" Paz no front"

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Depois do episódio da "boa escola", que o General/Governador havia me colocado, eu estava em paz. Mamãe estava com saúde, trabalhando, e eu estava feliz. Mamãe me matriculou numa nova escola, e eu voltei a ser um menino normal. - Estudava, soltava pipas (papagaios), vida de menino normal. Aquele episódio de ter que defender a minha vida, ter que lutar, pra não morrer, já estava quase superado. Aquele quarto no Catumbi era muito legal. - A senhora portuguesa que ficou cuidando de mim, era uma dádiva dos céus. - Ela era uma boa pessoa. Me iniciou na cultura portuguesa. O primeiro bacalhau à Gomes Sá, que eu comi na vida, foi na casa dela. Os primeiros grãos de bico também. - Os doces... Pastéis de Santa Clara, aletria, fios de ovos. Ela fazia aquelas comidas e tinha o maior prazer em me servir. Aquelas batatas que a gente dá umas porradas nela... Esqueci o nome... Os bolinhos de bacalhau... Ela dizia: - "Vem cá ó puto, (puto é criança em Portugal), vem cá...-Ó pá, tu estás triste ? - Eu dizia: - Não tia, eu estou bem. Quando eu ia pra escola, ela dizia: - Ó pá tu estás muito mal vestido, este fato está mal... - Arrumas as algibeiras moleque. - E as músicas, os fados... Amália Rodrigues cantando a "Rosinha dos Limões", " A mouraria", Fernando José - "Seus olhos castanhos, de encanto tamanhos são raios de luz"... - Eu me comovia, ela também... Nós ficávamos ali, em transe, tristes com os fados. (Ela, talvez, com suas lembranças de Portugal, eu com as minhas lembranças também). Eu amei muito, aquela "titia postiça". Me levava pra todos os lugares com ela. - Vamos a Casa de Portugal, ó pá? - Vamos titia. - Vamos comer comida portuguesa em tal lugar? - "Tu queres ir?" - Eu quero tia...- Eu precisava tanto de amor. - Eu precisava tanto voltar a ser criança...- Quando mamãe chegava do trabalho, eu sentia a tristeza da titia... - Ela dizia: deixe o menino aqui, ó Maria, deixe ele dormir aqui. Eu a abraçava bem forte, e dizia, "eu amo muito a senhora, minha tia querida", (ela disfarçava, para eu não vê-la  chorando). - Tempos de muita paz no front. - Ciao, fui.

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