11 - Lorenzo

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Subi para o terraço da casa de Bea e aproximei-me da porta envidraçada do quarto dela. Bati levemente no vidro para lhe chamar a atenção e ela voltou-se, um pouco assustada. Ou nervosa. Veio abrir a porta e encarou-me com os olhos arregalados. Percebi que estava realmente nervosa, não sabia o que me dizer.
Ela não precisou de dizer nada para eu perceber no que ela pensava. Ela sabia. Ela já sabia o que eu era. Eu vi no olhar dela que ela tinha medo.
Fiquei petrificado sob o olhar pesado dela. Não sabia o que fazer, ou o que dizer. Eu tive medo naquele momento. Tive medo do que ela pudesse fazer, do que ela me ia dizer.
Não sei quanto tempo passámos ali, frente a frente como se fossemos estátuas.
Passou uma rajada de vento, entrando pelo quarto e atirando algumas folhas ao chão. Isso fez-nos reagir e Bea deu-me espaço para entrar no seu quarto sem dizer qualquer palavra.
Passei e esperei que ela fechasse a porta do terraço e viesse ter comigo.
Sentámo-nos os dois na cama, com alguma distância entre nós, mas segundos depois ela levantou-se outra vez e andou um pouco pelo quarto, abstraída. Percebi que estava realmente nervosa, estava a tremer.

- Eu liguei-te porque precisava mesmo de falar contigo... - murmurei, demasiado incomodado com o silêncio dela.

- Eu também preciso de falar contigo - disse ela, com a voz trémula - Eu... li o diário da minha avó e... e descobri algumas coisas...

Engoli em seco. Se o meu coração ainda batesse, de certeza que acelerara tanto ao ponto de parecer querer explodir.

- O meu... pai, ele contou-me algumas coisas - disse-lhe - É sobre isso que eu quis falar contigo, há umas coisas que...

- Que preciso de saber?! - interrompeu-me bruscamente, assustando-me - E vais começar por onde? O que é que me vais contar primeiro? Que és um vampiro?! Porque és, não és? O teu pai chama-se John, certo?! Foi a ele que a minha avó ajudou na floresta, não foi?!

Ouvi-la dizer tudo em voz alta foi como uma estaca de prata a espetar-se-me no peito. E o que me custava mais nem era ouvi-la dizer a verdade em voz alta, mas sim ouvir o medo e a censura na voz dela.

- Por favor... não me mintas nem me escondas nada - pediu, numa voz mais calma - Eu preciso que me digas que não estou a enlouquecer e que tudo isto está mesmo a acontecer.

Não consegui logo dizer alguma coisa, a minha primeira reação foi apenas confirmar com um aceno de cabeça - É verdade... a tua avó ajudou o meu pai quando ele foi perseguido por um caçador... e apaixonaram-se.

Ela assentiu, parecendo... aliviada, por ouvir-me dizer o que ela já sabia.

- Suponho que também saibas do resto - disse.

- Sim, sei que o meu avô tentou matar o teu pai... - hesitou - E que a minha avó o defendeu e matou o meu avô.

Eu não podia imaginar o que ela estaria a sentir naquele exato momento. Saber que a avó traiu e assassinou o marido? Era um choque demasiado grande. Eu próprio tinha ficado chocado quando John me contou mas nada disso se compara à dor que Bea estaria a sentir.

- Parece que temos mesmo de dar razão ao professor de História - sorri ironicamente, sem a olhar - Afinal parece que a história se repete mesmo...

- O que é que queres dizer com isso? - o ar confuso dela deixou-me a mim confuso.

- O teu pai... e o teu irmão, e nós os dois... - murmurei, mas à medida que eu falava a confusão tornava-se mais explícita na cara dela, assustando-me - Tu não sabes?

- Não sei o quê? - a voz dela soou espontânea, sem transparecer qualquer tipo de emoção.

Só então me lembrei dos documentos que trazia nas mãos. Eu ia pronto para lhos mostrar, convencido de que ela, tal como descobrira a verdade sobre os avós, também tinha descoberto o que aconteceu ao pai. Mas acabava de me aperceber que me tinha precipitado e que afinal Bea não tinha levado tão a fundo as suas investigações.
Como é que eu lhe ia dizer que Alonso matara o pai?

- Lorenzo! - quase gritou - O que é que me estás a esconder?!

