Ignorância.

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Mesmo que ninguém dissesse em voz alta era possível sentir a tensão no ar, estávamos quase chegando à Alba, e todos deviam ter pensamentos como os meus, o teste, os itens, meu futuro, tudo estava em Alba, e estávamos quase lá.

As coisas estavam sossegadas a maior parte do tempo. Costumávamos conversar tomando sol, sentindo vento e admirando o mar. Fid estava meio cabisbaixo e mais tarde Gil me contou que alguns sujeitos pegaram no pé dele durante a noite.

– Mas não se preocupe. – Disse Gil que estava de olho roxo. – Eles aprenderam a lição.

– É tô vendo.

– Mas é sério. – Disse Blasco. – Duvido eles encherem o saco da gente de novo, por causa de Davel, e principalmente Emilian.

Gil admitiu que Emilian conseguia ser assustador e Davel bom de briga, olhei o garoto moreno, as mãos calejadas, o rosto marcado, conversando com Fid e Dora. Lembrei do que ela tinha falado na noite passada, sobre como todas aquelas garotas estavam reunidas por minha causa, e olhando Davel, Fid e ela percebi como meu mundo tinha se expandido. Não saberia dizer se aquilo era bom ou ruim.

No café serviram mingau novamente, conversei com o cozinheiro, mostrei Emilian, tentando aproveitar de sua fofura, mas no fim tivemos mesmo que subornar o cara pra conseguir um pedaço de carne mal passada. Emilian devorou e lambeu o sangue do prato.

– Céus, esse camaradinha gosta mesmo de carne. – Disse o Cozinheiro corpulento.

– Até de mais, valeu chapa, pega aí. – E joguei uma moeda pra ele, um cobre imperial, meu último.

O sujeito levou a moeda à boca e deu uma mordidinha verificando a procedência, sorriu e saímos. Emilian ficou me encarando.

– Que? – Perguntei.

– Você não viu? Aquele moço come dinheiro.

– Todos comemos dinheiro, de uma forma ou de outra.

Emilian tinha passado sua primeira noite sem mim, disseram que ele ficara assustado. Mal falava, coisa esquisita pra mim, pois comigo ele não fechava a boca, até ficaram preocupados, ele ficava encolhido na rede, olhando o teto. Mas quando começaram a perseguir Fid, e a briga estourou Emilian saltou da rede e segurou o maior dos valentões pela mão, entortou os dedos do sujeito para trás até partirem feito gravetos, a briga terminou ali e Emilian sentiu-se bem melhor, conversava e sorria, e todos o encaravam.

Imagino como ele deve ter se sentido, eu mesma senti falta dele, apesar de tudo já estava habituada com o pequeno, e até do seu beijinho de boa noite. Fora que talvez ele conseguisse afastar a balburdia que foi o meu cantinho. Principalmente Relíquia Cecilia Cascalhos. Mesmo depois que acordamos a garotinha ficou me seguindo, falando o tempo todo e nem percebendo minhas indiretas pra que sumisse da minha frente, algumas nem tão indiretas assim. Mas nada surtia efeito e quando eu mal percebia ela estava ali, colada ao nosso grupo falando pelos cotovelos. Certa vez, quando estávamos reunidos na proa falando sobre como Alana gostava de morangos, percebi que Cecilia estava na conversa só depois de ouvir sua voz e me arrepiar. Ela começou a falar como adorava morangos e que os melhores morangos eram de Vinha Légua onde existia uma lenda sobre o fruto, falou tudo sobre a lenda e parou só pra respirar, ela possuía um folego incrível.

– Ieu tamém gosto de morango. – Disse Fid. – Pena que onde vivo num dá pra cultivar.

– Deveras. – Disse Cecilia sorrindo, animada com a oportunidade de emendar mais uma historia. – Soube que vivem em buracos e tuneis lá em Porto Verde, não acho que dê pra cultivar muita coisa por lá, céus! Vocês devem viver de comerem morcegos e aranhas, que sabor que deve ter fungo? – Os outros riram com o jeito de Cecilia falar e Fid ficou um pouco constrangido.

Escama NegraOnde histórias criam vida. Descubra agora