Ouvi o carro de Sandra a estacionar na garagem. Segundos depois, ela entrou em casa apressadamente e subiu para o seu quarto, pousando um livro e a sua mala em cima de uma cadeira.
Fui ao seu encontro e encontrei-a sentada no chão, ao pé da porta do seu quarto. Sentei-me ao seu lado e fiquei em silêncio.- Encontrei a tua humana de estimação – refilou ela – Cruzámo-nos na livraria.
Não esperava que ela puxasse o assunto de Bea, e senti-me ansioso quando ela se referiu a ela.
- Falaram? – perguntei instantaneamente.
- Um pouco – assentiu, continuando a fitar a parede oposta – E acho que fiz asneira...
- O que é que fizeste?! – reagi, temendo o pior.
- Calma – pediu, numa voz calma mas inquieta – Ela está bem. Mas acho que ela percebeu que eu estava estranha...
- Estranha? Como assim? – eu não estava a perceber nada e aterrorizava-me a ideia de Sandra se ter revelado.
Ela suspirou, esfregando as mãos uma na outra.
- Quando eu entrei, ela não me viu e foi contra mim e deixou cair os livros que levava nas mãos. Eu reagi inconscientemente, não fingi perder o equilíbrio com o embate e apanhei os livros antes mesmo de eles caírem ao chão... Ela ficou meio atordoada com o embate e ao início não se apercebeu de nada, mas eu vi nos olhos dela... A Bea percebeu que alguma coisa não estava certa. Ainda por cima, eu quase me descontrolava. Ao irmos uma contra a outra, a proximidade entre nós atordoou-me... Depois, quando falámos, eu tentei disfarçar toda aquela atrapalhação e acho que fui simpática demais, acho que ela percebeu...
Levei as mãos à cara, frustrado com aquilo. Mal conseguia perceber como é que Sandra foi pôr tudo em risco, logo ela que estava constantemente a chatear-me e a avisar-me dos riscos que eu corria ao aproximar-me tanto de Bea.
- Desculpa Enzo... Não queria que isto tivesse acontecido – murmurou ela, parecendo bastante preocupada com as possíveis consequências do que acontecera – E há mais...
- O quê? – quis saber, já preparado para qualquer coisa.
- Os livros que ela foi comprar à livraria eram de lendas e histórias desta zona... Histórias da cidade, contos e lendas que surgiram aqui...
- Porque é que ela haveria de procurar livros sobre a história desta cidade? – pensei em voz alta.
- Ela disse-me que simplesmente gostava de ler e que, já que teve de vir viver para cá, gostava de saber a história da cidade... - contou Sandra – Mas sinceramente eu não acreditei nela. A resposta dela foi quase instantânea, uma resposta automática...
- Como se ela não quisesse dizer a verdade... Pensou numa explicação plausível para o caso de alguém começar a fazer perguntas... - completei o seu raciocínio – Nesse caso, por que razão ela estará assim tão interessada em pesquisar sobre esta zona?
- Ela está desconfiada – concluiu Sandra, levantando-se e caminhando até ao outro lado do quarto – Ela já percebeu que se passa alguma coisa fora do normal.
Também eu já estava levantado, andando de um lado para o outro, procurando insistentemente uma explicação lógica para tudo aquilo.
- Temos de falar com John, pode ser que ele saiba o que fazer... - lembrou a Sandra, encarando-me.
Precipitámo-nos para a porta, à velocidade da luz, e em dois segundos já estavamos a entrar no escritório de John.
- Não sei – respondeu ele antes de conseguirmos dizer fosse o que fosse; como era óbvio, ele ouvira a nossa conversa – Mas venham aqui, vejam o que eu descobri.
Só então reparei: John estava mergulhado num monte de papéis, esquemas e apontamentos, espalhados pela enorme mesa.
- O que é que estás a fazer? – perguntou Sandra, caminhando na sua direção, seguida por mim.
- Estive a analisar a árvore genealógica de Beatrice – explicou – Eu já andava desconfiado disto desde que ela e o irmão chegaram à cidade, mas tentei sempre acreditar que podia ser só uma coincidência...
Observei os papéis e os esquemas, tentando perceber o seu raciocínio e o que ele realmente descobrira, mas em vão.
- Desculpa, mas estavas desconfiado do quê, ao certo? – perguntei, impaciente.
- Em 1967 eu conheci a avó dela, Rosa Albuquerque – disse ele, com uma ponta de orgulho na voz, mostrando-nos uma fotografia bastante antiga, a preto e branco, que apresentava uma senhora na casa dos trinta anos, bastante bonita – Na altura ela tinha 34 anos e era uma mulher incrível...
- É a avó da Bea? – Sandra estava transtornada – Como é que a conheceste?
- Já foi há 50 anos, vocês ainda não estavam comigo... - começou a explicar, com os olhos a brilhar – Eu estava a caçar, aqui na floresta... e fui perseguido por um caçador. Atingiu-me com balas de prata em vários sítios do corpo. Foi a Rosa que me salvou...
- Salvou-te? Como? – perguntou Sandra, pasmada.
Fixei o olhar em John, que suspirou.
- Ela... não era normal. Ao início também não percebi o que estava a acontecer. O caçador passou por nós sem nos ver, continuando a correr pelo meio das árvores, à minha procura. A Rosa estava bastante calma, aproximou-se de mim para ver como estava – contou, embrenhado no passado – Eu não estava nada bem, enfraquecido com a prata... Ela não tinha medo, ajudou-me a levantar e arrastou-me pela floresta... Levou-me para sua casa e ajudou-me, extraiu-me as balas e deu-me um pacote de sangue para eu me alimentar.
- Mas... disseste que ela não era normal... Como é que o caçador passou por vocês e não vos viu?!
Sandra partilhava da mesma indignação que eu sentia naquele momento. Seria possível que...
- Sim – confirmou John ao analisar a minha expressão – Rosa possuía... poderes especiais. Era o que os humanos chamam de bruxa, feiticeira...
Sandra arregalou os olhos, apanhada de surpresa. Eu não conseguia ter qualquer reação. Não queria acreditar no que John acabava de contar. Como é que era possível que Bea estivesse tão ligada a nós?
- Tenho pena que Rosa tenha morrido... Ela não merecia ter sofrido tanto com o cancro... não merecia ter acabado assim... - murmurou John, parecendo desolado com a notícia.
Pousei a minha mão no seu ombro, num gesto de consolo, e ele assentiu, recuperando a consciência.
- Mas as novidades não ficam por aqui... - declarou, pondo em cima da mesa algumas fotografias aterradoras de um homem com ferimentos graves na zona do pescoço, e um documento qualquer.
Quando peguei no papel, percebi que era uma declaração de óbito de um tal de Pietro Modigliani.
O pai da Bea.- Morto por vampiros – murmurei, sem consciência do que tinha nas mãos.
Sandra aproximou-se de mim, para também poder ver o documento.
- Pior do que isso – disse John – Não foi o ataque dos vampiros que o matou.
Passei os olhos pelo resto do texto, obrigando-me a compreender e a acreditar no que este dizia.
- Assassinato?! – exclamou Sandra.
- Morto pelo próprio filho... - murmurei, sem me aperceber de que estava a falar em voz alta – O Alonso matou o próprio pai...

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a herdeira
Vampire(história em pausa) Uma casa no meio da floresta, fechada há 28 anos. Uma biblioteca que esconde um cofre. Um sótão fechado à chave. Uma floresta onde acontecem coisas estranhas. Dois desaparecimentos e uma morte suspeita. Uma história com 50 anos...