Respirei fundo. Levantei-me, determinado a abrir o jogo e contar-lhe tudo. Ela tinha o direito de saber a verdade.

- O teu pai não adoeceu... - comecei, apanhando-a de surpresa - Ele foi atacado por um vampiro... e transformado. E... o teu irmão matou-o.

Aquela notícia caiu-lhe que nem uma bomba. Podia ouvir nitidamente o seu coração, que abrandou tanto que eu temi o pior. Nem me tinha apercebido bem do que estava a acontecer, quando dei por mim já a estava a segurar nos braços e a levá-la até à cama, ajudando-a a sentar-se.
Tinha sido um choque tão grande que quase desmaiara.
Quando ela recuperou o equilíbrio e deixou de ver tudo a andar à roda, suspirei de alívio e sentei-me ao seu lado.

- Como é que isso aconteceu? - murmurou ela, ainda a recuperar do incidente.

- Não sei como é que o teu pai foi atacado, nem porquê. Mas as transformações nem sempre correm bem. Quando uma pessoa é transformada, há duas hipóteses, ou corre tudo bem e torna-se vampiro, ou pode não conseguir sobreviver e passados alguns dias de sofrimento, de dores, acaba por morrer - expliquei, com a sensação de que era demasiada informação para ela receber naquele momento - No caso do teu pai, correu mal... O corpo dele rejeitou o sangue de vampiro, e o teu pai adoeceu gravemente, ia morrer.

- Disseste que o meu irmão o matou? - notava-se que ela estava muito confusa e perturbada.

- Sim... - murmurei, entregando-lhe os documentos que John me deu - Estes são os documentos não oficiais da morte do teu pai. O teu pai, no hospital, foi tratado por um médico amigo do meu pai, que sabe do nosso segredo e o guarda. Foi esse médico que tratou de tudo, alterou o documento original para que ninguém soubesse da verdade.

- Assassinato... - leu em voz baixa numa das folhas que lhe entreguei - O meu irmão matou-o?

- Foi o teu pai que lhe pediu - expliquei, indicando-lhe uma folha escrita e assinada com a letra de Pietro Modigliani, o pai dela - Ele pediu ao filho que o matasse para acabar com todo aquele sofrimento.

Ela leu a carta do pai, deixando cair algumas lágrimas. Senti-me mal por ela, por saber de toda a verdade daquela forma.
Passou os olhos pelos outros documentos e depois respirou fundo, pousando-os ao seu lado e limpando as lágrimas.

- Desculpa... - murmurei, sentindo um peso enorme na consciência.

- Não! Não peças desculpas! - exclamou - Obrigada por me teres contado a verdade. Mostraste ser mais leal que o meu próprio irmão que me andou a esconder tudo e a fazer de mim parva.

Ela levantou-se e começou a andar às voltas pelo quarto. Deixei-a descarregar a raiva e a frustração sem me intrometer, sem dizer nada, porque ela precisava mesmo de o fazer, precisava de assimilar tudo o que lhe estava a acontecer.
O meu relógio de pulso marcava as três da manhã quando ela parou e ficou a observar-me.

- E o que é que tu querias dizer quando te referiste a nós os dois?

Aquela era a última pergunta que eu esperava que ela me fizesse naquele momento. E aquele não era o melhor momento para lhe admitir o que sentia por ela. A Bea acabara de ouvir a verdade sobre a morte do pai, que a avó matou o avô e que o irmão lhe andava a esconder tudo isso. Ela tinha mais com que se preocupar, o que eu sentia por ela podia esperar.

- Nada, não... - murmurei, atrapalhado - Esquece isso, não é nada de importante, depois falamos disso. Agora tens coisas mais importantes com que te preocupar...

- Não - disse ela, com uma voz determinada - Não, não tenho. Vou confrontar o meu irmão, sim, mas depois. Agora, neste momento, tenho mais com que me preocupar.

Isso sim, assustou-me.

- O que é que queres dizer com isso? - gaguejei, olhando-a nos olhos.

- Quero dizer que agora temos de falar sobre ti.

E isso não me agradava. Falar sobre mim? Ela já sabia a verdade sobre mim, já sabia o que eu era. O que é que havia mais para falar?
Para minha surpresa, ela veio sentar-se ao meu lado, bem perto de mim. Estava calma, estranhamente calma. Senti-me a ficar ainda mais nervoso.

a herdeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora