Assim que Bea me mostrou que livro estava a ler, depressa percebi que nos iriamos dar muito bem. Afinal, não era muito comum encontrar pessoas que gostassem de ler os mesmos livros que eu.
Sentia que, com ela, podia ser quem eu era realmente. Não teria de fingir ser uma miúda patética e ignorante, que só pensa em roupas e maquilhagens e rapazes. Bea era como eu, ambas não tínhamos nada a ver com os outros alunos daquela escola.
A conversa entre nós fluía bem, sem precisar de forçar nada. E eu, que desde que chegara aquela cidade nunca tinha feito um amigo ou se quer conversado com alguém daquela escola, dei por mim agora a gostar de conversar com ela.
Mas uma grande parte de mim receava estar a confiar na pessoa errada; eu tinha medo de estar a ser gozada por ela. E então, quando nos sentámos numa das mesas mais isoladas do refeitório, esperei pelo momento exato em que pudesse falar sinceramente com Bea.
E, mais uma vez, a conversa entre nós surgiu naturalmente. Pela primeira vez, pude falar com alguém sobre algo que me fascinava: os irmãos Bartori. Eram os únicos naquela cidade que me despertavam interesse. Não só pela semelhança óbvia entre nós: eramos ambos forasteiros e não nos dávamos com ninguém da cidade. Eles fascinavam-me pelo mistério que os envolvia. Eles não eram apenas uma família que veio viver para a cidade e que não se integraram devidamente entre as centenas de alunos que frequentavam esta escola. Eles eram mais do que isso. E, apesar das minhas suspeitas, eu não podia ter a certeza de nada. Preferia apenas observar os factos e refletir sobre eles.
E, ao longo da minha conversa com Bea, percebi que não era só eu que ficara fascinada com eles. Bea parecia muito interessada neles.
Ao princípio, pensei que fosse um simples interesse neles, mas depois percebi. Ela e Lorenzo trocavam olhares discretamente. Aliás, Lorenzo sabia disfarçar muito bem o seu interesse na aluna nova.
Mas a conversa entre nós as duas morrera e eu precisava mesmo de ter a certeza de que estava a confiar na pessoa certa. Hesitei em puxar o assunto, mas mais uma vez foi muito fácil falar com ela.- Hm sim, é que acho que me sinto bem aqui contigo – respondeu em voz baixa – Não sei explicar porquê, mas identifico-me muito mais contigo do que com qualquer outra pessoa aqui.
Sorri, olhando-a nos olhos e vendo um reflexo de sinceridade. E, ao mesmo tempo, senti-me surpreendida com a sua resposta. Obviamente que não esperava ouvi-la dizer aquilo. Normalmente toda a gente me achava estranha, reservada, desinteressante. Mas ela não, ela via o que mais ninguém conseguia ver.
Tal como eu via o seu lado mais escondido. Naquela cidade, todos a viam como o brinquedinho novo. Os rapazes olhavam para ela e apenas viam uma rapariga super gira e boazona, e muitos tentavam chamar-lhe a atenção. Já as raparigas, viam-na como uma miúda que veio do estrangeiro e, consequentemente, com gostos diferentes e que lhes podia ensinar as modas das grandes capitais, já para não falar de que lhe invejavam o corpo, a beleza, as roupas, os acessórios. Para mim, sendo atenta como costumava ser, era-me fácil perceber todo esse alarido que pairava à volta de Beatrice. Além de mim e de Lorenzo, mais ninguém tinha captado a essência dela.
Quanto a Bea, parecia nem dar-se conta de tudo isso. Mantinha-se reservada e afastada das pessoas porque tinha percebido logo que ali não podia confiar em muita gente. Eram todos coscuvilheiros e mesquinhas. Ela sabia que podia dar-se com as pessoas, mas sem muitas confianças.
E isso era o que nos aproximava, para além da literatura. Eramos as duas reservadas e de confiança, que não olhavam apenas para a superfície das pessoas.*
Já tinha dado o último toque há quase dez minutos quando saí do edifício escolar e, ao atravessar o parque de estacionamento, cruzei-me com os Bartori, que iam dentro do seu Mercedes preto a uma velocidade lenta, em direção ao portão.
Notei, através dos vidros do Mercedes, que Sandra ia sentada no banco detrás do carro e que, ao ver-me, lançou-me um olhar furioso.
Senti um arrepio percorrer-me o corpo todo ao sentir o seu olhar carregado em cima de mim. Quando desviei o olhar para os seus irmãos, Lorenzo observou-me com curiosidade. Procurava alguém, e pareceu ficar desiludido quando me viu sozinha.
Está à procura da Bea, concluiu o meu subconsciente.
Sorri. Era a primeira vez que via Lorenzo interessado em alguém.
Orgulhosa de mim mesma por, mais uma vez, o meu instinto estar certo, continuei a andar em passo acelerado, atravessando o portão da escola e dirigindo-me para casa.
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a herdeira
Vampir(história em pausa) Uma casa no meio da floresta, fechada há 28 anos. Uma biblioteca que esconde um cofre. Um sótão fechado à chave. Uma floresta onde acontecem coisas estranhas. Dois desaparecimentos e uma morte suspeita. Uma história com 50 anos...