06 - Lorenzo

24 11 1
                                    


Ouvi-a bater com a porta do quarto e começar a chorar. Respirava com dificuldade, parecia estar irritada, furiosa.
Senti uma enorme vontade de a abraçar e acalmá-la. E também gostava de perceber o que se passava com ela. Eu não era o único a guardar segredos e interessava-me saber o que é que a atormentava tanto, para a tentar ajudar.
Andei de um lado para o outro no terraço, mantendo-me afastado da porta do quarto dela para que ela não me visse. A minha ideia era bastante arriscada e ao mesmo tempo estranha, e sabia que, se a minha família soubesse, iriam chatear-se comigo, mas acabei por saltar do terraço para o chão e correr até à porta de entrada de casa de Bea, tocando à campainha.
Já tocava pela segunda vez quando a ouvi descer as escadas todas até ao rés-do-chão, com uma certa hesitação.
Segundos depois ouvi-a a destrancar a porta e a abri-la, encarando-me surpreendida.

- O que é que fazes aqui?!

Os seus olhos estavam vermelhos, comprovando que esteve a chorar.

- Hm o meu pai comentou comigo que o teu irmão ia fazer o turno da noite e como sei que tu só vives com ele... pensei que quisesses companhia... - sorri, envergonhado, temendo que ela me achasse ridículo e me fechasse a porta na cara.

Em vez de responder, ela deu-me espaço para entrar e assentiu, autorizando-me a passar. Depois fechou a porta e ficámos quietos, sem falarmos. Estava a ser muito constrangedor.

- Estás bem?

- Porque é que perguntas? - a sua voz estava trémula.

- Estiveste a chorar... - respondi em voz baixa, aproximando-me dela - O que é que se passou?

- Nada, não quero falar disso - respondeu logo.

Conduziu-me ao andar de cima, para a pequena sala que ficava em frente à biblioteca.

- Como é que o teu pai sabia que o meu irmão ia trabalhar a noite toda no hospital? - perguntou.

- O meu pai também é médico - expliquei.

Ela assentiu e sentámo-nos no sofá, sem falarmos. Ela parecia muito abatida, como se algo a atormentasse constantemente.

- Não precisavas de ter vindo até aqui - disse ela, sentindo-se obrigada a dizer alguma coisa - Eu ficava bem, já estou habituada a estar sozinha.

- Hm se quiseres eu posso ir-me embora... - respondi, começando a sentir que a minha ideia tinha sido realmente estupida.

- Não, não precisas de te ir embora! - exclamou, meio assustada - Eu... até prefiro ter companhia.

*

- Tens a certeza que não queres comer nada? - perguntou ela enquanto metia no forno uma pizza.

- Sim, eu já jantei - ri-me.

- Pois, eu ainda não... Distraí-me aí com umas coisas e nem me lembrei do jantar.

Sentei-me numa das cadeiras à volta da mesa e fiquei a vê-la tirar uma garrafa de Ice Tea do frigorífico.

Respirei fundo, talvez para arranjar coragem para começar a fazer perguntas - Então e só vives mesmo com o teu irmão?

- Sim - respondeu - O meu pai morreu há cerca de três meses.

Assenti, lembrando-me perfeitamente de ter lido isso no seu diário - E a tua mãe?

Ela pousou a garrafa em cima da mesa, juntamente com um copo, e sentou-se, com uma expressão séria mas não muito surpreendida, provavelmente já esperava que eu, mais cedo ou mais tarde, lhe perguntasse.
Mas o seu silêncio prolongou-se tanto que cheguei a pensar que ela não me ia responder.

- A minha mãe e a minha irmã desapareceram - disse ela em voz baixa, sem levantar os olhos do tampo da mesa - Cerca de duas semanas antes do meu pai morrer.

- Desapareceram? - estranhei aquela resposta muito vaga - Desapareceram como?

- Não sei - respondeu - Um dia elas simplesmente desapareceram sem dizer nada a ninguém.

Os minutos foram passando, silenciosos. Entre nós não se trocaram palavras até o forno apitar. Ela levantou-se, pegou numa luva e tirou o tabuleiro de alumínio do forno, passando depois a pizza para um prato de vidro e cortando-a em várias fatias.
O cheiro da pizza espalhou-se pelo ar quando ela a transportou para a mesa.

- Foi por isso que se mudaram para Portugal? - perguntei, tentando percebê-la.

- Sim... Esta casa era da minha avó - começou a explicar - Ela viveu aqui quase sempre, mas há cerca de vinte e oito anos fechou-a e foi viver para Itália, para ao pé da minha mãe e do meu pai. Desde aí que não vivia aqui ninguém. A minha avó morreu um mês antes do meu pai, e antes disso tinha posto esta casa em meu nome. Pouco antes do meu pai morrer, pediu ao meu irmão para virmos para cá...

Eu interiorizava as suas explicações com atenção, tentando dar um sentido àquela história, mas era difícil porque faltava ali qualquer coisa. Havia algo que ela não me estava a contar.

- Eles morreram de quê? - perguntei a medo.

- A minha avó morreu de cancro - respondeu - O meu pai não sei.

- Não sabes? - estranhei a sua resposta.

Ela assentiu - De um momento para o outro ele ficou doente. Nem me deixou vê-lo. Sei que pediu ao meu irmão para não me deixar vê-lo, talvez para não ser um choque para mim... Mesmo quando ele morreu não me deixaram ver o corpo.

Aquilo começava a preocupar-me. Não era normal tudo o que ela me contava e eu começava a pensar o pior.

- Em que é que estás a pensar? - perguntou ela.

- Nada - respondi logo, pousando os olhos na pizza - Olha, posso comer uma fatia?

Ela riu-se e disse que sim. Tirei uma fatia e trinquei-a. Era impressionante aquela sensação de comer alimentos depois de tanto tempo. Até já me esquecera do que era comer normalmente. Mas sabia que assim não iria chamar a atenção dela. Mesmo que a seguir tivesse de ir à casa de banho e vomitar tudo quando o meu organismo começasse a rejeitar a comida.

a herdeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora