23 - Beatrice

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Aproximei-me da janela do sótão, pensativa. Até agora ainda não tinha encontrado nada em concreto sobre recuperar os meus poderes do anel. Mas já tinha aprendido imenso sobre as ervas e os pós e poções da minha avó.
A luz da lua iluminava vagamente a floresta, tornando-a sombria, um pouco inquietante. Já tinha decidido não me lamentar mais sobre as mudanças todas que a minha vida sofreu de repente, decidi concentrar-me apenas no que fazer dali para a frente. E isso passava por estudar as ameaças. Os Bartori andavam preocupados com o ataque que aconteceu há uns dias. Podia muito bem ter sido o vampiro que veio falar comigo na escola. E se ele não estiver sozinho, é um grande problema. E parecia que agora só se preocupavam com isso. Parecia que se esqueceram de duas outras coisas muito importantes. A caçadora. Ela nunca mais voltou a atacar, como se tivesse desaparecido. E o problema dos uivos que se ouviram há uns tempos. Seria mesmo um lobisomem? Será que ainda andava por aí?
Voltei-me de costas para a janela e observei as prateleiras carregadas de armas. Aproximei-me e peguei no arco e numa flecha com a seta de prata trabalhada. Estava um alvo pendurado na parede. Há muito tempo que não praticava mas tive esperança de não ter perdido o jeito. Coloquei-me na posição adequada, a seta no seu sítio, puxei o aro, foquei-me no alvo e disparei.
No centro. Sorri, orgulhosa de mim mesma. Mas o arco e flecha agora não eram a minha prioridade. A minha atenção estava centrada nas adagas. Peguei em algumas e vi as horas. Já era tarde.

*

Acordei com o sol a entrar pelos buraquinhos dos estores. Esfreguei os olhos, cheia de sono, mas acabei por me levantar. Abri as precianas e deixei a luz fraca do sol iluminar o quarto.
Já eram quase dez da manhã. E estava uma ótima manhã para ir correr. Tinha uma prova de esgrima dali a quatro dias e tinha de me manter em forma.
Vesti umas leggins e uma sweatshirt, uns ténis e prendi uma bolsa à cintura com as chaves e o telemóvel. Fui ao cofre da biblioteca guardar o anel, não queria perdê-lo. E depois de muito pensar decidi prender à cintura uma das adagas.
Saí de casa depois de verificar que o meu irmão já tinha saído. Fui pelo caminho de terra batida até me embrenhar na floresta por um trilho não muito visível.
Acabei por não correr, fiquei demasiado interessada em observar tudo à minha volta, a floresta àquela hora da manhã era linda com os reflexos do sol a penetrarem por entre os ramos.
A certa altura parei e olhei para trás. Tive a sensação de estar a ser observada. Dei mais alguns passos e ouvi não muito longe dali uns rugidos. O meu coração disparou, com medo que estivesse a haver problemas. Mais alguns rugidos fizeram-se ouvir e de seguida ouvi alguém correr e ramos a partirem-se. Olhei em volta e levei a mão à adaga instintivamente, colando-me a uma árvore.
Mais rugidos. Parecia uma luta.
Continuei em frente, com cuidado, até que os vi. Dois vampiros. Era o Rodrigo. E o vampiro desconhecido que veio falar comigo na escola. Estavam a lutar. Não consegui perceber porquê nem quem estava a ganhar, mas saquei a adaga da cintura. O meu instinto dizia-me para que, assim que tivesse oportunidade, ajudar o Rodrigo.
A minha atenção dividia-se entre eles e o chão, não queria fazer barulho para que o desconhecido não soubesse da minha presença. O fator "surpresa" era bastante importante, era o que a minha avó dizia constantemente nos seus cadernos.
Mas a sensação de estar a ser observada persistia. Olhei novamente em volta mas não vi ninguém.
Concentrei-me na luta. Mas ao ver o Rodrigo cair ao chão com arranhões profundos, o meu coração disparou. E foi aí que dei um passo em falso e o vampiro ouviu-me. Olhou-me com os seus olhos cor de sangue e deu um passo na minha direção. Apertei a pega do punhal com força, decidida a fazer o que fosse preciso. Quando ele usou a sua velocidade vampírica para chegar ao pé de mim, obriguei-me a agir rapidamente e defendi alguns golpes devido ao treino em artes marciais que tive, e consegui atingi-lo com a adaga mas ele retribuiu a gentileza e mandou-me contra uma árvore. Em menos de um segundo o Rodrigo já estava à minha frente, entre mim e ele. Levantei-me, ignorando a dor, e apercebi-me que tinha deixado cair a adaga. Respirei fundo e alonguei o braço que me doía.

- Estás bem? – perguntou o Rodrigo sem me olhar.

- Sim, não te preocupes comigo – respondi-lhe.

O vampiro atirou-se ao Rodrigo e mandou-o por terra e eu aproveitei e dei-lhe um golpe, afastando-o. E nesse momento aconteceu o que eu não esperava. Uma seta voou, espetando-se numa árvore, e logo a seguir outra cortou o ar e acertou numa perna do vampiro que eu não conhecia.
Precipitei-me a apanhar a adaga enquanto o Rodrigo se escondia atrás de uma árvore. Olhei na direção de que vinham as setas mas não vi ninguém.

- Bea! – chamou-me o Rodrigo enquanto o outro vampiro rugia de dores na perna e se tentava levantar.

Outra seta o atingiu na mesma perna e vê-lo naquele estado, a sofrer, afetou-me um bocado. Olhei na direção de onde vinham as setas. Pareceu-me ver alguém.
Eu vi alguém. Não lhe vi bem o rosto, estava escondida entre a vegetação. Era uma mulher. E por um segundo ela olhou diretamente para mim, antes de disparar outra flecha contra o outro vampiro.
Os olhos dela eram intimidantes. Cada movimento dela era-me familiar.
Senti que o meu coração se tinha desfeito. Não podia ser.
A mão forte do Rodrigo agarrou-me o braço e a puxou-me. Escondida ao pé dele, voltei a olhar mas ela já lá não estava.

- Bea, temos de sair daqui! – exclamou em surdina, pegando-me na mão e arrastando-me para longe.

Eu mal o ouvia. Não parava de olhar para trás, para o local onde a tinha visto.
A rapidez com que tudo aquilo tinha acontecido deixou-me zonza.
Os rugidos do vampiro tornavam-se cada vez mais longínquos à medida que nos afastávamos a correr. Tropecei algumas vezes e não me apercebi de todas as lágrimas a escorregarem pelas bochechas. O meu coração parecia querer saltar-me do peito.

- Bea! – o abanão que o Rodrigo me deu fez-me parecer acordar de um transe.

- Eu estou bem – respondi automaticamente, com uma voz pouco convincente – Eu estou bem.

Só então percebi que tínhamos chegado a casa dele. Sentia as minhas mãos tremerem. Sentia-me a ficar sem forças. O Rodrigo agarrou-me com força e acho que só por isso é que não caí ao chão.
Só conseguia ver aquele momento, aquela figura a afastar-se.

- Estás a ter um ataque de pânico ou algo do género? – ouvi-o perguntar, confuso e stressado.

Queria dizer-lhe que não, que estava tudo bem, mas não tive forças. 

a herdeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora