O Dia da Eleição.

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Antigamente era difícil eu fazer algo pelos outros, só meu grupinho fechado, como Alana, Gil e o pessoal da igreja. Eu pensava que cada um deveria cuidar de seus problemas, afinal em muitos momentos de nossas vidas temos que caminhar sozinhos, depender apenas de nós mesmos. Mas hoje percebo que há lugares impossíveis de se caminhar solitário, e que querendo ou não existem momentos em que precisamos de ajuda, mas meu orgulho é grande e eu não sei pedir socorro e nem me sinto bem quando sou amparada, sei que é besteira, e talvez por isso eu comecei a fazer as coisas pensando nos outros e não só em mim, talvez dessa forma quando eu fosse ajudada não me sentiria um peso morto. No fim ajudo os outros por mim mesma, por me sentir bem, ou pelo menos gosto de pensar assim. Afinal existem pessoas que deixam de fazer parte dos "outros" e passam a ser um pedacinho de nós, e todos dos Dragões são assim pra mim. Acho que a primeira vez que realmente percebi isso foi na última noite antes da eleição, quando sozinha no frio e na nevasca eu quase morri, pensando que estava ajudando os outros, mas estava fazendo isso por mim, e por todos os pedacinhos que me compunham.

O pano enrolado nas minhas costas balançava querendo se abrir. Eu mal conseguia manter o olho aberto por conta do vento e da neve e meus ouvidos estavam entupidos de sons e assobios maldosos da tempestade. Eu pensei que estava louca, e podia bem ser verdade, morreria ali no meio da montanha sem ninguém testemunhar minha burrice, me encontrariam semicongelada e todos se perguntariam o que a maluca da Plim fazia sozinha naquele lugar, no meio da noite escalando uma montanha.

Mas as coisas são engraçadas, quando pensamos muito não fazemos quase nada, e quando a mente está vazia podemos abraçar o mundo, quando comecei a pensar de mais percebi que tinha atingido o cume, eu conseguira. Eu só pensava em Emilian, Cecilia, Ivna, Sará, meu mestre Orin, Adriel, Treysa e Gostantin, como Plem adoraria aquele lugar e como Gil e Blasco provavelmente subiriam comigo. A visão dali era maravilhosa, eu via Petúnia inteira, as casinhas e os telhados, as ruazinhas de terra batida, o nosso salão, a prefeitura, a floresta com os pinheiros sempre verdes. Suspirei e puxei a pele que eu usava cobrindo até a boca, ali era um frio de lascar. O sol surgia no horizonte dando cor para o céu e as nuvens, derramando luz nas plantas que pareciam mais verde, tingindo os telhados com mais vigor, alguns cães já caminhavam pela rua e eu me levantei, o sino ainda possuía corda. Prendi a que eu trouxera numa viga que parecia aguentar meu peso e a joguei lá pra baixo. A corda tinha custado o punhal de Emilian, ela e a bandeira que mandei fazer. Todos tinham bandeiras em Petúnia, sempre achei estranho, Imanel tinha a sua, Jaspe até Pitoresco Jim, mas a cidade não, ela nunca teve, nunca fui boa com arte e não sabia o que encomendar, mas fizeram um bom trabalho pra tão pouco tempo. Troquei as bandeiras e puxei a corda do sino, estava duro e emperrado, usei todo meu peso chegando a ficar pendurada na corda, mas ele badalou, muito forte, ecoando, as vibrações arrancando neve e gelo de cima da montanha, puxei com mais força, sem medo, eu era uma deusa, subi até a montanha que ninguém conseguia escalar, apenas pra gritar bem alto:

– Acordem cidadãos de Petúnia!

Espantei-me com minha voz que ecoava, era como o assobio do vento que Ivna e eu ouvimos quando nos aproximamos da montanha, ela tinha algo que fazia a voz se erguer feito um gigante, talvez por isso haviam feito uma catedral ali. Gritei mais uma vez e vi pessoas saindo pra rua. Com roupas de dormir, alguns sem camisa, esfregando os olhos, todos minúsculos lá embaixo, eles se olhavam, criança saíam empolgadas e eu badalava meu sino. Quando perceberam o que era houve gritos, correria, as pessoas chamando de porta em porta, proclamando um milagre, saindo de suas casas, chamando seus amigos, vizinhos, familiares. A porta dos Dragões se abriu e eles começaram a andar pela rua, as pessoas se reuniam na frente da montanha todos me encarando, queriam ver quem os chamavam.

Escama NegraOnde histórias criam vida. Descubra agora