Minha irmã.

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Acordei no meio da noite soluçando baixinho. Olhei ao redor e vi tudo muito escuro. As cigarras e grilos faziam barulho. Ainda deitada dei uma espiadinha e vi Rodhir vigiando nosso grupo, daqui a pouco seria a vez de outro. Suspirei e me encolhi do frio. Me detestei por ter adormecido, confiar que outra pessoa estivesse me protegendo era desconfortante. Olhei ao redor, lugarzinho assustador, a floresta maldita mergulhada em sombras. Na minha mente o pesadelo perdia forma, desvanecendo-se como vapor no ar. Eu ainda tremia um pouco, tinha sido estranho, eu era grande no sonho, caolha e tudo, mas mesmo assim fui abandonada novamente. Ninguém me queria. Embrulharam-me numa manta e me jogaram na porta de outra igreja, Treysa não me queria mais, nem Blasco ou Gil, Gostantin ou até mesmo as crianças, até Grandão me deu as costas. Eu não tinha ninguém, e quem convenceu todos a me abandonarem tinha sido Alana. Eu não conseguia me mexer largada na porta e sentia muito frio. Foi um pesadelo estranho e me fez lembrar da minha infância. Aquele momento que percebemos só estar no orfanato porque seus pais não o quiseram. Muitos estavam ali por causa da guerra, mas não era o meu caso, eu tinha uma carta. Escrita pela minha mãe, dizia que ela não podia ficar com a criança e que esperava que os Deuses me criassem, por isso me largou na porta da igreja. O sonho me fez lembrar de tudo isso, e principalmente de Alana.

                                                                                            *

Por muito tempo meu maior desejo era ser adotada. Ter uma família e pais que me amassem, quem sabe até no futuro uma irmãzinha? Ter um quarto só pra mim e o mais importante, sentir que alguém me quis, que alguém me escolheu, escolheu me chamar de filha e me deixou chama-la de mãe.

As irmãs sempre arrumavam as crianças quando algum casal vinha visitar o orfanato. Éramos jogados numa tina com agua e até sabão com cheiro de flores ou frutas era passado na nossa pele, cabelos escovados e roupa limpinha. Eu dava trabalho. Ficava empolgada e corria pela casa achando que seria minha vez de ser adotada. Mas não gostava que me esfregassem na tina, como eu brincava muito na terra minha pele criava cascões que só saíam com muita força, sempre tinham que me pegar em dois ou mais. Treysa me segurava na agua enquanto outra irmã esfregava, eu esperneava e Treysa tentava me distrair com conversas sobre o casal que viria me ver, eu me acalmava e a enchia de perguntas: Eles são legais? Eles gostam de crianças? Menininhas de cabelo preto? Até eu? Ah, será que vão... Ei, minhas costas, não! chega, mas dói muito. E Treysa respondia que ninguém tinha mandado eu me sujar tanto.

Ver os casais era agoniante. Eu ficava ali, minúscula, parada em frente deles. Me enchiam de perguntas e eu ia me soltando, começava a perguntar também e a falar, contar sobre o orfanato, sobre como explorei todo o vale, minhas aventuras, minha caixinha de tesouros, tinha até uma moeda do segundo império nela. Eu nunca soube porque ninguém me quis, devia ter alguma coisa no meu jeito que alertava as pessoas, talvez tivessem razão e eu fosse uma criança defeituosa, "ei! Me mandem de volta pra forja que algo não deu certo da primeira vez". Eu ficava no meu quarto olhando pela janela, tentando imaginar o que tinha feito de errado, porque não me quiseram? Aquilo era doloroso, mas quando outro casal chegava no orfanato eu corria animada novamente, tentava fugir do banho e contava minhas histórias, minhas aventuras, que eram tudo o que eu tinha.

