" Rango "

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 (Jornal Correio Popular, Campinas/Sp. - Matéria do dia 23 de setembro de 1990. -Autora: Maria Tereza Costa). - "Estudo prevê uso das Forças Armadas no País". - As Forças Armadas estão prevendo que terão de intervir para garantir a paz social e restaurar a lei e a ordem, e que isso deverá acontecer em função de dois problemas interligados: os cinturões de pobreza e miséria que envolvem as grandes cidades e a questão do menor abandonado. Esta previsão está no documento "Estrutura do Poder Nacional para o ano de 2001", elaborado pela Escola Superior de Guerra. e até agora com distribuição restrita a algumas autoridades, e sob o controle do Estado Maior das Forças Armadas. A Pastoral do Menor, da Arquidiocese de São Paulo, que teve acesso ao documento, está distribuindo cópias para, segundo a entidade, alertar a sociedade sobre as propostas da Escola Superior de Guerra. Oficiais da ESG se recusam a comentar o documento".  - RANGO -  João levantou-se às cinco da manhã, madrugada fria. Contou uns trocados, (que talvez desse pra comprar um leite "c" aguado e uns pães pra molecada). Separou o da condução. Saiu. Foi enfrentar aquela condução filha da puta e foi pensando em fome, desemprego e coisas tais. - O que mais impressionou João, foram os soldados, a rua estava cheia deles, com suas baionetas brilhantes. Ele, em sua ignorância nada entendia. Entrou no ônibus lotado, ninguém falava, estavam todos pensativos, sombrios. João não entendia porra nenhuma de greve, de nada. Ele só entendia de trabalho e dinheiro pra alimentar aquele "tantão" de bocas que tinha em casa.  A rua continuava cheia de militares. Chegando na fábrica, João se deu conta de que ali também haviam muitos soldados... Os operários estavam todos na porta, querendo saber, querendo entrar para cumprir o turno. - E o aviso: - Por ordem dos militares, todos deveriam retornar as suas casas., até ordem em contrário. - Os buchichos corriam solto, depois de tantas promessas, tantos peões sem emprego, passando fome...Ele nunca tinha se incomodado com essas coisas, afinal, sempre havia conseguido manter-se empregado.  Nem era com ele...Agora, era polícia por todos os lados, e todos que iam acordando, iam tomando consciência de que alguma coisa tinha mudado. - Toda população ficou sabendo que os tempos de promessas já eram. E quem fosse contrário, talvez pagasse com a própria vida, aquela vidinha de merda. Ele deu meia volta e foi para casa.  Os dias foram-se passando, ele em casa, sem porra nenhuma pra fazer... Ia até o bar, tomava uma cachacinha. A conversa era sempre a mesma. O país estava parado.  Gente estava morrendo que nem bicho. Estavam-se formando grupos de treinamento de trabalhadores famintos. Gente desesperada. E gente desesperada é pau pra toda obra, pra qualquer tipo de serviço. João tinha medo. Em casa já não tinha mais comida, as crianças choravam com fome.  Só os ricos tinham estoque de alimentos.  Ele tinha medo & fome. No bar, o pessoal já estava falando em saque & luta armada. Os mais afoitos, já estavam saqueando há tempos, mas era coisa desorganizada. Eles formaram um grupo, e o nosso João entrou.  Diziam que o esquema era simples: - Um grupo de seguranças ficaria na frente, e o outro grupo estouraria a porta e fariam o serviço. Agora: - Os caras da frente teriam que segurar a barra, de todo jeito, mesmo com o risco da própria vida.  Depois o butim seria dividido entre as famílias do quarteirão.  João foi escalado para a próxima missão, estava fudido mesmo, quem não arrisca não petisca.  Ia pintar um rango legal, ele tinha quase certeza. A mulher ia ficar super feliz. Ele não diria nada pra ela, ia fazer uma surpresa, quando chegasse com aquele "monte" de alimentos. Combinaram tudo no bar. Ele iria no grupo dos seguranças, levaria uma pistola velha e um pedaço de corrente de ferro.  A ordem era segurar o tranco lá fora, de qualquer maneira.  O problema era que ele não entendia porra nenhuma de tiros, ou de correntadas.  E a ordem era  segurar o pepino de qualquer jeito.  Na realidade, ele tinha medo de se cagar na hora, e picar a mula.  Deixando o pessoal se phudder lá dentro. Toda aquela gente boa, nem pensar!  Meia noite, o pessoal reunido, tudo passado e repassado.  O combinado era que ele ficaria com mais dois na frente, dois cearenses franzinos.  A kombi velha, roubada, lógicamente, ficaria em ponto estratégico, prontinha pra entrar em ação.  Zé do táxi, motorista experiente, ficou responsável pela retirada do grupo.  Foram à luta.  Zé encostou a kombi na miúda e desceram todos.  Zé deitou-se no banco da frente e ficou esperando, coração aos pulos.  Os seguranças se postaram em cantos escuros.  O pessoal da demolição começou o trabalho. - Sem muito barulho, dizia um, tudo bem, dizia outro. O pessoal entrou.  A kombi começou a ser carregada. a galera com medo, mas alegre, afinal era comida, depois de tantos dias de fome... - O nosso João ali, esperando que tudo termine, coração aos pulos, (literalmente), querendo relaxar... - Eis que pinta um carro de patrulha, da polícia, (que sempre aparece em hora errada).  Nosso João ali, paralisado pelo terror, sentindo uma dor no peito. E o calhorda do Zé do táxi resolve bater em retirada, deixando alguns ainda lá dentro. E os seguranças com o pepino pra descascar.  O medo das metralhadoras é intenso.  João reza pro pessoal vazar dali, mas já é tarde.  Zé do táxi vaza, deixando os os três seguranças, e os demolidores lá.  Descem dois soldados, da baratinha, o cearense do outro lado abre fogo, acerta um soldado, leva uma rajada no peito. O outro cearense atira sem parar, esgota toda a munição e cai baleado. João ali paralisado pelo medo, pelo terror.. Podendo fugir e sentindo aquela pressão no peito. Deixa cair a pistola, quer ar e não consegue aspirar. Vai perdendo a noção das coisas, saindo dessa para melhor.  Vítima de ataque cardíaco.  Viaturas aparecem, como que brotadas da noite, ambulância, para cuidar dos soldados. - "Os ladrões ja eram" diz o capitão, para o repórter. - Fala o vigia, (que fora encontrado amordaçado), falam todos & ninguém fala nada. - Fechando, diz o cinegrafista, fechando..

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