiras fissuras começaram a aparecer.

— Estou bem — menti, com a voz trêmula.

O treino começou, e eu me perdi na rotina. Os movimentos se tornaram automáticos, como se meu corpo estivesse fazendo tudo por mim. Cada repetição era um passo a mais para longe do que eu realmente sentia, uma tentativa desesperada de controlar a tempestade que se formava dentro de mim. Mas, à medida que o tempo passava, a ansiedade começou a se acumular, como um balão prestes a estourar.

As meninas estavam rindo, conversando entre si, e eu tentava me juntar a elas. Mas, por trás do sorriso, havia um nó na minha garganta.

— Amélia, vem cá! Olha o que as outras equipes estão falando de você! — Gabi me chamou, e me esforcei para me juntar a elas.

As palavras de Gabi eram um convite a esquecer meus problemas por um momento, mas ainda assim, era difícil me livrar da sensação angustiante que estava me sufocando.  Ela apontava para o celular, mostrando uma breve matéria online que destacava minhas habilidades no esporte. A atenção era boa, mas o peso sobre meus ombros não diminuiu.

As meninas me parabenizaram pelo destaque, mas, por dentro, eu não conseguia me deixar levar pela felicidade momentânea.

— Obrigada, meninas — consegui dizer, forçando um sorriso.

O ritmo acelerado, as risadas, tudo parecia tão distante. Cada movimento exigia uma força que eu já não tinha. A sensação de estar presa, de estar sob vigilância, começou a crescer, e eu sabia que estava perdendo o controle.

Comecei a sentir a respiração falhar. Um frio percorreu minha espinha, e eu olhei em volta, tentando me ancorar na realidade. As vozes ao meu redor se tornaram um eco distante.

— Amélia, você está bem?— Gabi me observava com uma expressão que misturava preocupação e curiosidade.

Eu apenas forcei um sorriso, mas foi como se uma onda de água fria tivesse me atingido.

— Estou ótima, Gabi, só... só estou um pouco cansada. — Minha voz soou estranha, como se não fosse minha. Mas a verdade era que eu estava prestes a explodir. A pressão aumentava, o espaço parecia se fechar, e eu estava presa em uma caixa invisível, lutando para respirar.

Então, sem aviso, o mundo começou a girar. Os rostos ao meu redor se tornaram borrados, as risadas se transformaram em gritos distantes. Uma onda de calor subiu pelo meu corpo e, em um instante, percebi que não conseguiria mais segurar. Corri para o banheiro, tentando encontrar um lugar seguro, mas o caminho parecia interminável.

Cheguei lá e, antes que pudesse pensar em qualquer coisa, meu estômago se revirou. Eu me inclinei sobre a pia, e tudo o que eu havia tentado esconder, toda a pressão, toda a dor, veio à tona. O vômito parecia não ter fim, e enquanto eu lutava para recuperar o fôlego, a escuridão começou a me envolver. Em algum lugar, eu ouvi Gabi chamando meu nome, mas era como se estivesse longe demais.

Quando a consciência começou a escorregar, percebi que o controle que eu tanto busquei havia desaparecido. O chão sob meus pés se tornou instável, e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, a escuridão me engoliu. Desmaiei ali, sozinha, sem poder mais fingir que estava tudo bem.

A última coisa que ouvi foi o som da porta se abrindo, e a voz de Gabi, aflita e preocupada, chamando meu nome em um desespero que eu nunca quis ver nos olhos dela. E então, tudo ficou em

silêncio.

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