Eu vi muitas crianças irem embora, algumas eram minhas amigas e partiam com casais que eu tinha sonhado serem meus pais. Acho que o grande problema era esse, eu ficava no orfanato e ainda perdia amigos, odiava aquilo, porque eles tinham que ir? Bom, isso até chegarem duas pessoinhas no orfanato. Alana e Gil. Nós brigamos no primeiro dia porque no almoço Gil pegou uma coxa do frango e Alana a outra, fiquei furiosa e puxei o cabelo dela, invés de chorar e correr ela me derrubou da cadeira e ficou em cima de mim. Gil gargalhava segurando a coxa de frango, nós duas o encaramos e o derrubamos da cadeira também. Ficamos amigos desde então, mais do que amigos, irmãos. Pela primeira vez na minha vida sentia que não precisava ser adotada pra ter uma família, pela primeira vez meus sonhos não se resumiam em ter um casarão, cachorros e pais, mas sim eu, Gil e Alana enfrentando o mundo. Fizemos promessas, quebramos algumas, discutimos diversas vezes mas sempre perdoamos na mesma hora, sacrificávamo-nos uns pelos outros e compartilhamos muitos segredos. Eles sabiam da minha caixinha de tesouro e onde eu a escondia, Gil mostrou pra gente onde guardava a antiga espada do seu pai e Alana contou de como batiam nela e a trancavam dentro de um forno no outro orfanato. Aprendemos os medos e desejos de cada um. A cor favorita, comida, tudo. E eu, naqueles dias, me sentia completa.

Certo dia quando eu tinha onze anos um casal procurava adotar alguém, e eu já não pensava ser possível que me quisessem, sempre queriam os pequeninos. Mas o casal queria alguém maior, alguém sem muita chance de ser acolhido. Eles me escolheram. Eram amorosos e nobres. As irmãs os trataram muito bem, até Gostantin fez sala pra eles. Conversamos e me senti intimidada e desconfortável, nem queria conversar muito, estava pensando que o dia seguinte seria o aniversário de Alana e eu com Gil tínhamos combinado fazer um bolo pra ela. Mas no fim me abri, conversamos a tarde toda, e me diverti, eram um casal simpático e gostaram de mim do jeitinho que eu era. Eles queriam me adotar e aquilo foi bom, me senti extremamente bem, alguém me quis, demorou, mas um casal tão legal como aquele me quis. Eu disse que pensaria, tinha sido pega de surpresa. Saí da sala da madre superiora e fui até meus amigos. Contei tudo e eles ficaram calados. No fim bateram nas minhas costas e parabenizaram, mas eu vi que eles seguravam o choro. Naquele dia fizemos mais uma promessa. Se eles fossem meus irmãos pra sempre, eu não precisaria de outra família, nós três prometemos que não aceitaríamos família nenhuma, já tínhamos a nossa. Eu contei minha decisão ao casal e eles ficaram decepcionados mas me abraçaram e me beijaram, senti uma estranha tristeza, era como se eu deixasse escapar um antigo sonho, mas por um sonho novo e pra mim estava tudo bem.

No dia seguinte procuramos fazer tudo em segredo. Despistamos Alana e eu e Gil colhemos os morangos que Gostantin cultivava no canto da nossa horta. Alana quando pequenina o nomeou de Molango do canto. Levamos até a irmã Treysa que nos ajudou a fazer o bolo. Foi divertido. Subimos até nossa colina na nossa arvore, estávamos animados, olhei pros nomes entalhados no carvalho e sorri. Combinamos tudo com Treysa, ela diria a Alana que a chamávamos na colina do velho carvalho.

O meu aniversario era a data do dia que me deixaram no orfanato, mas o de Alana era o legitimo, ela já tinha cinco aninhos quando chegou no orfanato e sabia a data de nascimento. Por isso era especial. Sentamos na colina e eu tinha que ficar atenta pra Gil não beliscar o bolo, esperamos muito até vermos alguém subir a colina, ficamos animados, nos preparamos pra surpresa, mas era Treysa. Ela carregava um olhar triste e até hoje posso ouvir sua voz baixa e consoladora. Eu não acreditei nela. Alana era nossa irmã, tinha um anel como Gil e eu, tinha ligações por juramentos ela.... Corri até o orfanato e não a encontrei. As coisas dela tinham sumido e na minha caixinha de tesouros encontrei uma carta, uma despedida, li junto de Gil e nós choramos. Uma carta, nem um beijo nem abraço, uma carta. Depois descobri que ela partiu com a família Alarcon, o mesmo casal que me escolhera, como eu não aceitei, eles quiseram ver outra criança da minha idade.

Por muito tempo esperei Alana na colina, tinha esperanças que ela viesse se despedir, olhar nos olhos e me abraçar, convidar para conhecer sua casa, eu ia dar um soco na cara dela, puxar os cabelos, mas igual quando nos conhecemos ela não iria chorar, pularia em cima de mim e depois iriamos azucrinar Gil, seriamos amigas outra vez, seriamos três irmãos. Ela não veio. E eu risquei seu nome da arvore, risquei seu nome no meu coração.

Escama NegraOnde histórias criam vida. Descubra agora